Na linguagem médica a palavra rotura designa laceração, solução de continuidade, rebentamento de uma estrutura anatômica, seja um ligamento, músculo, órgão ou vaso. Parece que foi assim, misturando invasão com arrombamento, que o digital ingressou em definitivo no mundo do Direito. O ano de 2006 não está muito longe na memória dos que, acostumados com os processos físicos, tomaram contato com a Lei 11.419/2006, por meio da qual foi instituída a informatização do processo judicial.
Hoje, passados 11 anos, e sob a vigência de um novo Código de Processo Civil, Lei 13.105/2015, já falamos com desenvoltura em processo eletrônico, infraestrutura de chaves públicas, citação eletrônica, Diário de Justiça Eletrônico, ato processual eletrônico em padrão aberto e assinatura eletrônica.
Digital é uma palavra com dupla origem, latina, digitus (o dedo), e inglesa, digit, (o número), que transformou não só o Direito, mas também modelos econômicos, empresas e organizações humanas. O que dizer sobre o chamado mundo “2D” - Digital +Data, que impõe às empresas e a seus dirigentes, de forma constante, uma revisão das estratégias comerciais e ações de marketing? E a transformação que estamos assistindo no que concerne ao desenvolvimento dos chamados driveless cars por empresas que nunca tiveram tradição na indústria automobilística, tais como Google, Tesla e Uber? Podemos dizer que teremos novos tipos de contratos com os smart contracts ou eles apenas configurariam uma aplicação técnica sem autoridade jurídica? Como o uso da tecnologia de blockchain afetará o trabalho nas indústrias?
Certamente cada umas dessas novidades repercute no campo jurídico, seja quanto aos direitos dos consumidores, ao impacto no instituto da responsabilidade civil e legislação de trânsito nas cidades, ao direito do trabalho, ao direito médico, ao direito contratual ou ao tratamento de proteção de dados pessoais em tempos de desterritorialização e destemporalização.
Salta aos olhos, no entanto, o que vamos passar a vivenciar ou, em alguns países, o que já se está vivenciando no campo das profissões jurídicas com a revolução do digital. Estamos nos referindo à mediação eletrônica de conflitos e às startups do Direito.
Em 2006, no ápice da discussão sobre uma nova governança para o Judiciário brasileiro, o Ministério da Justiça produziu um documento intitulado “Novas direções na governança da justiça e da segurança”, com vários estudos cujo foco era a justiça restaurativa e suas experiências exitosas de mediação comunitária em diferentes países.
De lá para cá podemos pontuar três marcos legais relevantes, a Resolução 125/2010, por meio da qual foi instituída a política judiciária nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses no âmbito do Poder Judiciário; a Lei 13.140/2015, que disciplinou a mediação como meio de solução de controvérsias entre particulares e a autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública, e o novo Código de Processo Civil. Neste, a mediação figura dentre as normas fundamentais do processo civil, devendo ser estimulada “[...] por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial” (art. 1º, § 3º) e a mediação por meio eletrônico é uma possibilidade que figura ao lado da face-to-face mediation (art. 334, § 7º).
Ano passado, para amoldar o Judiciário ao novo CPC e à Lei 13.140/2015, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por meio da Emenda 2, atualizou a Resolução 125/2010 em dois pontos importantes. A um só tempo criou um Cadastro Nacional de Mediadores Judiciais e Conciliadores, que permite às partes escolherem mediadores com base no histórico de casos de determinado profissional e no seu patamar de remuneração, e instituiu o Sistema de Mediação Digital, uma plataforma on-line, disponível a todos os Tribunais de Justiça brasileiros via “Escritório Digital” para resolução pré-processual de conflitos e, dependendo do interesse de cada Tribunal estadual ou federal, para uso em demandas judiciais em curso, cujo foco são os conflitos relativos a seguros, relações de consumo e executivos fiscais.
A questão está em saber como tal novidade vai impactar a formação e a prática dos profissionais em duplo sentido: (i) no terreno da reforma do ensino do Direito e previsão de disciplinas voltadas à (nova) realidade de tratamento adequado de conflitos “no mundo virtual”; (ii) no campo do empreendedorismo na área do Direito.
Sobre este último ponto cabe uma explicação. Já estão em plena atividade na órbita empresarial novos atores, que reunidos em grupo estão sendo chamados de legaltech. Tratam-se das startups do Direito, aqui e alhures , criadas precisamente com apoio em ferramentas digitais para a solução dos mais diversos conflitos. O sistema eletrônico do CNJ para a realização de mediações eletrônicas, portanto, não está sozinho. Há outras tantas iniciativas de empresas particulares e até mesmo aplicativos globais que trilham o mesmo caminho.
Para que tudo isto seja realidade e não virtualidade, de fato, o ensino do Direito deverá e precisará sofrer mudanças. Disciplinas como Direito Eletrônico, Direito e Informática, Propriedade Intelectual e Empreendedorismo deverão fazer parte do currículo pleno e não somente como disciplinas auxiliares, complementares, eletivas ou optativas. Há que se fazer uma mudança na base do ensino das profissões jurídicas. Há que se falar e incentivar a inovação e a pesquisa empírica no Direito.
Estudos realizados pela Ernst & Young mostram as profissões que irão desaparecer até 2025, mas entre as profissões em alta está o Direito em geral, principalmente direito internacional e arbitragem. Portanto, como professores e pesquisadores devemos fomentar e participar das mudanças. De um lado, devemos levar aos acadêmicos dos cursos de graduação e pós-graduação da área do Direito, palavras como ubíquo, pervasivo, mutação e adaptação. De outro lado, a apresentação de novos paradigmas, como everyware e disruptura, e a revisão de antigos, tais como confiança, boa-fé, privacidade, consumo e inteligência são ações que podem começar desde já. Enfim, o trabalho seguirá um longo caminho.
*Andréa Abrahão Costa, doutoranda do programa de pós-graduação em Direito da PUCPR/Universidade Paris Ouest-X-Nanterre – Bolsista CAPES, Mestre em Direito (PUCPR), advogada e professora adjunta do Curso de Direito da Fundação de Estudos Sociais do Paraná - FESPPR)
*Cinthia Obladen de Almendra Freitas, professora titular da Escola de Direito da PUCPR, pesquisadora permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito da PUCPR. Doutora em Informática pela PUCPR)
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