No dia 29 de agosto de 2017, por volta das 13h20, em um ônibus que transitava na Avenida Paulista, em São Paulo (SP), um homem que estava no veículo acabou tirando o pênis para fora e ejaculando no ombro de uma mulher que também era passageira.
O homem foi preso em flagrante e encaminhado para audiência de custódia. Na oportunidade, apesar dos diversos antecedentes, teve sua prisão relaxada (ou seja, foi solto), ante a capitulação provisória da conduta como contravenção penal de importunação ofensiva ao pudor (art. 61 da Lei das Contravenções Penais). Esse, lamentavelmente, não é um fato isolado, e constitui exemplo, dos mais abjetos, da violência sexual cotidiana que inúmeras mulheres anonimamente vêm sofrendo ao largo dos anos.
O fato constitui, porém, um símbolo fortíssimo do grau de desconsideração, instrumentalização e violação de um dos direitos mais elementares dos seres humanos, que é a sua dignidade sexual.
No entanto, a grande questão jurídica que o caso levanta é: qual crime foi praticado pelo abusador? A resposta para essa questão gira em torno de três figuras típicas: o estupro (art. 217 do Código Penal); a posse sexual mediante fraude (art. 215 do Código Penal) ou importunação ofensiva ao pudor (art. 61 da Lei das Contravenções Penais).
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O crime de estupro, desde logo, é descartado pela maioria dos intérpretes, uma vez que pressupõe a existência de grave ameaça ou violência física para submeter, constranger, a vítima, a praticar a conjunção carnal ou outro ato libidinoso (art. 213 do Código Penal). Tal violência física de submissão, no caso, não ocorreu. Muito embora, é bem verdade, que, em um sentido ordinário da palavra, não há dúvidas que a ação do autor consubstanciou uma inegável violência à mulher. Um atentado à sua dignidade. Da mesma forma, incabível, na espécie, a aplicação da figura prevista no § 1o, do art. 217, uma vez que a vítima não padecia de nenhuma “causa” que lhe impedia “oferecer resistência”.
Já a configuração do crime de violação sexual mediante fraude (art. 215 do Código Penal) tem sido rejeitada por alguns intérpretes. Existem três argumentos fundamentais, para tanto, (a) é imprescindível que a vítima tenha sido enganada; (b) a conjunção “com” prevista no tipo penal pressupõe uma adesão, ainda que viciada, por parte da vítima ao ato sexual; e (c) na previsão da segunda parte do tipo penal, a interpretação analógica tem que guardar relação com a fraude.
Os que argumentam que se faz necessária a existência de um engano à vítima para a configuração do delito, defendem que o tipo penal estabelece uma espécie de estelionato sexual, em que a vítima adere à proposta do autor, enganada por artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento, que a induza ou mantenha em erro. No entanto, não se pode deixar enganar-se pelo nomen iuris do delito do artigo 215 (“violação sexual mediante fraude”).
Isso porque, esse tipo penal, depois da reforma feita pela Lei n. 12.015/09, incrimina mais do que a simples conjunção carnal mediante fraude [1]. Ele pune, também, toda conjunção carnal ou outro ato libidinoso, em que o autor “impeça ou dificulte a livre manifestação da vontade da vítima” [2].
Além disso, não se pode acolher a objeção feita no sentido de que o tipo penal do artigo 215, ao prever a conjunção “com” (“praticar outro ato libidinoso com alguém”), exige a concordância da vítima, que se encontrava em erro. Isso porque a palavra “com” quer tão somente significar que o delito pressupõe uma relação interpessoal, em que mais de uma pessoa esteja envolvida. Com isso, o tipo penal afasta a configuração do delito quando são realizados atos isolados tanto pelo autor, quanto pela vítima. Assim, a título de exemplo, pode-se dizer que a masturbação do autor ou a masturbação da vítima por fraude [3], não configuram o crime do artigo 215 do Código Penal [4].
No entanto, no caso em exame, considerando-se que os atos de natureza sexual (atos libidinosos), chegaram a atingir o corpo da vítima, uma vez que a ejaculação atingiu o pescoço da ofendida, verifica-se estar perfeitamente caracterizada tal relação interpessoal, necessária para a configuração do delito [5].
Por fim, é imprescindível entender o que significa a regra prevista na última parte do artigo 215, que dispõe que o ato ocorre mediante “fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima”. Trata-se, aqui, da denominada interpretação analógica, que “consiste na aplicação de uma norma a casos semelhantes aos contemplados por ela, ainda que distintos, precisamente por assim permitir a norma”. [6]
Na espécie, o legislador previu expressamente a fraude como um meio que impede ou dificulta a livre manifestação da vontade vítima. Abriu, porém, a possibilidade de configuração do delito para todos os outros casos que importem em um impedimento ou dificuldade para que a vítima manifeste sua vontade.
Nesses casos, o crime resta configurado quando o autor emprega algum recurso ou meio que dificulte ou torne impossível a manifestação da vontade da vítima. Essa figura delitiva é bastante semelhante ao crime de abuso sexual não consentido, cometido sem violência ou grave ameaça, previsto no Direito Penal espanhol.
Sobre esse caso de delito sexual, Orts Berenguer expõe que:
“(...) podem ocorrer outros abusos não consentidos, como são aqueles em que a vítima é atacada de surpresa (...). São casos em que, muito embora não exista violência, nem intimidação, o sujeito passivo acaba não tendo a oportunidade de manifestar sua repulsa (...) (Nesse sentido a decisão do Tribunal Supremo [espanhol] de 20 de março de 1998, em que se condenou, como autor de um delito de abusos desonestos, um indivíduo que se aproximou da vítima subitamente, por suas costas… beijando-a no pescoço, enquanto lhe apalpava as nádegas e os seios…)”. [7]
No caso do ônibus, claramente, a vítima foi pega de surpresa, já que atacada inesperadamente, não podendo, por essa razão, manifestar sua vontade.
Isso porque, do próprio contexto da ação – em que o autor era um desconhecido da vítima (não eram amigos, nem mantinham relação de intimidade), estavam em um local público, claramente inapropriado para a prática de relações sexuais – era possível afirmar que havia uma justa expectativa por parte da ofendida, de que ela não seria surpreendida por um ataque sexual, como o ocorrido.
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Todo esse panorama deixa muitíssimo claro que a vítima teve impedida a sua livre manifestação sexual, de forma que restou caracterizado o crime do artigo 215 do Código Penal, cuja punição é de dois a seis anos de reclusão, cabendo, inclusive, a decretação da prisão preventiva do investigado.
Além disso, uma vez estando caracterizado o tipo penal do artigo 215 do Código Penal, fica afastado o delito do artigo 61 da Lei de Contravenções Penais (importunação ofensiva do pudor), por conta da incidência do princípio da especialidade.
Apesar da conclusão de ter sido caracterizado o crime do artigo 215 do Código Penal, nada impede que o legislador aperfeiçoe o tipo penal em questão, trazendo de forma mais clara a possibilidade de punição para essa ou outras condutas de natureza e gravidade semelhantes, que eventualmente possam ser consideradas atípicas ou que estejam submetidas ao, muitas vezes, insuficiente regime da contravenção penal de importunação ofensiva do pudor.
[1] A antiga redação do artigo 215, que somente previa a criminalização de “ter conjunção carnal com mulher, mediante fraude” (Redação dada pela Lei nº 11.106, de 2005). Já a redação original do artigo 215 era a seguinte: “ter conjunção carnal com mulher honesta, mediante fraude”. Tal redação revela muito bem a ideologia machista do Código originário, que, nesses casos, somente protegia a “mulher honesta”.
[2] A redação atualmente em vigor é a seguinte: “Art. 215. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém, mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima. Pena - reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos".
[3] Por exemplo, o autor se passa, em aplicativo de videochamadas pela internet, pelo marido da vítima, que, por sua vez, incidindo em erro, masturba-se pra ele.
[4] Como consigna BUSATO: “O tipo penal não inclui (...) a fraude empregada para que a vítima pratique em si mesma atos sexuais, a exemplo da automasturbação”. (BUSATO, Paulo César. Direito Penal, Parte Especial, vol. 1. São Paulo: Atlas, p. 814)
[5] À mesma conclusão chega RAMOS VÁZQUEZ, ao expor um caso ocorrido na Espanha, em que o genitor ejaculou em seu filho, que era uma criança. Isso porque, segundo argumenta, o agente “se utiliza do corpo” da vítima “com a finalidade de satisfação sexual”. (RAMOS VÁZQUEZ, José Antonio. Política criminal, cultura y abuso sexual de menores: Un estudio sobre los artículos 183 y siguientes del Código penal. Valencia: Tirant lo Blanch, 2016, p. 117)
[6] GONZÁLEZ CUSSAC, José L.; BUSATO, Paulo César; CABRAL, Rodrigo Leite Ferreira. Compêndio de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral. Valência: Tirant lo Blanch, 2017, p. 50.
[7] ORTS BERENGUER, Enrique. Derecho Penal, Parte Especial. Valencia: Tirant lo Blanch, 2010, p. 260.
* Rodrigo Leite Ferreira Cabral é doutor em direito penal pela Universidade Pablo de Olavide e promotor de Justiça do Ministério Público do Estado do Paraná.