Os ministros do STF Luis Fux e Luís Roberto Barroso: ativismo judicial| Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil

Tão presentes no debate público brasileiro quanto o Supremo Tribunal Federal (STF) são as acusações de que a corte tem invadido espaços e competências que pertenceriam aos outros dois poderes. A preocupação com o ativismo judicial acompanhou o ganho de protagonismo do tribunal nas últimas duas décadas. Embora juristas discordem sobre o conceito – afinal, a divisão das competências entre os poderes nem sempre é clara – é crescente a mobilização em prol de um projeto de lei (PL) visto como antídoto ao problema: o PL 4754/2016, de autoria conjunta de vários deputados da Frente Parlamentar Evangélica. O deputado Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ), primeira das assinaturas, confirmou que ele será desarquivado na próxima semana. 

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Um dos autores do projeto e dos mais atuantes parlamentares da bancada evangélica, o deputado João Campos (PRB-GO) explicou à Gazeta do Povo que a urgência na tramitação deve refletir a postura do STF. As declarações do presidente da corte, ministro Dias Toffoli, de que o Judiciário não deveria interferir nas atividades dos outros poderes são vistas como bastante positivas, mas, para o deputado, ela tem de ter reflexos na postura do tribunal. 

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“Há toda uma pauta, além da postura nos julgamentos, que vai dizer se a posição dele [de Toffoli] sensibilizou os outros ministros ou não. Temos na pauta a questão da homofobia, o aborto em caso de zika, a liberação do uso de drogas. Então, vamos ter a grande oportunidade de ver se todo esse discurso caminha para um comportamento menos ativista e, se não houver harmonia entre o discurso e aquilo que vai acontecer, nós vamos ter de dar um tratamento mais célere a este projeto de lei”, afirmou. 

Para muitos deputados novatos, o PL é prioritário. À Gazeta do Povo, deputado Filipe Barros (PSL-PR) declarou que discutir o projeto é “urgente”. Segundo o ele, “hoje o STF quer impor à sociedade pautas que não são de competência do Judiciário, mas do Legislativo, e a sociedade está esperando do Congresso o debate moral”. 

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Quem também apoia o PL é o deputado Kim Kataguiri (DEM-SP): “usurpar a competência de outro poder da República é um dos piores crimes que se pode cometer. Não faz sentido que não haja punição prevista em lei”, afirmou à reportagem. Em agosto, Kataguiri já participava, em São Paulo, acompanhado de colegas do MBL, dos eventos a favor do projeto na Câmara Municipal de São Paulo. 

A deputada Chris Tonietto também vê urgência em aprovar o projeto. “Essa têm de ser uma das primeiras medidas a serem adotadas pela nova legislatura”, disse à Gazeta do Povo. “É necessário que haja um reequilíbrio entre os poderes, o Judiciário não pode usurpar nossos poderes como tem feito”, afirmou. 

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O que diz o projeto 

O texto é bem simples: ele inclui entre os crimes de responsabilidade dos ministros do STF, previstos na Lei 1.079/1950 — a mesma que fundamentou o impeachment dos ex-presidentes Fernando Collor de Mello e Dilma Rousseff — a hipótese de “usurpar competência do Poder Legislativo ou do Poder Executivo”. O PL tramitou em 2016 sem fazer muito barulho, mas chegou a receber um parecer favorável do deputado Marcos Rogério (DEM-GO), em setembro daquele ano, na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC). 

No relatório, Rogério destaca que competências antes delegadas ao Legislativo foram invadidas pelo STF, como nos casos em que o Supremo “autorizou o aborto de fetos anencefálicos, instituiu a união estável e o casamento de casais homoafetivos, regulou minuciosamente a utilização de algemas pelas forças da ordem, proibiu o nepotismo na Administração Pública, instituiu a fidelidade partidária, criou um verdadeiro estatuto de demarcação de terras indígenas, e validou a verticalização das alianças partidárias pré-eleitorais”. 

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O deputado destacou também que o Executivo também viu suas competências serem usurpadas. “Disso são exemplos mais eloquentes as políticas jurisprudenciais ordenando o cumprimento direto de direitos de segunda geração, tais como o direito à saúde e à educação. Por essa via, o STF interferiu diretamente na formulação de políticas públicas”, escreveu. 

O projeto acabou de escanteio, porque muitas lideranças consideravam que ele podia ser visto como mais uma tentativa de ataque do Legislativo contra o Judiciário em um contexto de avanço da operação Lava Jato. Mas, no segundo semestre do ano passado, uma forte campanha e católicos e evangélicos juntou-se aos deputados na internet. 

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Recorrendo a vídeos no Youtube, eventos públicos em Câmaras Municipais e Assembleias Legislativos e correntes de WhatsApp, inúmeros influenciados digitais encamparam o PL 4.754/2016. O vídeo mais visto no Youtube sobre o tema, que já bateu 150 mil visualizações, é do canal do ensaísta e documentarista conservador Bernardo Pires Küster. 

A mobilização de cima para baixo, aos moldes do Movimento Escola sem Partido, também deu as caras. No espaço de dois meses, manifestaram apoio ao projeto as Câmaras Municipais de Três Rios/RJ, Descalvado/SP, Arapongas/PR, Sete Barras/SP, São José do Rio Preto/SP, Sapiranga/RS, Presidente Venceslau/SP, Várzea Paulista/SP, Araguaína/TO, Iperó/SP, Guarulhos/SP, Itaí/SP, Araçoiaba da Serra/SP, Auriflama/SP, Lavrinhas/SP, Pirapozinho/SP, Piracicaba/SP, Pirajuí/SP e Cruzeiro/SP. 

Dúvidas e dificuldades 

O juiz Alexandre Semedo, membro do Movimento Magistrados para a Justiça (MMJ), concorda em linhas gerais com a finalidade do projeto de lei, porque enxerga uma crescente percepção na sociedade de que o Judiciário está avançando o sinal. “Historicamente, o Poder Judiciário sempre foi o fiel da balança do equilíbrio entre os poderes – e não pode acontecer, sob pena de que a República se inviabilize, de se transformar ele próprio em um centro gerador de instabilidade”, diz. 

Semedo explica que a redação do projeto cria um tipo aberto, sem esclarecer o que seria a usurpação de poder. “Isso traz a vantagem de permitir ao Poder Legislativo efetivamente um controle mais amplo, mas traz a desvantagem de tornar o projeto de lei mais aberto a críticas, justamente porque, sem saber como seriam esses atos concretos de usurpação legislativa ou executiva, essa abertura do tipo penal poderia levar a um enfraquecimento geral do Poder Judiciário para além do que seria desejável”, diz. 

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Já Rubens Glezer, doutor em direito pela USP e coordenador do projeto Supremo em Pauta, da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP), é crítico do projeto justamente porque deixa um termo amplo demais ao arbítrio de uma das partes do jogo. Usurpação seria tudo aquilo que o Congresso considerar que for. 

“Essa é uma tentativa de criminalizar o conflito que é próprio da separação de poderes, em que os poderes se relacionam em uma forma de colaboração competitiva. O sistema é desenhado de forma que a deliberação política seja atravancada por diferentes instâncias”, explica. “A Constituição é desenhada para ser um sistema organizado de desconfiança mútua”, completa. 

Glezer aponta também a falta de clareza no projeto: se porventura o STF decidisse por unanimidade uma questão, como foi no caso na equiparação legal da união entre pessoas do mesmo sexo, isso daria ao Congresso o poder de fazer o impeachment de todos os ministros do Supremo? “Esse projeto parece muito mais um projeto de perseguição política do que um mecanismo republicano de controle”, afirma. 

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Ele aponta um desequilíbrio na Lei 1.079/1950 que dá apenas ao Senado a participação no processo de impeachment de ministros do STF. “Isso facilita a blindagem de um ministro que age irresponsavelmente, mas que consegue se blindar por acordos com esses atores — ou, havendo a intenção desses atores específicos repudiarem uma agenda de um ministro, isso permite a esses atores tirarem esse ministro”, diz. 

Semedo, por outro lado, avalia que até existe a chance de o STF entender que a lei é inconstitucional, porque não garantiria o equilíbrio dos poderes, estaria afetando esse equilíbrio. “Mas isso poderia gerar a impressão na sociedade brasileira de que o STF estaria interpretando uma lei em seu próprio favor, o que não seria algo fácil de ser levado adiante”, pondera. 

Glezer também reconhece que nem sempre é fácil para o STF dar uma decisão, a depender da conjuntura, mas vê nisso justamente uma razão para rejeitar o PL 4754/2016. “O mecanismo mais simples que o Congresso tem para reivindicar sua autoridade frente ao Supremo ter derrubado uma legislação é fazer a legislação de novo. Aí você aumenta a tensão. O Congresso pode fazer a lei de novo, ou aprovar uma emenda que contrarie uma decisão do tribunal, e não é óbvio que o Supremo vá conseguir derrubar novamente”, diz.