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Em 2017, o Brasil registrou uma média de 390 denúncias de violações aos direitos humanos por dia – 142,6 mil no total –, segundo balanço do Ministério do Trabalho. Os dados apontam que os públicos mais vulneráveis são crianças e adolescentes, idosos, pessoas com deficiência e a população LGBT. Mesmo assim, existe o senso comum de que tais direitos só existem para “defender bandido”, que se tratam, em realidade, de “direitos dos manos”, dentre outras denominações pejorativas. É preciso desmistificar a questão, que gera uma postura de mais violência quando mal entendida.

Ainda que sejam anteriores, no contexto internacional os direitos humanos surgem formalmente após a Segunda Guerra Mundial, ligados à criação da Organização das Nações Unidas (ONU). Em 1948, é elaborada a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que traz uma série de garantias, como a de que ninguém será submetido a tortura ou preso arbitrariamente. 

A urgência do assunto no período se deu por conta do regime nazista, que acabara de cair. Percebeu-se que os Estados, que teriam o dever primeiro de proteger seus cidadãos, poderiam muito bem se voltar contra seus próprios nacionais. Foi, então, criado um rol de direitos básicos, que todos as nações vinculadas à ONU deveriam proteger. 

‘De forma resumida, os direitos humanos são considerados os direitos mais fundamentais para a proteção de uma vida digna, e são definidos na seara internacional. Nacionalmente, eles são complementados por uma proteção constitucional’, explica Heloísa Fernandes Camara, professora das faculdades de Direito da UFPR e do UniCuritiba. 

Esse conjunto de direitos busca proteger os mais diversos aspectos da vida de uma pessoa, desde o direito à liberdade – de ir e vir, de crença, de expressão, etc. – até os direitos relacionados a grupos mais específicos, como os direitos das mulheres. Eles também podem ser individuais, como o direito ao trabalho, à educação e à saúde, e coletivos, como o direito ao meio ambiente equilibrado. 

O rol desses direitos, no caso brasileiro, dado o período imediatamente posterior à ditadura militar em que foi elaborada a Constituição Federal (CF) de 1988, é bastante amplo e contempla as chamadas “cláusulas abertas”. Significa dizer que a Carta Magna estabelece como direitos fundamentais não apenas os que estão expressos em seu texto ou são provenientes de tratados internacionais, mas também aqueles considerados implícitos, que não precisam sequer estar escritos para serem considerados como tal. 

Direitos para “bandidos”

Por mais que envolvam tanto direitos individuais quanto sociais e econômicos, é comum associar os direitos humanos àqueles que cometerem um crime. Muitas vezes, erroneamente, acredita-se que tais direitos se aplicariam a apenas essas pessoas. Heloísa afirma que, num primeiro momento, o ponto de vista histórico explica tal crença. Isso porque os direitos humanos tiveram um papel crucial para limitar o poder do Estado – e esse poder se manifesta de forma muito forte no aspecto penal.

“Um Estado absolutista é arbitrário, pode prender alguém sem justificativa, mesmo que essa pessoa não tenha cometido nenhum crime. Quando surgem as normas penais que trazem que o indivíduo só poderá ser preso se acusado de um crime, e nas condições previstas, o poder estatal é limitado”, afirma.

Na visão dela, contudo, ao trazer a questão para o tempo presente, existe também uma construção midiática, em especial dos programas policialescos, que acaba por ligar os direitos humanos apenas ao viés da violência. Segundo Heloísa, esse tipo de produção transmite a noção de que a sociedade só seria mais tranquila se não houvesse nenhum tipo de direito para os acusados de cometer delitos, “desvinculando da luta toda a amplitude dos direitos humanos”. 

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Ao se fragilizar e flexibilizar a noção dos direitos humanos, como se isso fosse resolver um problema de segurança pública – que, inclusive, também é um direito humano –, apenas se piora o problema.

Danielle Pamplona, professora da Escola de Direito da PUCPR, lembra que se um indivíduo cometeu algum ato especificado como crime pela lei, é preciso que ele arque com as consequências de seus atos. Não significa, no entanto, que deve ser submetido a condições sub-humanas, a um tratamento cruel.

“Até a guerra tem regras. Um prisioneiro de guerra tem que ter seus direitos respeitados. Ninguém está dizendo que é certo cometer um crime, matar alguém. Pelo contrário, estamos dizendo que é errado. A nossa lei já diz isso, e prevê uma sanção. É triste que se fique limitado a essa visão, porque é preciso dar foco para os direitos humanos, explicar que eles não estão aí para um ou para outro, mas para todos”, avalia. 

No estudo “Cidadania e Direitos Humanos”, a socióloga Maria Victoria Benevides lembra que durante o período mais opressor do regime militar no Brasil, havia um movimento maciço de defesa dos direitos humanos daqueles que eram perseguidos devido à sua militância política. Muitos foram presos, torturados, exilados e até assassinados em razão de suas convicções. 

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Terminada essa fase, no entanto, desaparece a figura do preso político, e a ideia de que todos, independentemente de sua posição social, deveriam ter garantidos seus direitos fundamentais, não prosperou como o esperado, de acordo com a estudiosa.

“A defesa dos direitos humanos passou a ser associada à defesa dos criminosos comuns que, quando são denunciados e apenados, pertencem, em sua esmagadora maioria, às classes populares. Então, a questão deixou de ter o mesmo interesse para segmentos da classe média que teve familiares e amigos presos no tempo da ditadura”, escreve Maria Victoria.

Papel de protagonista

É compreensível, entretanto, que muitos cidadãos se revoltem ao observar direitos sendo garantidos a alguns setores da sociedade e não a outros. Em artigo para o jornal britânico The Guardian, Eric Posner, professor da Escola de Direito da Universidade de Chicago, menciona que a grande quantidade e variedade de direitos que, teoricamente, protegem a todos não dão conta de guiar plenamente os governos.

‘Na maioria dos países, as pessoas contemplam até 400 direitos humanos internacionais (...). Dado que os governos têm orçamento limitado, a proteção de um direito humano pode impedir que o Estado proteja outro [direito humano]’, afirma Posner.

Heloísa opina, entretanto, que falta aos cidadãos entender – e se colocar nesse papel – que é de detentor de direitos. Ao reproduzir a fala de que direitos humanos são só para “bandidos”, o indivíduo não consegue compreender que ele é titular de tais garantias. Ao entender que tem direito à saúde e à educação, por exemplo, que são direitos humanos, o cidadão vai se tornar mais combativo para exigir que eles sejam concretizados. 

Direito Internacional

Uma vez que os direitos humanos surgem num contexto internacional, é possível se deparar com questionamentos de que a proteção aos direitos humanos previstos em tratados internacionais limitaria o poder do Estado. Esse raciocínio, porém, cai por terra na medida em que são as próprias nações que aceitam se submeter a essas convenções. Trata-se, portanto, de uma opção.

De acordo com a professora Danielle Pamplona, o país já lançou mão de sua soberania quando escolheu fazer parte de um tratado. E uma vez sendo parte, reconhece que a Corte Interamericana de Direitos Humanos, órgão competente para julgar o Brasil, visa avançar na proteção desses direitos.

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“A Corte toma decisões, mas ela não tem, efetivamente, como aplicar sanção ao Estado que descumpriu alguma regra. A gente costuma dizer, no Direito Internacional, que a maior sanção é a vergonha que um país pode sentir por ter sido condenado em um tribunal como esse”, coloca Danielle. 

Heloísa acrescenta que o que se espera é um diálogo entre as fontes externas e as fontes nacionais de direitos humanos. Para ela, a questão das violações de tais direitos está muito menos relacionada a imbróglios internacionais do que a outros aspectos, sejam eles sociais ou atrelados à incapacidade do Estado em construir modelos que respeitem de forma adequada as garantias de seus cidadãos.

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