Ouve-se falar muito em normas atualmente. Vivemos em um tempo em que supostas normas pré-existentes de decência, civilidade e respeito são postas de lado em prol da “vitória”. Os fins justificam os meios, e um perdedor digno é apenas isso: um perdedor. Existe uma sensação real de que se perde algo insubstituível, um respeito compartilhado que antes permitia a simpatizantes ou filiados a partidos políticos distintos lutar por suas ideias, mas permanecer unidos como cidadãos da maior república constitucional do mundo.
O funeral de John McCain, no último fim de semana, deveria ter nos lembrado desses valores nacionais, deveria ter tocado nossa consciência. Foi uma ocasião para o establishment de Washington se unir diante de um presidente raivoso e temperamental e dizer “basta! Há dignidade no serviço público e nas práticas políticas. Existe um caminho melhor”.
Infelizmente, parece que toda a conversa sobre normas, civilidade e decência é apenas mais uma arma de conveniência, descartada no momento em que é percebida como preparativo para o caminho da derrota. Basta olhar para o espetáculo repugnante que foi o primeiro dia, bem como o início do segundo, da audiência de confirmação de Brett Kavanaugh à Suprema Corte, no Senado norte-americano.
Antes de continuar, deixe-me lembrá-lo de que Kavanaugh é o oposto de um jurista trumpista violador de normas. Ele é a perfeita definição de um jurista do Partido Republicano enquanto instituição. Ele lideraria a lista de indicações à Suprema Corte em qualquer administração republicana. Não é que ele apenas possua uma visão sólida acerca do originalismo da lei, mas é tão respeitado no meio jurídico que Elena Kagan** o convidou para lecionar na Escola de Direito de Harvard.
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Em outras palavras, ao longo de sua carreira, Kavanaugh ajudou a manter as normas em vez de violá-las. Ele é o exemplo vivo do tipo de pessoa – e do tipo de político – que os democratas alegam sentir falta na era Trump.
Ontem, contudo, de senadores a manifestantes a trolls online, os democratas ofereceram uma prévia de como reagiriam a qualquer indicado republicano à Suprema Corte. Mostraram, ainda, por que os conservadores não acreditam, por um momento sequer, que Donald Trump é a única fonte da atual disfunção americana.
Consideremos primeiramente o comportamento totalmente frívolo de vários senadores do Partido Democrata. Segundos após o início da sabatina eles interromperam o presidente do Comitê Judiciário do Senado, Charles Grassley, com pedidos para que a audiência fosse adiada.
O pretexto foi um daqueles debates que aconteceram em Washington sobre a produção de documentos, em que senadores – que várias semanas atrás já declararam que vão votar contra Kavanaugh – alegaram não poder avaliar o juiz adequadamente “somente” com base nas centenas de milhares de documentos sobre Kavanaugh que eles já têm (incluindo mais de uma década de pareceres judiciais). Os parlamentares realmente precisavam de cada pedaço de papel que ele já tocou, para... O que mesmo? Poderem emitir um voto mais enfaticamente negativo?
Não se engane, isso não foi nada para a base democrata. Veja bem, há essa hashtag #StopKavanaugh (#ImpeçaKavanaugh) rolando porá aí, que desencadeou uma série de palestras, discussões em painel e tal. Se os senadores usassem a sabatina apenas para debater doutrinas legais diretas, velhas e chatas, a discussão não renderia bons comentários para a #Resistência, renderia? Era preciso fazer algo dramático, independentemente de ser eficaz. Então, por duas horas, pequenas interrupções foram substituídas por um debate sério.
Os senadores foram ofuscados, é claro, pelos irados ativistas que estavam na sala. Uma das primeiras maneiras de reconhecer que um manifestante, comentarista ou político não deve ser levado a sério é observar se eles enxergam The Handmaid’s Tale como uma espécie de metáfora para o nosso tempo. O presidente dos Estados Unidos é um libertino que paga a estrelas pornô e coelhinhas da Playboy para que fiquem quietas, mas de alguma forma estamos a apenas dois passos de Gilead. Mesmo assim, tão certo como a noite sucede o dia, as aias apareceram para a sabatina de Kavanaugh, assim como manifestantes barulhentos que pareciam ter vindo diretamente de Mos Eisley.
Vamos ser claros: se ativistas irados ligados ao Tea Party (a ala radical do Partido Republicano) tivessem agido de forma semelhante na sabatina de um indicado democrata, as agências de notícia estariam balançando a cabeça em reprovação, diante da perigosa falta de respeito em relação a um candidato digno. Em vez disso, muitos jornalistas parecem pensar que é assim que a democracia se parece: com tentativas em série de exercer um veto incoerente e barulhento.
Mas se você achou que as tristes atitudes da sala de audiência foram o ponto mais alto (ou baixo) do dia, é porque você nunca ouviu falar do Twitter. Teorias da conspiração explodiram online, a começar por essa:
“A antiga assessora de Kavanaugh, Zina Bash, fica fazendo um sinal ligado ao poder branco durante a sabatina dele no Senado. Eles literalmente querem trazer a supremacia branca para a Suprema Corte. É um ultraje nacional e uma desgraça para o Estado de Direito”.
Para aqueles que possam estar se perguntado, Zina Bash é uma das mais respeitadas e talentosas advogadas conservadoras de Washington. Como seu marido, John Bash, procurador do Distrito Oeste do Texas, explicou no Twitter, ela é mexicana por parte de mãe e judia por parte de pai. Seus avós paternos sobreviveram ao Holocausto, e ela nasceu no México. Não é, portanto, crível, nem de longe, que ela estivesse fazendo um sinal da supremacia branca com as mãos.
Mas esses fatos não detiveram a esquerda online. As alegações continuaram se espalhando até que se transformaram em uma versão instantânea de esquerda da conspiração Pizzagate – que não se sustenta por nenhum fato significativo, mas que mesmo assim milhares de pessoas acreditam.
Em seguida, houve a alegação de que Kavanaugh deliberadamente se recusou a apertar a mão do pai de uma adolescente morta no tiroteio de Parkland. O homem, Fred Guttenberg, aproximou-se do juiz durante uma pausa na audiência, estendeu a mão, um segurança se aproximou e Kavanaugh saiu. É isso aí. Você pode assistir à coisa toda aqui:
Quase instantaneamente esse encontro momentâneo foi transformado em um episódio de desprezo crasso e intencional por parte de um juiz malvado e indiferente para com um pai enlutado. Guttenberg entrou ao vivo na CNN e afirmou, de forma infundada, que Kavanaugh não apenas o esnobou intencionalmente, mas que pessoalmente pediu para que ele fosse removido da sala:
Um estranho se aproxima de um juiz durante uma sabatina interrompida por inúmeros protestos, a segurança intervem, e Kavanaugh deveria ter... O que, exatamente? Ignorado o segurança para cumprimentar um homem que ele não sabia quem era?
É difícil acreditar que eu esteja perdendo meu tempo falando sobre isso, mas as alegações contra Kavanaugh e Bash correram a web. Foram encaradas como a prova de que Kavanaugh não vale nada e de que Bash é racista. Milhões de pessoas assistiram aos vídeos. Foram escritos centenas de milhares de tuítes.
E o que todo esse som e fúria significou? Não muito para Brett Kavanaugh, que começou o dia praticamente certo de sua confirmação e o terminou - se muito - com um impasse para a confirmação.
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Mas para nosso corpo político, foi mais uma evidência de que a batalha pela civilidade há muito tempo alcançou a fase Irã – Iraque – uma guerra sombria em que ambos os lados cometem atrocidades por esporte. As “normas” da vida política americana não são, de fato, o respeito e a civilidade preconizados no funeral de John McCain. Cada vez mais elas são a frivolidade, o ridículo e o comportamento grosseiro conforme visto ontem.
Então, na próxima vez em que você ouvir um discurso de funeral sobre civilidade, responda com um pedido: mostre, não fale. Quando as apostas estão baixas, você pratica o que prega? O que foi visto ontem nos dá uma resposta clara para esse questionamento, e deve preocupar todos nós que realmente nos importamos com um discurso saudável acerca da política americana.
* David French é escritor-sênior na National Review.
** Elena Kagan foi nomeada para a Suprema Corte em 2010, durante a administração Obama. Entre 2003 e 2009 foi decana da Escola de Direito de Harvard.
©2018. National Review. Publicado com permissão. Original em inglês.