| Foto: Unsplash /Reprodução

Um dos meus primeiros contatos com a chamada tradição norte-americana da liberdade de expressão foi em uma disciplina do professor Ronaldo Porto Macedo Junior, quando eu ainda estava no mestrado, na Faculdade de Direito da USP. À época do curso, os textos abordados mexeram profundamente com as ideias que até então eu tinha a respeito da liberdade de expressão. Recém-egressa da graduação, era a primeira vez que eu ouvira falar de uma defesa tão contundente desse direito. Hoje vejo que a insistente reflexão que o professor Ronaldo tem feito sobre o tema consiste em uma grande contribuição para um período no qual muito se fala (e se sente na pele) os efeitos da patrulha ideológica, seja nas Universidades, na internet ou nas manifestações públicas.

CARREGANDO :)

Leia também: 5 decisões da Suprema Corte que protegem o discurso de ódio. E 2 que não

Com as eleições de 2018 se aproximando e com o consequente acaloramento dos debates, acredito ser uma boa ideia resgatar as lições da disciplina, cujo principal objeto consistia no estudo das garantias que a liberdade de expressão recebe nos Estados Unidos, muito mais amplas do que aquelas observadas no Brasil.

Publicidade

A esse respeito, não é exagero afirmar que existem duas diferentes tradições institucionais de tratamento à liberdade de expressão: de um lado, temos um modelo identificado, em larga medida, com a tradição europeia de resolução judicial de conflitos, marcada pela teoria da proporcionalidade; de outro lado, está o método norte-americano. A sedutora ideia geral em torno da teoria da proporcionalidade, fortemente incorporada pelos tribunais brasileiros, consiste, de forma resumida, no seguinte raciocínio: interesses públicos e privados, uma vez que se choquem em um caso concreto, devem ser balanceados, de forma que cada um deles seja preservado o máximo possível. Segundo esse ponto de vista a liberdade de expressão poderia ser restringida caso conflitasse com algum outro tipo de interesse dotado de maior peso.

Neste texto, não tocarei nos problemas inerentes ao procedimento da proporcionalidade (como a sua tendência de flexibilização de direitos fundamentais em prol de objetivos políticos e sociais), tampouco no quão problematicamente essa ideia tem sido utilizada no Brasil. Ao invés disso, acredito que o debate brasileiro em torno da liberdade de expressão poderá ser enriquecido com a metodologia norte-americana.

Nos Estados Unidos, o tratamento que os tribunais têm fornecido à liberdade de expressão consiste, basicamente, na realização de testes em torno do discurso. Dito de maneira muito simples, tais testes têm como objetivo verificar se determinado discurso está, ou não, dentro da esfera de proteção conferida pela Primeira Emenda da Constituição, que proíbe qualquer restrição legal à liberdade de expressão, nos seguintes termos: “O Congresso não fará lei relativa ao estabelecimento de religião ou proibindo o livre exercício desta; ou restringindo a liberdade de expressão, ou de imprensa; ou o direito do povo de se reunir pacificamente e dirigir petições ao governo para a reparação de seus agravos”.

Leia também: Discurso de ódio está liberado... desde que seja contra a direita

Do simples conteúdo da Primeira Emenda, já se pode extrair um dado primordial para entender o tipo de raciocínio que orienta o tratamento da liberdade de expressão nos Estados Unidos: neste país, o debate jurisprudencial cinge-se a responder se o discurso se enquadra ou não na proteção conferida constitucionalmente e – o dado mais importante – uma vez enquadrado, o discurso não pode ser restringido pelo Estado, por mais absurdo e odioso que seu conteúdo seja.

Publicidade

Talvez a ilustração mais evidente da excepcionalidade norte-americana quanto a essa questão esteja no tratamento daquilo o que se denomina discurso de ódio (hate speech), portador de um ataque ofensivo a determinado grupo de pessoas, especialmente em virtude de sua raça, etnia, orientação sexual ou religião. Isso porque, diversamente do que ocorre na maior parte das democracias contemporâneas, essa espécie de discurso extremo não é criminalizada naquele país.

Um clássico exemplo da maneira singular com que questões desse tipo são tratadas nos Estados Unidos está no chamado “caso Skokie”. O fato diz respeito ao seguinte: o partido Nacional-Socialista da América manifestou formalmente a intenção de promover uma marcha nazista na cidade de Skokie, em Illinois, cuja população é predominantemente judaica e, grande parte dela, sobrevivente do Holocausto. Após uma longa contenda judicial que chegou à Suprema Corte em 1977, o direito do partido a promover a marcha foi garantido com base na Primeira Emenda da Constituição. A despeito dos inegáveis danos emocionais provocados aos moradores, considerou-se que, inexistindo perigo concreto à segurança social – já que os manifestantes asseguraram o caráter pacífico da marcha – não havia motivos consistentes para o cerceamento da liberdade de expressão. As teorias doutrinárias que endossam o posicionamento judicial no caso Skokie são muitas e, variando apenas em grau, tendem a convergir para uma conclusão única: a liberdade de expressão é, a um só tempo, instrumento para a vivência da autonomia individual plena e requisito para a legitimidade democrática. Nesse sentido, Robert Post e Edwin Baker são possivelmente os teóricos mais contundentes.

Tanto Post como Baker, contudo, não são insensíveis aos efeitos prejudiciais da expressão do ódio e não concordam com o conteúdo de discursos racistas e misóginos. Entretanto, dentre as muitas reflexões que propõem, trazem o interessante argumento de que esse tipo de discurso radical contribui para o mercado de ideias, promovendo discussões que de outro modo não viriam à tona e que podem mesmo contribuir para um recrudescimento da luta e da visibilidade social dos grupos atacados. Essa, é claro, consiste numa conclusão bastante controvertida, mas que conta com uma vantagem inegável: ela retira do Estado a tarefa de estabelecer os valores sociais a serem tutelados no discurso e não interfere na discussão própria da sociedade civil, contando com seu bom senso e com sua capacidade de discernimento.

Ainda que sem o aprofundamento doutrinário e as leituras bibliográficas que nos foram ofertadas quando do curso, proponho, neste texto, a mesma reflexão que me coloquei anos atrás: e se estivéssemos abertos a pensar a liberdade de expressão como fazem os americanos? Obviamente, não estou sugerindo que se defenda o teor do discurso de ódio: ele deve ser combatido. Mas acredito que não cabe ao Estado esse combate. Porventura a sociedade como um todo não seria capaz de distinguir entre um discurso racional e outro abominável? Se o Estado cercear o discurso ele estará de fato colaborando com um ambiente democrático ou contribuindo para o sufocamento da questão, que, uma vez reprimida, poderá aparecer de maneira ainda mais forte em um outro momento? Ou ainda: a despeito de qualquer instrumentalidade democrática, o direito à liberdade de expressão não deveria ser garantido simplesmente pelo fato de que ele consiste em um legítimo exercício da autonomia e da manifestação da identidade individual?

Na doutrina norte-americana, as respostas são predominantemente no sentido de que às pessoas deve ser permitido que manifestem suas opiniões e crenças independentemente de seu teor. Alguns autores, a exemplo de Robert Post, estabelecem zonas diferenciadas, afirmando que a liberdade com tal amplitude só se aplica à esfera do discurso público, quando estão em pauta assuntos referentes aos interesses políticos de toda a sociedade - nesse sentido, ilustrativamente, escolas primárias e ambientes de trabalho poderiam estar sujeitos a algum tipo regulação. Endossando a conclusão liberal, Ronald Dworkin afirma – de forma particularmente chocante – que em uma democracia, ninguém tem o direito de “não ser insultado ou ofendido” e arremata: “se minorias frágeis e impopulares desejam ser protegidas de discriminação legal e econômica pelo direito [...] elas devem estar dispostas a tolerar qualquer insulto de pessoas que se opõem a esta legislação [...]”.

Publicidade

É claro, contudo, que existe uma corrente doutrinária que se opõe a essa posição dominante e propõe a regulação do discurso de ódio. Nesse sentido, Jeremy Waldron é um dos principais autores a proporem critérios para a restrição da liberdade de expressão. Para Waldron, os argumentos filosóficos em defesa da liberdade de expressão são “automáticos, impulsivos e impensados” e o discurso de ódio deveria ser restringido com vistas à proteção da dignidade de grupos vulneráveis, cuja sensação de segurança e igualdade perante os demais cidadãos seria prejudicada sem a regulação. Seus críticos, por sua vez, replicam: e o que dizer da dignidade daqueles que têm sua autonomia restringida por não poderem se expressar no ambiente público, a despeito do conteúdo de suas afirmações? Ou ainda: a dignidade, essa palavra cuja conotação é tão retórica e difusa, é suficiente para justificar a limitação ao discurso?

Leia também: Bernard Williams e os problemas lógicos do aborto

Obviamente que, mesmo nos Estados Unidos, nem tudo é permitido em nome da liberdade de expressão. Nos precedentes da Suprema Corte, um dos mais usuais argumentos para a restrição do discurso está na “teoria do perigo claro e iminente”, pela qual uma determinada forma de expressão pode ser cerceada caso seja identificada uma tendência real e um efeito razoavelmente provável de levar a consequências práticas gravosas. De igual modo, ameaças e ofensas diretas a pessoas determinadas também não são abarcadas pela proteção da Primeira Emenda e, nesse sentido, podem ser cerceadas.

Feitas considerações, penso que uma boa forma de concluir é com uma anedota contada por Bernard Williams sobre um comitê do qual fez parte na Inglaterra, por ocasião de uma reforma na legislação inglesa sobre a pornografia. Williams relata que, um determinado dia, um advogado norte-americano participou das discussões e fez uma longa explicação sobre a Primeira Emenda da Constituição de seu país e como o debate jurídico nos Estados Unidos em torno da pornografia versava sobre a possibilidade de classifica-la ou não como uma forma de “expressão”. Depois que o advogado foi embora, Williams conta que um dos integrantes do comitê disse aos presentes: “Eu acho que eu deveria explicar uma coisa a este comitê: os americanos acreditam em direitos”.

* Ana Luiza Rodrigues Braga Mestre e Doutoranda em Filosofia do Direito pela USP

Publicidade