Quando faleceu em 2003 aos 73 anos de idade, o filósofo inglês Bernard Williams já era considerado por vozes expressivas um dos mais relevantes pensadores do século XX. Sua abordagem dos problemas éticos para além dos esquemas filosóficos tradicionais, levando em consideração o papel das emoções, da tragédia e da inescapável complexidade da vida humana, fez dele uma das mentes mais originais da filosofia moral.
Mas Williams não era conhecido apenas nos meios acadêmicos. A sua elegante eloquência e personalidade marcante, unidas ao seu enfrentamento de temas polêmicos, contribuíram para torná-lo popular também fora dos ambientes universitários.
A temática da legalização do aborto também não passou incólume à análise de Williams, sobre a qual publicou o ensaio “A lógica do aborto”, de 1977, que foi originalmente apresentado em um programa de rádio da agência BBC, na Inglaterra.
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A propósito do debate moral envolvendo o aborto, Williams atenta para o fato de que essa discussão de forma alguma pressupõe uma postura religiosa. Isso porque os argumentos em disputa passam ao largo de qualquer justificação de cunho transcendental e se apoiam em esquemas de pensamento que podem ser compartilhados por crentes e ateus.
Em suma, isolados de toda influência religiosa, os argumentos contrários ou a favor da legalização giram em torno da problemática da definição e da inviolabilidade da vida humana.
A respeito do primeiro eixo de discussão, Williams explica que a afirmação de que o aborto se trata, sem meias palavras, de um assassinato é o mais importante argumento daqueles que são contrários à legalização. Para essas pessoas, qualquer tentativa de formular justificativas mais sofisticadas sobre o assunto se trata de um mero mascaramento da verdadeira natureza desse ato. Por outro lado, conforme explica o autor, aqueles que rejeitam a proibição dividem-se em dois grupos.
O primeiro deles compartilha com o argumento do assassinato a abordagem metodológica, pois também considera que o que está em jogo é uma questão de definição. Para este grupo, o que importa é refletir se o embrião ou o feto – nomenclaturas que remetem a sucessivos estágios de desenvolvimento e que serão utilizadas indistintamente neste texto – estão ou não abarcados pela proibição legal do assassinato. Isto é, se são ou não um ser humano ou uma pessoa. O segundo grupo, por outro lado, deseja se evadir do debate em torno da definição e adota uma outra estratégia argumentativa.
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No tocante à definição, a grande questão que se põe é, como dito acima, se o embrião ou o feto se trata ou não de um ser humano. Embora em outros escritos Williams problematize ainda mais essa questão, a resposta dada por ele no ensaio de 1977 é de um sonoro sim. Afinal, se o embrião é um ser vivente e não pertence a nenhuma outra espécie animal, está muito claro que ele só pode ser considerado um ser humano.
Mas, como já pude adiantar, a questão da definição se complica se considerarmos a posição tomada por alguns no sentido de que, embora seja um ser humano, o embrião não é uma pessoa. Para este grupo, o embrião não é pessoa por não ser dotado de capacidade comunicativa, social e de uma forma complexa de consciência. Assim, na medida em que não é uma pessoa nesse sentido, a mera identificação biológica do embrião enquanto ser humano não o faria digno de especial proteção.
O grande problema desse argumento, diz Williams, é que já que o embrião não pode ser considerado uma pessoa por não possuir as características descritas acima, o mesmo se poderia dizer, por exemplo, de um recém-nascido em seus primeiros dias de vida, de um indivíduo portador de uma deficiência cerebral grave ou de um idoso senil. Segundo esse raciocínio, todos esses seres humanos seriam considerados sub-pessoas ou ex-pessoas e, nessa condição, a sociedade também estaria autorizada a descartá-los. O infanticídio, a eugenia e a eutanásia estariam autorizados pelo mesmo raciocínio que autorizaria o aborto.
A discussão sobre a definição da natureza do feto repercute ainda sobre os direitos que geralmente são colocados em pauta. Caso se considere que o aborto se refere unicamente ao direito que as mulheres possuem de fazer o que bem entenderem com os seus próprios corpos, está-se definindo o feto como uma mera parte do corpo da mãe. Por outro lado, considerando que se trata de um ser humano como qualquer outro, o argumento da inviolabilidade dos seus direitos, em oposição ao argumento do aborto, se fortalece.
Uma outra vertente das pessoas que defendem a legalização do aborto deseja escapar dos evidentes problemas lógicos provocados pela reflexão sobre a definição. De acordo com este último grupo, não há óbice em se admitir que o feto é um ser humano, tampouco uma pessoa, mas a questão que se põe é se, nas circunstâncias da gestação, a mãe estaria autorizada a matá-lo.
A discussão, aqui, não é sobre a evidência biológica indisputável de que se está diante de uma pessoa, mas se esta pessoa, no estágio de desenvolvimento em que se encontra, possui dignidade e direitos. Perceba-se que para os que levantam esse tipo de argumento não se nega que o que se está cometendo é um assassinato: a questão seria avaliar as razões pelas quais o assassinato estaria autorizado nesse caso.
A filósofa americana Judith Jarvis Thomson julga ter encontrado uma solução adequada para essa questão. Imagine, diz ela, que um belo dia uma pessoa acorde inesperadamente ligada a outro ser humano, com seus sistemas vitais conectados e interdependentes, de modo que a única forma de se livrar desse intruso é matando-o. Nesse caso, o dono do corpo invadido pelo parasita teria o direito de assassiná-lo, ainda que tenha sido responsável, em alguma medida, por essa inesperada ligação.
O problema desse raciocínio, diz Williams, é que a gravidez é algo normal e não uma aberração da natureza. Ela se trata de um estado que, embora muitas vezes indesejado, não tem origem ocasional nem desconhecida. Em suma, não se engravida como quem contrai um vírus alienígena. E mais: a gravidez só dura nove meses, de modo que a decisão de matar um ser humano para resolver uma situação que é em si mesma transitória é drástica demais. O exemplo de Judith Jarvis Thomson, portanto, não passa de uma caricatura bizarra e pouco semelhante da condição da gravidez.
Por fim, existe ainda uma terceira via, denominada utilitarismo, que não está ligada ao problema da definição, tampouco adentra na discussão em termos da autorização para matar. O utilitarismo pensa a respeito de questões morais e sociais em termos dos resultados gerados: tratar o aborto como um assunto de saúde pública é claramente um argumento de tipo utilitarista, em que o critério de correção moral está nas consequências da ação em termos coletivos, e não no ato em si.
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Levado às suas últimas consequências, contudo, o utilitarismo também autorizaria o extermínio de pessoas “custosas” para a sociedade, sob o argumento de beneficiar determinada política pública. E ainda subsiste o problema das inegáveis consequências perversas do aborto para as próprias mulheres.
Tendo considerado todas essas coisas, a conclusão de Bernard Williams neste ensaio é certamente frustrante.
Para ele, a legalização do aborto não precisa nos convidar a uma ladeira escorregadia em termos de proteção da dignidade e da vida humana, embora possa facilmente fazê-lo se tratado da maneira equivocada. Qual tipo de sociedade terá se acostumado ao aborto a tal ponto de o reconhecer como um direito? Qual tipo de vida combina com essa permissão? De que maneira isso poderia ameaçar outros valores? Todas essas são questões que, segundo Williams, precisam ser endereçadas nessa reflexão.
Entretanto, diz Williams, ainda precisamos considerar mais um fato: o de que, para a maior parte das mulheres, a experiência de um aborto espontâneo no início da gravidez é completamente diferente da perda de um filho já nascido nas primeiras semanas de vida. E conquanto se objete que aquilo o que está em pauta é o aborto provocado, esse dado é para Williams um indicativo de que somente a experiência emocional e psicológica feminina seria capaz de fornecer um guia realista sobre quais as consequências mais profundas de nossas atitudes sociais em relação ao aborto.
Embora não forneça qualquer resposta conclusiva, o argumento formulado por Williams no último parágrafo do seu ensaio é problemático. Isso porque faz parecer que o dilema ético do aborto depende exclusivamente das emoções e repercussões psicológicas subjacentes a esse ato, o que nos leva de volta ao raciocínio que o próprio Williams havia formulado anteriormente.
Basta pensar que a morte de uma pessoa em idade avançada e com uma grave doença degenerativa é, na maior parte das vezes, sentida por seus familiares de maneira emocionalmente e psicologicamente diferente da morte de um jovem saudável. Isso, contudo, não implica que os responsáveis por oferecer cuidados ao idoso estejam autorizados a eliminá-lo.
Além do mais, fosse a experiência emocional e psicológica das pessoas um bom critério para formular políticas públicas, a pena de morte seria autorizada sob a simples justificativa de que a comoção social seria muito menor em face da execução de um criminoso do que diante da morte de um herói nacional. Não é isso, entretanto, que o nosso senso de humanidade exige como justificação.
Por fim, existe ainda um argumento, não confrontado por Williams, que subjaz às discussões a respeito da legalização do aborto. Ele consiste na recorrente afirmação de que, embora não se negue que o aborto efetivamente se trata de uma prática moralmente equivocada, não haveria qualquer empecilho para reconhecer a alguém o direito de praticá-la. Esta ideia é uma variante de um conhecido refrão segundo o qual é possível ser pessoalmente contra uma determinada prática sem a pretensão de impedir que outras pessoas a realizem.
Ocorre que esse refrão é uma falácia. Como explica Robert P. George, as pessoas que se opõem à legalização do aborto o fazem pela mesma razão em virtude da qual se opõem à escravidão ou à tortura: por imperativos fundamentais de direitos humanos.
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O popular argumento do “sou pessoalmente contra, mas não posso me opor” somente faria sentido se a resistência à legalização do aborto estivesse fundada em razões puramente religiosas que teriam evidentemente mais dificuldade em se inserir em um debate público amplo. Ocorre que a oposição à legalização do aborto não decorre de uma crença religiosa, mas se deve ao pressuposto de que todo ser humano, independentemente de sua condição, deve ter a sua integridade protegida.
Até que ponto a feição conferida a esta ideia é uma herança cultural do cristianismo, deve-se investigar. Na concepção de igual dignidade, contudo, consiste o fundamento de conquistas como o fim da escravidão e a paridade de direitos entre homens e mulheres, reivindicação que continua legitimamente em pauta.
Obviamente, se o pressuposto acerca do valor absoluto do ser humano, seja qual for a sua condição de desenvolvimento, for assumidamente questionado, aí sim é possível se defender a legalização do aborto com alguma coerência lógica. Mas então se estará diante de um pressuposto desastroso, cujas consequências, igualmente lógicas, podemos recear.
* Ana Luiza Rodrigues Braga é mestre e doutoranda em Filosofia do Direito pela Universidade de São Paulo (USP).
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