Acompanhar o período final da vida de uma pessoa querida costuma ser uma jornada complexa. Se o paciente tiver uma doença grave que o impossibilite de expressar suas próprias vontades, a situação pode ser ainda mais difícil. Muitas vezes familiares e equipe médica se veem numa encruzilhada: como essa pessoa gostaria de ser tratada em seus últimos dias?
Existe um documento, ainda pouco conhecido pelos brasileiros, em que as pessoas podem decidir de maneira prévia quais procedimentos médicos e terapêuticos aceitam ou não ser submetidas caso estejam nessa situação. Trata-se do testamento vital, também conhecido como diretrizes antecipadas de vontade.
“O testamento vital é um documento em que a pessoa define cuidados, tratamentos e procedimentos médicos que deseja ou não para si mesmo. Sua importância está em buscar a autonomia e a dignidade do paciente para tomar decisões que são relevantes para ele no momento de uma doença que ameaça a sua vida”, explica Bárbara Bowoniuk Wiegand, advogada e especialista em Direito Médico.
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Há quem diga por exemplo, que preferiria falecer em casa, perto dos familiares, do que em um hospital. Desejos como esse também podem ser expressos nas diretrizes antecipadas.
“É possível incluir isso e muito mais, desde aspectos técnicos da medicina como medicação, procedimentos e tratamentos, até aspectos pessoais. Quanto mais específico, melhor. Alguns exemplos do que poderá aparecer no testamento vital são: o que o paciente considera como conforto, o tipo de música que ele gostaria de ouvir, se quer deixar a barba crescer ou fazer a barba uma vez na semana, se tem uma religião e gostaria de orar ou receber visita de alguém, que roupas ele gostaria de usar. É possível ainda nomear um procurador em saúde, que poderá ser um familiar, um amigo, uma pessoa de confiança, que poderá tomar decisões caso apareça uma situação que não está prevista no testamento vital”, aponta a advogada.
Esse tipo de testamento pode ser feito em qualquer momento da vida, desde que a pessoa seja maior de idade e tenha capacidade de discernimento.
“[a pessoa] Precisa ter condições de exprimir sozinha sua própria vontade”, diz Luciana Dadalto, advogada que estuda o tema há mais de dez anos. “É importante deixar claro que o documento só terá eficácia e só vai ser usado quando essa pessoa estiver em uma situação de terminalidade e não puder manifestar sua própria vontade”, completa.
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A advogada, que administra o portal Testamento Vital desde 2012, conta que não há uma cartilha oficial que indique como o documento deve ser feito, por não haver uma lei específica sobre o tema no Brasil. Ela considera fundamental, entretanto, que o documento seja redigido após uma consulta com um médico de confiança e com um advogado, para garantir que as diretrizes antecipadas respeitem a ética médica e evitar que haja disposições contra o ordenamento jurídico brasileiro.
Apesar de não ser obrigatório, Luciana recomenda também a lavratura de uma escritura pública em cartório de notas para fornecer mais segurança jurídica. “Estando pronto o testamento vital, o responsável tem que deixar o documento com pessoas que sejam de sua confiança, para que no momento em que ele precisar ser usado, essas pessoas entreguem aos profissionais de saúde”, expõe.
A morte em seu curso natural
A ideia do testamento vital é garantir uma “morte digna” a quem não pode se expressar em decorrência da doença, evitando tratamentos desnecessários — que podem apenas gerar dor e sofrimento ao paciente terminal — para o prolongamento artificial da vida, prática conhecida como distanásia.
É importante salientar que o documento não possibilita a prática da eutanásia, que é ilícita no Brasil. As vontades do paciente se referem à ortotanásia, que é a morte em seu curso natural. Para Bárbara, apesar do avanço das discussões sobre os cuidados paliativos — tratamentos ativos e integrais prestados à pessoa com doença grave, progressiva e que ameaça a continuidade da vida —, ainda é preciso caminhar para a efetiva garantia da autonomia dos pacientes e de suas decisões.
“Os médicos são formados para ‘curar’ e alguns ainda veem no ‘cuidar’ um fracasso. O trabalho das equipes multiprofissionais e o desenvolvimento da humanização nos atendimentos, porém, têm sido louvável”, avalia.
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Na visão de Luciana, a família e os serviços médicos devem cumprir os desejos do paciente expressas no testamento vital, ainda que não haja obrigação legal.
“Ao meu ver essa obrigação existe dentro de uma interpretação de princípios constitucionais”, assegura.
Bárbara complementa que “é muito importante conversar com a família sobre o que queremos e o que não queremos, o que nos é fundamental e o que definitivamente não desejamos caso não possamos mais decidir sobre nossa saúde em algum momento das nossas vidas. A vontade manifestada no testamento vital prevalece sobre a vontade da família para situações de terminalidade da vida. Ou seja, por mais que os familiares não concordem, o que está previsto no documento ou o que foi combinado com o médico assistente e anotado no prontuário, deverá valer”.
Legislação
O testamento vital é regulamentado em quase toda a Europa, nos Estados Unidos e em alguns outros países do continente americano, como México, Argentina e Uruguai. No Brasil, ainda não existe legislação específica sobre o tema, mas isso não significa que o documento não tenha validade por aqui. A Constituição brasileira contempla os princípios da dignidade da pessoa humana, da autonomia privada e a proibição constitucional de tratamento desumano.
“Significa dizer que a Lei Maior do Brasil reconhece o direito à vida desde que esta seja digna e mais, reconhece a autonomia da pessoa. Assim, obrigar uma pessoa a se submeter a um tratamento que ele não deseja quando este não terá função de lhe devolver uma vida plena é degradante”, afirma Luciana em seu portal.
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Em outubro de 2012, o Conselho Federal de Medicina aprovou a resolução nº 1995/12 que permite ao paciente registrar seu testamento vital na ficha médica ou no prontuário. Apesar do Poder Judiciário ter reconhecido a constitucionalidade da resolução, Luciana pontua que apenas uma lei específica colocaria fim aos questionamentos sobre a validade do documento, além de poder regulamentar questões específicas, como o procedimento de registro, prazo de validade e idade mínima do outorgante.
Luciana acredita que as discussões sobre o testamento vital ainda são pouco avançadas no Brasil por uma questão cultural.
“Como o testamento vital é um exercício de pensamento sobre a própria finitude, fazer o documento significa encontrar ou confrontar a própria mortalidade. E nós temos uma cultura em que achamos que conversar sobre morte é atraí-a. Portanto, as pessoas estão sempre fugindo desses temas. Países que têm menos viés religioso na cultura têm mais facilidade de trabalhar a autonomia. Como nossa cultura é extremamente alicerçada à religião, existe um pouco de dificuldade em aceitar que nós mesmos podemos ser atores e decisores da nossa vida e do nosso fim de vida”, opina.