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A liberdade de expressão está pegando fogo nos dois países mais populosos das Américas. Nos Estados Unidos, que construíram, ao longo do século XX, depois de muita disputa nos tribunais e nas ruas, a mais ampla proteção jurídica à liberdade de expressão que há no mundo, a discussão sobre os limites ao discurso de ódio está se acirrando novamente. Nas Universidades, regulamentos têm sido criados para garantir espaços de segurança para minorias. Depois da eleição de Trump, a própria esquerda passou a ser criticada pela virulência com que ataca o presidente, com uma retórica que, para muitos, extrapola todos os limites. 

No Brasil, deputados querem processar o humorista Danilo Gentili por um suposto abuso de sua liberdade de expressão em um vídeo divulgado na internet. Um juiz gaúcho já atendeu a um pedido da deputada Maria do Rosário (PT-RS) e mandou tirar o vídeo do ar. O prefeito de São Paulo, João Doria (PSDB-SP) tem notificado extrajudicialmente usuários de redes sociais para retirarem conteúdo de postagens que considera ofensivas e pediu na Justiça a remoção de uma história – ficcional – em que aparece sendo morto, atirado ensanguentado do Vale do Anhangabaú. Para os advogados do prefeito, é “pura incitação à violência”. 

Embora Brasil e Estados Unidos tenham sistemas jurídicos diferentes, diversos estudiosos têm tentado encontrar inspiração no modelo americano e nas discussões jurídicas e filosóficas da tradição anglo-saxã para orientar decisões legislativas e judiciais no Brasil. Outros especialistas veem com preocupação a importação de um modelo de liberdade de expressão que, em seu juízo, beira a licenciosidade. Esses especialistas também destacam semelhanças do modelo brasileiro com diversos países europeus, que ninguém ousaria chamar de autoritários. 

A discussão fica ainda mais incandescente diante das questões que os próprios juristas norte-americanos levantam sobre o tema. Para muitos, há um fetiche injustificável com a liberdade de expressão nos Estados Unidos. Por que, neste país, a honra, que é um direito muito mais antigo, tutelado já pelos romanos, é tão pouco protegida em face da liberdade de expressão? Será mesmo que a liberdade de expressão protege discursos de ódio? Qual é o limite entre um ato odioso que é mera violência e um discurso odioso que tenta expressar uma ideia política? 

A liberdade de expressão nos Estados Unidos e no Brasil 

Atualmente, a proteção à liberdade de expressão nos Estados Unidos não encontra paralelo no mundo. Qualquer expressão de uma ideia política, articulada como discurso — seja liberal, comunista, conservador ou até nazista — e mesmo a difamação de personalidades públicas (entenda) gozam do mais alto grau de proteção pelo direito norte-americano. As chamadas “condutas expressivas”, como a queima de bandeiras do país em protestos, marchas silenciosas e códigos de computador, também são, como regra, protegidas da mesma forma. 

“O Congresso não fará nenhuma lei (...) que limite a liberdade de expressão [freedom of speech]” 

Embora toda essa proteção se deva hoje à mesma Primeira Emenda que foi aprovada em 1791, foi somente no século XX, especialmente entre as décadas de 1920 e 1970, que os Estados Unidos e sua Suprema Corte começaram a ampliar o escopo da proteção constitucional da liberdade de expressão até chegar à compreensão de que, a princípio, qualquer manifestação de conteúdo tem um valor intrínseco para a democracia e merece ser respeitada pelo dever de igualdade no tratamento aos cidadãos, seja quais forem as ideias que queiram expressar.

No livro Freedom of Speech in the United States [Liberdade de Expressão nos Estados Unidos], Thomas Tedford e Dale Herbeck lembram que uma decisão fundamental nesse sentido se deu em 1925, no caso Gitlow vs. New York, quando a corte discutia a condenação criminal de um anarquista pelo estado de Nova York. Os juízes entenderam que a declaração de direitos — da qual a Primeira Emenda é parte — protegia os cidadãos não apenas contra a legislação federal, mas também contra as leis dos estados. 

O julgamento abriu uma estrada que seria pavimentada nos anos seguintes, principalmente quando se tem em conta que grande parte da legislação penal nos Estados Unidos é de competência não da União, mas dos estados. Em 1927, a corte reverteria, pela primeira vez, com base na autoridade que avocara para si, uma condenação criminal baseada em lei estadual. 

Mesmo com essa interpretação alargada, nem toda a ação que à primeira vista pareça uma “expressão” tem proteção da Primeira Emenda. O Judiciário norte-americano entende, em geral, que obscenidades, discursos meramente difamatórios — principalmente contra cidadãos comuns —, palavras de guerra e comerciais enganosos têm uma proteção menos abrangente, porque sua importância para a democracia é menor. Além disso, manifestações — mesmo se políticas — que incitem uma ação ilegal iminente, prestes a ocorrer, também não são protegidas. Mas essa compreensão levou cinquenta anos para ser aceita com clareza pela Suprema Corte dos Estados Unidos. 

Incitação 

Em 1919, no caso Schenck vs. United States, a Suprema Corte manteve a condenação do secretário-geral do partido comunista da Filadélfia por ter distribuídos panfletos contra o alistamento obrigatório durante a Primeira Guerra Mundial, afirmando que a ação dele não estava protegida pela liberdade de expressão. Cinquenta anos depois, no caso Brandenburg vs. Ohio, ela inocentou um membro da Ku Klux Klan que foi filmado fazendo um discurso inflamado contra negros e judeus e criticando as instituições nacionais, enquanto conclama uma grande marcha sobre Washington no feriado de quatro de julho. Se os dois homens foram condenados por violar uma lei que protegia o mesmo interesse público, o que justifica a diferença entre os dois casos? 

O que mudou foi o teste que o tribunal aplicou para saber se uma ação está ou não protegida pela liberdade de expressão. Nos cinquenta anos que separam as duas decisões, explicam Tedford e Herbeck, o tribunal modificou seus parâmetros, alargando a proteção garantida pela Primeira Emenda ao trocar os critérios usados para responder à pergunta: em que circunstâncias, afinal, o Congresso (e os estados, a partir de 1925), está proibido de fazer uma lei que limite a liberdade de expressão? 

O critério mais restritivo é o da “tendência deletéria”, segundo o qual todo discurso que tenha a mera tendência de gerar graves danos não estaria protegido pela garantia constitucional. Esse critério, herdado do direito comum inglês, foi aplicado pela corte durante a maior parte de sua história. 

Ainda em 1925, num julgamento que manteve a condenação de um militante socialista por publicar um “manifesto esquerdista”, a corte justificou sua decisão afirmando que “uma única fagulha revolucionária é capaz de acender o fogo que, embora arda lentamente, pode explodir num vasto e destrutivo incêndio”. 

Com base nessa ideia, a Suprema Corte chegou até a impedir imigrantes anarquistas de entrar nos Estados Unidos e a condenar jornalistas por criticar o governo. Não por acaso, o teste da tendência deletéria é muitas vezes chamado, por estudiosos e juízes dos Estados Unidos, de “cortar o mal pela raiz” ou “destruir o ovo da serpente”. 

No caso Schenck vs. United States, de 1919, a corte anunciou, pela primeira vez, um padrão menos restritivo, que viria a ser progressivamente adotado ao longo das décadas, num debate constitucional que durou cinquenta anos: o critério do “perigo claro e presente”. De acordo com essa ideia, se o discurso tivesse como intenção provocar um crime e houvesse um perigo claro e presente — óbvio e imediato, nas palavras de Tedford e Herbeck — de que sua expressão fosse resultar neste crime, então ele não estaria protegido pela Primeira Emenda. 

No primeiro voto em que absolveu um condenado por crime que alegava estar protegido pela Primeira Emenda, o lendário Justice Holmes, apesar de ser minoria vencida na decisão, escreveu uma das mais eloquentes defesas da liberdade de expressão, citada até os dias de hoje: 

“Quando as pessoas percebem que o tempo contrariou muitas fés combativas, elas passam a acreditar, ainda mais do que nos fundamentos de suas próprias condutas, que o melhor caminho para o bem fundamental que todos almejam é o livre comércio das ideias — que o melhor teste para a verdade é o poder que o pensamento tem de acabar sendo aceito no mercado das ideias”

Finalmente, em 1969, a corte criou o teste que prevalece até hoje: a “incitação à ação ilegal iminente”, que acabou absolvendo o membro da Ku Klux Klan. De acordo com esse parâmetro, o governo pode proibir e processar apenas manifestações em que seu autor tiver a intenção de causar uma ação ilegal iminente e se a apologia tiver alguma possibilidade de efetivamente levar à ação. 

Legislação brasileira

No Brasil, o Código Penal traz, em seu artigo 286, o crime de incitação ao crime — “Incitar, publicamente, a prática de crime” — e, em seu artigo 287, o crime de apologia ao crime ou a fato criminoso — “fazer, publicamente, apologia de fato criminoso ou de autor de crime”. Esses dispositivos ganharam fama no país quando, entre 2008 e 2011, o Ministério Público Federal passou a acionar a Justiça para impedir a realização de “Marchas da Maconha” nas capitais brasileiras. O argumento era incisivo: as marchas faziam apologia de um crime. No entanto, a nossa Constituição, como a norte-americana, também protege a liberdade de expressão:

Art. 5º (...)

IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;

IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;

Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.

Em 2011, o STF decidiu, por unanimidade, que a realização das marchas estava protegida pela liberdade de expressão e de reunião. O relator do caso, ministro Celso de Mello, argumento que “o debate sobre abolição penal de determinadas condutas puníveis pode ser realizado de forma racional, com respeito entre interlocutores, ainda que a ideia, para a maioria, possa ser eventualmente considerada estranha, extravagante, inaceitável ou perigosa”. 

Durante as discussões, muitos ministros citaram a regra da incitação à ação ilegal iminente para justificar seus votos. Mas uma questão, colocada en passant por um dos ministros durante as discussões, ficou a princípio sem resposta: há liberdade de expressão para defender a abolição penal de qualquer crime? É possível defender a descriminalização do assassinato ou do estupro? A discussão ainda está por ser feita.

Difamação 

Em 1964, no caso New York Times vs. Sullivan, a Suprema Corte restringiu muito a possibilidade de funcionários e figuras públicas responderem a críticas com base no direito contra a difamação. A decisão da corte, que virou de cabeça pra baixo a responsabilidade civil nos Estados Unidos, entendeu que as críticas a agentes públicos, incluindo até difamações com base em mentiras, é protegida pela Primeira Emenda, a não ser que tenham “real intenção criminosa”. 

Nessa hipótese, quem faz ou publica a crítica, como uma reportagem ou crônica jornalística, deve saber que a informação é falsa ou, pelo menos, ter agido com “negligência temerária” quanto aos fatos — algo como o dolo e dolo eventual no Brasil. Mas, mesmo nesses casos, o ônus da prova é de quem afirma ter sido difamado, o que, na prática, torna quase impossível comprovar essa intenção. Isso, somado ao fato de que não há no direito americano a figura do direito de resposta, leva muitos estudiosos a denunciarem o desequilíbrio do sistema, que privilegiaria demais a proteção da expressão em detrimento da honra. 

No livro Freedom of Speech [Liberdade de Expressão], Eric Barendt levanta ainda dois argumentos que outros países da tradição do direito comum têm levado em consideração para não adotar a posição liberal mais extremada dos Estados Unidos. Primeiro, a falta de proteção à honra de personalidades públicas poderia inibir a entrada dos cidadãos mais ciosos de sua reputação na vida política. Segundo, em um ambiente desregulado, a mídia tenderia a noticiar escândalos buscando audiência, o que, no longo prazo, poderia abalar a credibilidade da imprensa. 

No Brasil, diferentemente de nos Estados Unidos, a Constituição Federal prevê a proteção à honra no inciso X do art. 5º: 

“são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”. 

Aqui, também são muito mais comuns os processos criminais sobre crimes contra a honra, tipificados como calúnia, difamação e injúria pelo Código Penal brasileiro. 

Art. 138 - Caluniar alguém, imputando-lhe falsamente fato definido como crime

Art. 139 - Difamar alguém, imputando-lhe fato ofensivo à sua reputação

Art. 140 - Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro

Discurso de ódio 

No caso Ellwanger, julgado em 2003 pelo STF,  o tribunal, que discutia a possibilidade de o antissemitismo ser considerado crime de racismo, reconheceu claramente que a liberdade de expressão não é um direito absoluto. Ele tem limitações jurídicas, como nas manifestações imorais proibidas por lei. 

O STF afirmou que a liberdade de expressão está condicionada por “limites morais e jurídicos” e “não pode abrigar, em sua abrangência, manifestações (...) que implicam ilicitude penal”. Dessas premissas, saltou diretamente para a conclusão de que publicação de um livro que negava o holocausto era uma violação à lei 7.716/1989 que, em seu artigo 20, diz que é crime “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. 

Em 2016, um juiz de primeira instância proibiu a publicação do livro Mein Kampf, de Adolf Hitler, com base no mesmo artigo da lei. Como, afinal, a publicação de um livro pode ser “praticar”, “induzir” ou “incitar”, resta ainda por ser respondido. 

Em 2015, Levi Fidélix, candidato à presidência em 2014 pelo PRTB, foi condenado a pagar R$ 1 milhão em danos morais coletivos por ter “ultrapassado os limites” da liberdade de expressão, “incidindo em discurso de ódio, pregando a segregação do grupo LGBT”, de acordo com a juíza de primeira instância. O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), em fevereiro deste ano, reverteu a sentença, entendendo que Fidélix estava protegido pela liberdade de expressão.

No Brasil, o discurso de ódio é definido de forma pouco rigorosa como palavras que intimidam e reforçam preconceitos que por sua vez  limitam o acesso a oportunidades e a direitos. Quem advoga contra esse discurso, baseia-se fundamentalmente nas noções de danos morais coletivos, na lei 7.716/1989 e em disposições constitucionais como o inciso IV, do artigo 3º e o inciso I do artigo 1º. 

Alguns militantes, porém, chegam a afirmar que argumentar contra a política de cotas raciais é, em si, racismo. Então quem argumenta ponderadamente contra essa política pode ser processado por um crime imprescritível e inafiançável? Não seria o caso de o direito brasileiro adotar um teste como a incitação à ação ilegal iminente? E, se o STF entendeu, no julgamento da “Marcha da Maconha”, que é possível defender a descriminalização de uma conduta, é possível defender a revogação da Lei 7.716/1989? As respostas a essas perguntas continuam incendiando um debate que está longe de acabar, tanto aqui, quanto nos Estados Unidos. 

Em um artigo publicado em 2014, os professores Walter Claudius Rothenburg, que também é Procurador da República, e Tatiana Stroppa tentam delimitar parâmetros para a restrição à liberdade de expressão em face de discursos de ódio. Primeiro, apontam a parcimônia nas decisões: “deve-se temer mais a restrição do que a liberdade das (...) expressões, ou seja, as limitações devem ser excepcionais e limitadas”, escrevem. 

Segundo, deve-se levar em conta a generalidade da manifestação, o que pode ser a diferença entre dirigir um insulto a alguém em particular e tentar articular um discurso ou uma ideia, por mais odiosa que seja – e mesmo neste último caso, há juristas brasileiros que veem a possibilidade de limitar a expressão em face da proteção da honra ou de outras considerações de interesse público, o que seria praticamente impossível no direito norte-americano. 

Terceiro, embora difícil de ser provada na prática, os autores apontam para a intenção de quem se expressa. “Uma mensagem cujo objetivo é estimular deliberadamente a discriminação e, sobretudo, incitar a violência, enseja limites mais estreitos à liberdade de expressão. Porém, na dúvida sobre o conteúdo e o propósito da mensagem, deve prevalecer a liberdade de expressão”, escrevem. 

Quarto, Rothenburg e Stroppa propõem observar o teor do conteúdo da expressão, que podem exprimir opiniões, fatos, manifestações artísticas ou religiosas. “Se o que existe é principalmente uma opinião (juízo de valor), mais forte deve ser a proteção ao direito de expressão”. Já para a negação de fatos históricos, sobretudo de eventos particularmente ligados à identidade de uma pessoa ou grupo, os autores propõem uma proteção menor. O exemplo nesse caso seria a negação do holocausto na Europa ou da escravidão no Brasil. 

Seja como for, o modelo brasileiro, que compartilha da tradição de muitos países europeus ao permitir o equilíbrio entre valores constitucionais na decisão de casos concretos, acaba criando jogando uma grande responsabilidade no colo dos juízes, que devem ser sensíveis às diferentes considerações e nuances jurídicas, morais e políticas envolvidas nesses casos. Mas nem sempre é assim. 

Em um artigo recente em que analisa a qualidade das decisões judiciais sobre liberdade de expressão no Brasil, Ronaldo Porto Macedo Júnior, professor titular da USP e da FGV-SP, ressaltou, analisando a racionalidade decisória do STF no caso Elwanger, que os ministros Marco Aurélio Mello e Gilmar Mendes, utilizando a mesma técnica de ponderação, chegaram a conclusões opostas sobre o caso. “É muito surpreendente o modo como ambos os ministros, depois de exporem resumidamente o teste da proporcionalidade, simplesmente saltaram para a conclusão sem maiores justificativas” (tradução livre), escreveu.

“No fim das contas, é difícil evitar a impressão de que os diferentes padrões adotados nessas decisões são mera expressão de vieses ideológicos guiaram as preferências dos juízes” (tradução livre), destacou ainda.

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