Moro durante sua cerimônia de posse como ministro da Justiça.| Foto: Nelson Almeida/AFP

O primeiro ministro do novo governo a tomar posse foi Sergio Moro, da Justiça e Segurança Pública. Em seu discurso, ele anunciou que pretende enfrentar pontos de estrangulamento do sistema judiciário. Uma das medidas que Moro mencionou vem provocando polêmica: a adoção do plea bargain, o sistema de barganha que responde por mais de 90% das condenações criminais, tanto estaduais quanto federais, dos Estados Unidos.

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“Propostas simples, mas eficazes, como, entre outras, a previsão de operações policiais disfarçadas para combater o crime, proibição de progressão de regime para membros de organizações criminosas armadas, e o plea bargain, para que a Justiça possa resolver rapidamente casos criminais nos quais haja confissão”, o ministro listou, sem, por enquanto, apresentar mais detalhes.

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Trata-se de um mecanismo muito tradicional nos países cuja legislação tem origem nos países de sistema common law - de forma simplista, onde o direito se desenvolve por meio das decisões dos tribunais, e não por atos do Legislativo ou Executivo. É adotado há séculos pelos americanos e funciona da seguinte forma: um acusado recebe a proposta de reduzir sua pena caso confesse. Nessa situação, ele evita o desgaste de passar por um tribunal com júri e a promotoria evita que o caso sobrecarregue os tribunais. 

O acordo precisa ser aprovado por um juiz, que tradicionalmente aceita os termos oferecidos pela promotoria. E não vale para casos de crime organizado – diferentemente da delação premiada, em que o acusado é estimulado a entregar outros criminosos, o plea bargain se aplica a crimes individuais. Será que funcionaria no Brasil?

Críticas

Para o advogado André Luís Callegari, doutor em Direito Penal pela Universidade Autônoma de Madrid, a resposta é “não”. Ele afirma que desde 1995 o Brasil já utiliza a ferramenta, mas para crimes de baixa gravidade, no Juizado Especial Criminal. 

“O que nós vemos é que, na prática, a proposta de acordo já vem pronta, sem que o acusado saiba se a acusação tem todas as provas necessárias para condená-lo”, conta. 

Mesmo nos Estados Unidos, diz Callegari, a medida é criticada porque estimula a condenação de inocentes: “uma das estratégias usadas lá é a de a promotoria denunciar [o acusado] por uma série de delitos, mais do que seria o normal, e depois apresentar um acordo retirando várias das denúncias”. O resultado, afirma, é que a população carcerária americana é a maior do planeta – são 2,2 milhões de detentos. O Brasil fica em terceiro no ranking global, com 726 mil presos, e, seguindo esse raciocínio, poderia ver sua população carcerária aumentar ainda mais. 

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“Se não houver critérios e limites, vai gerar uma indústria de condenações”, afirma o advogado criminalista Fabio Tofic, presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD). “A experiência americana, que adota o modelo de regulação mínima de acordo, no qual não há limites para a barganha, acaba induzindo muita gente que não deveria ir presa a celebrar o acordo para evitar penas em patamares estratosféricos”.

Mas seria possível que o incentivo para fazer um acordo estimule inocentes a confessar crimes? Em 2013, dois pesquisadores recriaram a situação de barganha para observar o comportamento dos envolvidos. Lucian Dervan, da Universidade da Georgia, e Vanessa Edkins, do Instituto de Tecnologia da Flórida, selecionaram estudantes universitários e os chamaram para fazer um teste, sem saber que faziam parte de um experimento.

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Durante a atividade, apareceram colegas que desrespeitaram as regras e usaram de “cola” para realizar a prova. Esses estudantes foram instruídos pelos pesquisadores a agir dessa forma. Então, um professor, que também fazia parte do experimento, fingia perceber que o grupo estava descumprindo as normas e chamavam a todos para um interrogatório. Ainda sem saber que faziam parte de um estudo, os estudantes inocentes se viram na situação de perderem privilégios acadêmicos reais por culpa dos colegas.

Para todos foi oferecida a chance de evitar punições, desde que confessassem. Entre os culpados, 90% aceitou o acordo. Já entre os inocentes, 56%, mais da metade, também confessou para receber penas menores, mesmo sabendo que não haviam cometido crime algum.

Elogios

Por outro lado, a proposta de adotar o plea bargain para crimes de maior gravidade conta com o apoio de uma série de instituições, que enxergam nela a possibilidade de desafogar os tribunais brasileiros e evitar a tramitação longa de casos em que o acusado já confessou.

O Fórum Nacional de Juízes Criminais (Fonajuc) afirmou, em nota, que “entende que as técnicas de Negociação no Direito Penal e Processual Penal são instrumentos relevantes e fundamentais para concretização de um Sistema de Justiça mais efetivo no país”. 

A associação, contudo, solicita ajustes na maneira como o mecanismo é adotado nos Estados Unidos: a” construção de similar sistema no Brasil precisa observar o contexto em que o país se encontra, não podendo subverter a uma proteção deficiente da sociedade. Ao adaptar o sistema de plea bargain no Brasil, o Fórum compreende, entre outros, pela necessidade da previsão do Juiz Natural deixar de homologar o acordo quando a pena convencionada se revelar manifestamente insuficiente para atender sua finalidade.” 

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O Conselho Nacional de Procuradores Gerais dos Estados e da União (CNPG), que há um ano já havia encaminhado ao Congresso Nacional uma proposta pedindo a adoção do plea bargain no Brasil, também se manifestou favoravelmente. 

“Não se pode mais ignorar a dificuldade que tem o Judiciário de solucionar, tempestiva e satisfatoriamente, todos os conflitos que a ele são levados”, alegou, em nota. “A Justiça Negocial aparece como alternativa legítima, cumprindo, de forma célere e segura, a função dirimente do conflito”, apontou a associação.

A respeito do risco de imputar penas a inocentes, o advogado Daniel Gerber, mestre em ciências criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), lembra que esse problema já existe, por outros motivos.

“Qualquer modelo poderá gerar injustiças em sua aplicação concreta como, por exemplo, condenações injustas de pessoas cuja Defensoria Pública responsável sequer pode atender adequadamente em virtude de déficit de recursos e pessoal. Eventuais acordos injustos existirão, mas em menor número do que o saldo atual de irregularidades”, afirma Gerber.

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Na opinião dele, a adaptação de uma ferramenta típica de países de língua inglesa não é difícil. 

“No nosso caso, basta que se delineiem as regras para que haja a negociação e o acordo, nos moldes do que já se fez com a legislação da colaboração premiada”, opina.

Como afirma Eugenio Pacelli, criminalista e ex-procurador da República, “toda forma de composição de conflitos facilita a resolução de demandas no Poder Judiciário”. O especialista lembra que existe um projeto de lei, parado no Congresso Nacional, que prevê uma solução para o problema. 

“O projeto também prevê um procedimento abreviado, que contempla solução por composição, e de modo bastante consequente, por reconhecer que a renúncia ao exercício das garantias processuais individuais, que é o que ocorre no bargaining, não deve avançar sobre a privação da liberdade, a não ser com redobradas cautelas. Esperamos que assim também se proceda no projeto ou projetos que virão pela pena do novo ministro da Justiça”.

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Tendência global

“A ampliação do espaço negocial é uma tendência inexorável, caminharemos para ela como os demais países já o fizeram e estão fazendo”, afirma o advogado Aury Lopes Jr, professor da PUC-RS. “O principal argumento a favor é de natureza ‘eficientista’ e econômica: desafogar a Justiça e tornar mais barato para o Estado o sistema de administração da justiça criminal”. 

Para ele, esse é um problema grave: “Não há compromisso ético com a realização de justiça e o julgamento justo. É o afastamento do Estado juiz de uma função essencial, atribuindo ainda, poderes excessivos para o Ministério Público”, afirma. “A negociação no processo penal é perversa, pois pune o inocente, que passa a ser obrigado a negociar para evitar o ‘risco’ do processo ou mesmo para evitar acusações abusivas e excessivas”.

Mas, de fato, o plea bargain vem sendo adotado por uma série de países que não seguem a tradição jurídica inglesa – caso de Singapura, China, Estônia, França, Itália, África do Sul e Rússia. De acordo com um estudo da ONG Fair Trials, publicado em 2017, em 90 nações o uso de acordos de barganha triplicou desde 1990. Todos esses países encontraram nessa ferramenta uma forma de agilizar e desafogar o Judiciário, mas em cada um desses lugares o plea bargain continua provocando polêmica.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]