Um jovem de 23 anos não quer mais viver. José Humberto Pires de Campos Filho é doente crônico renal e se nega a continuar as sessões de hemodiálise em Goiás, estado onde mora, sabendo que essa escolha o levará à morte. Desesperada, a mãe recorreu à Justiça e conseguiu a interdição do rapaz para obrigá-lo a seguir com o tratamento. A sentença polêmica reacendeu a discussão sobre os limites de atuação do Estado sobre a vida privada de um cidadão lúcido e maior de idade: é legítimo obrigar alguém a querer se curar?
A resposta não é fácil.
Um dos princípios basilares da bioética é a autonomia. Nos Estados Unidos, por exemplo, quando se fala em saúde, a autonomia pressupõe a liberdade de tratamento (ou não) em seu sentido mais amplo, sendo possível até, em alguns estados, a eutanásia. Por lá, o paciente participa ativamente das decisões do médico, com pleno poder sobre si mesmo. No Brasil, o princípio da autonomia é mais limitado e corresponde à ideia de que ninguém poderá ser obrigado a submeter-se a qualquer tratamento médico. E é nesse nuance que mora a problemática da questão, explica o professor de Biodireito da Universidade Presbiteriana Mackenzie Carlos Eduardo Nicoletti Camillo.
Segundo Camillo, no ordenamento jurídico nacional, a ideia está positivada no artigo 15 do Código Civil, que traz que “ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica”. De acordo com o professor, não haveria sequer a necessidade do risco de vida, pois “ninguém é obrigado a se submeter a tratamento médico ou intervenção cirúrgica que não deseje”. Para ele, trata-se de uma deflagração lógica do princípio da autonomia.
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Existem, contudo, exceções ao princípio. A primeira, explica Jorge Ribas Timi, cirurgião, advogado e professor da UFPR, é a emergência, o risco iminente de morte. Em casos assim, a autonomia da pessoa é relativizada e o médico pode tratar o paciente sem precisar de consentimento. “Imagine um paciente que chegou ao hospital atropelado por um ônibus, em coma. O profissional não vai tentar localizar um familiar para iniciar o tratamento, vai começá-lo de pronto”, exemplifica o médico. Nesse tipo de situação, a presunção lógica é de que o indivíduo quer se salvar.
A segunda perspectiva é de que apenas pessoas capazes, no sentido jurídico do termo, poderiam ter reconhecida a autonomia da vontade. Docente do Programa de Pós-Graduação em Bioética da PUCPR, Jussara Maria Leal de Meirelles esclarece que, no Brasil, a partir dos 18 anos completos, a pessoa é considerada capaz para todos os atos da vida civil, “tanto patrimoniais quanto os que digam respeito a sua existência como ser humano, estando as decisões sobre a saúde dentre esses últimos”. Como regra geral, portanto, não caberia ao Estado interferir na liberdade de alguém no tocante ao tratamento de uma doença.
Há, no entanto, situações em que mesmo maior de idade, a pessoa não apresenta condições, muitas vezes psicológicas, de decidir sobre si própria e seus bens. É aí que o Estado pode intervir, decretando a interdição e nomeando um curador. “Mesmo nesses casos, há que se ressaltar que a curatela é medida protetiva extraordinária, temporária e proporcional às reais necessidades e às circunstâncias de cada caso que se apresente ao Poder Judiciário”, alerta Jussara.
Vazio legislativo
No caso de José Humberto, o juiz entendeu que o cenário de enfermidade do jovem o fez tomar decisões sem a reflexão adequada, com pouca clareza emocional, como se sua vontade estivesse “viciada” em razão da doença. Pelo fato de o ordenamento jurídico brasileiro não abarcar situação tão específica, o magistrado acabou aplicando a interdição por analogia, levando em consideração a proteção à vida. O que se verifica por aqui, já que o direito pátrio é embasado na lei – em texto, e não nos costumes, como ocorre nos EUA –, existe um imenso vazio legislativo sobre o assunto.
“Isso não é nada bom. Ao proferir uma decisão como essa, o juiz vai incomodar quem tem uma perspectiva de liberdade diferenciada da dele. Se houvesse um diploma legal as coisas seriam muito mais fáceis. Não que ter um ‘cardápio’ vá resolver, mas seria um referencial importante que daria segurança a outros casos”, fala Carlos Eduardo Nicoletti Camillo, professor da Mackenzie.
No Brasil, a eutanásia – que consiste em pedir ativamente pela morte antecipada, para fugir de uma situação de sofrimento – não está tipificada especificamente como crime, mas é considerada um delito. No direito pátrio, ela entra na classificação padrão do homicídio. A ortotanásia, entendida como morte natural, sem o uso de meios desproporcionais e dolorosos para manter alguém vivo, está contemplada em texto do Conselho Federal de Medicina (CFM). Conforme Resolução n. 1.805/2006 do órgão, é “permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal”, com a garantia de que o paciente deve continuar a receber cuidados paliativos.
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Em relação ao jovem de Goiás, seu estado, provavelmente, ainda não é de terminalidade, mas é o que vai ocorrer se ele deixar de fazer a hemodiálise. Em tal momento, ele estaria abarcado pela resolução do CFM, mas não agora, já que a hemodiálise é considerada como tratamento proporcional para o caso. De qualquer forma, o médico e advogado Jorge Ribas Timi acredita que a interdição é uma decisão equivocada. “O rapaz em questão não quer continuar fazendo diálise, o que, para ele, é prolongar uma vida que não deseja. Ele não está pedindo a ninguém que o auxilie a morrer, apenas quer morrer naturalmente. Na visão dele, continuar o tratamento é prolongar o sofrimento”, acredita Timi.
Jussara Maria Leal de Meirelles, professora da PUCPR, pensa que casos como esse são bastante difíceis, “porque há que se ponderar entre o que é verdadeira proteção e o que é uma decisão de pura e simples restrição de direitos individuais”. A professora pensa ser bastante tênue a linha entre a promoção do amparo jurídico a alguém que necessita e a mácula à autonomia dessa pessoa.
“A questão que se coloca é se a pessoa tem condições psíquicas de discernir e bem decidir sobre o que é melhor para si própria. O magistrado deve se pautar em todas as provas para decidir se está diante de uma situação que realmente impede àquela pessoa a gestão razoável da própria vida”, afirma. Em casos assim, contudo, diz Nicoletti Camillo, a tendência é que as decisões sejam pró-vida.
Sem força
Um aspecto da interdição de José Humberto que chama a atenção é que o juiz Éder Jorge, da 2ª Vara Cível de Trindade (GO), proibiu o uso de qualquer forma de coerção física, inclusive sedação, por parte da curadora do rapaz. O que se observa, na prática, é que por mais que o Estado tenha interferido na situação, ele não a resolveu.
Jussara diz que a saída encontrada pelo juiz foi cautelosa, pois somente em casos de grave e profunda deficiência intelectual é que a curatela poderia suprimir o consentimento do curatelado, de acordo com o disposto na Lei n. 13.146/2015, conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência. O texto também traz que a curatela afeta somente os atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial, não alcançando o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto.
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“Não sei se é o melhor caminho, mas toda vez que uma pessoa prefere morrer a se tratar, acendem-se holofotes sobre o seu discernimento. Por vezes, a pessoa só quer parar de sofrer. E isso merece cautela”, alerta a professora. Nicoletti Camillo interpreta que a decisão judicial imputou à mãe do rapaz um papel para agir com mais liberdade em casos de emergência e desde que o jovem esteja inconsciente, vez que consciente e lúcido ele ainda tem autonomia – e tal princípio fala mais alto.
Timi, por sua vez, considera que a questão não deveria ter sido resolvida no âmbito jurídico, sendo o melhor caminho procurar alguém ligado ao paciente para tentar, de maneira esclarecida, fazê-lo mudar de pensamento. “Podia ser a família, o médico, talvez um amigo, um religioso ou até um chefe. Você pode ter várias pessoas que vão tentar demovê-lo da ideia, mas não é possível obrigá-lo a fazer nada”.
Mais do que se intrometer nas decisões médico-familiares, para os especialistas consultados, o Estado deveria respaldar essas relações, outorgando um diploma legal capaz de conferir segurança jurídica. Nunca é demais lembrar que, no Brasil, não compete ao Judiciário a construção de leis.