Tema de grande relevância e objeto de especial referência nos noticiários, mais ainda após o início da denominada Operação Lava Jato, a Lei de Improbidade Administrativa (LIA) completou, em 2017, 25 anos.
Entre maio de 1995 e julho de 2016, os tribunais brasileiros julgaram 6.806 processos envolvendo atos de improbidade administrativa, que resultaram em 11.607 condenações definitivas, sem possibilidade de recursos. Deste total, 6,7% foram aplicadas a empresas, enquanto a imensa maioria (93,3%) destinou-se a pessoas físicas, sobretudo a servidores públicos. Dentre as principais condenações, destacam-se as de ressarcimento dos prejuízos causados ao erário e aquelas em que foram aplicadas multas civis, conforme os dados apresentados pelo Instituto Não Aceito Corrupção, em parceria com a Associação Brasileira de Jurimetria (ABJ).
Reverenciada como um dos mais importantes instrumentos normativos de combate à corrupção no âmbito da Administração Pública nacional, e recentemente modificada pela Lei Complementar 157/2016, a Lei de Improbidade Administrativa ainda é objeto de várias e intensas discussões, principalmente sob o pretexto de lhe ensejar maior efetividade, ponto este que merece reflexão.
Além disso, tem-se assistido a uma série de mudanças na interpretação da LIA, a exemplo do que se passou em 2012, quando o Superior Tribunal de Justiça (STJ) superou o entendimento até então divergente sobre os parâmetros para a decretação, em sede de antecipação de tutela, da indisponibilidade de bens dos réus em ações de improbidade.
De qualquer modo, as transformações mais radicais têm sido propostas num cenário recente, a que chamamos de pós-Lava Jato, caracterizado, dentre outras coisas, por tentativas explícitas de se implementar por aqui institutos criados no e para o sistema jurídico norte-americano. E, embora ela se trate de uma investigação inicialmente criminal, seus efeitos nas ações de improbidade administrativa são notórios.
A mais recente delas se cuida da controversa celebração, pelo Ministério Público, de acordos de colaboração em ações de improbidade, previsão esta expressamente vedada pelo art. 17, §1º, da LIA, e rechaçada recentemente pelo TRF-4, em julgamento de ação envolvendo a construtora Odebrecht. A despeito disso, a discussão e a pressão por mudanças persistem.
Veja-se, a propósito, a Resolução nº 1, de 15 de maio de 2017, do Conselho Superior do Ministério Público do Estado do Paraná (CSMPPR), que estabeleceu os parâmetros para composição de acordos de colaboração e, logo, para a fixação das sanções cominadas aos atos de improbidade administrativa. A defesa desse entendimento, segundo o qual tais acordos seriam válidos, sustenta-se dentre outras coisas, na ideia de que se teria constituído um sistema legal de defesa da moralidade da Administração Pública, em que estaria explicitamente previsto o acordo de leniência para pessoas jurídicas (previsto na Lei n 12.846/2013 – Lei Anticorrupção).
Por analogia, tal possibilidade, afirmam, estender-se-ia também às pessoas físicas, de modo que o art. 17, §1º, da LIA, teria sido tacitamente revogado. Além disso, como se admitem acordos de colaboração na esfera penal, afirma-se, seria mesmo ilógico inadmiti-los em ações de improbidade administrativa. Uma análise jurídica pormenorizada da celebração de tais acordos exigiria um texto à parte. De todo modo, certo é que, tal como no Direito Processual Penal, essa transposição de institutos não deve(ria) vir desacompanhada de reflexões a respeito das características do sistema processual brasileiro, de matiz não adversarial e, por isso, sobremodo diverso do norte-americano.
A Lei de Improbidade Administrativa, tal como as ações judiciais dela derivadas, é, como mencionamos, mecanismo necessário de combate a uma corrupção que, há muito, constitui o modus operandi de um sem número de agentes públicos e privados brasileiros.
A rigor, uma das razões de sua criação é, justamente, a instituição de mecanismos de ressarcimento de valores ilicitamente retirados dos cofres públicos, com a consequente punição dos agentes responsáveis. A luta contra a corrupção, em suma, é um interesse social necessário e condição de possibilidade de uma democracia plena.
De qualquer maneira, porque é vinculada ao sistema constitucional brasileiro, a LIA deve ser vista também, senão principalmente, como um mecanismo de proteção de direitos fundamentais e de respeito ao devido processo legal, conquistas civilizatórias das quais não se pode abdicar sem o risco de se manterem plantadas as sementes de um autoritarismo não tão distante assim. Em circunstâncias normais, não seria preciso dizer que a importância do respeito a tais direitos cresce quando de processos que têm, de um lado, a poderosa máquina estatal e, de outro, o indivíduo. Numa palavra: tais processos devem tratar sobretudo da limitação do poder do Estado.
E, aqui, a Lava Jato, a despeito de todos os seus méritos, tem exercido um efeito deletério e sobremodo perigoso: sob o pretexto de um interesse legítimo, que é a luta contra a corrupção, corre-se o risco de se fazer sufragar uma cultura de direitos fundamentais que, embrionária, nem sequer chegou a ser verdadeiramente instituída no país.
Os exemplos são vários, quase todos eles derivados de um mesmo álibi retórico: nenhum direito fundamental é absoluto; logo, todos eles podem e devem ser relativizados para que se cumpra outro mandamento constitucional, a saber, a luta contra a impunidade. Por se tratar de um álibi retórico, o locutor que o apresenta se despe do dever de argumentar. A luta contra a corrupção e a impunidade, assim como o conhecido bordão “in dubio pro societate”, converteu-se em um verdadeiro coringa, utilizado para se obter qualquer coisa, pouco importando se o seu custo é o aniquilamento de direitos.
Citemos, para ficar em alguns, a defesa de provas ilícitas, não raras vezes produzidas por meio de violações a direitos fundamentais, tais como a intimidade (é o caso de provas obtidas por meio de interceptações telefônicas ilegais, transpostas em ações de improbidade), bem como a cada vez menos rara admissão de ações de improbidade e de condenações baseadas exclusivamente em depoimentos prestados em sede de acordos de colaboração premiada, o que parece ter como consequência mais imediata a própria diminuição dos esforços probatórios do Ministério Público. Há, ainda, entendimentos segundo os quais a decretação de indisponibilidade de bens dos réus em ações de improbidade seria um efeito automático do recebimento da petição inicial, o que contraria toda a dogmática da antecipação de tutela e, mais que isso, a própria sistemática de direitos fundamentais prevista constitucionalmente. E, por fim, não se deve olvidar os vários casos em que a própria aferição da lesão ao erário carece de um mínimo de detalhamento ou mesmo de critérios lógicos, desrespeitando, agora, uma dogmática consolidada em matéria de responsabilidade civil.
De um modo geral, o saldo desses vinte e cinco anos da LIA é positivo. Estamos melhores do que antes. A despeito disso, falta-nos, também aqui, a consolidação de uma cultura de respeito aos direitos fundamentais, em risco, agora, mais do que nunca na nossa curta história democrática. É essa cultura incipiente e sabidamente vulnerável que devemos defender nos próximos vinte e cinco anos.
* André Portugal é mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Coimbra e sócio-fundador de Klein Portugal Advogados Associados. Gabriel Castella é mestrando em Direito Administrativo na PUC-SP e sócio-fundador de Cim, Rocha e Castella Advocacia.
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