O Município de Curitiba publicou na data de ontem o Decreto 1302 para regulamentar a utilização de aplicativos de transporte remunerado de passageiros, como Uber e Cabify. Como não poderia deixar de ser diante de um tema controverso, o ato normativo tem prós e contras. E, certamente, os diversos interesses envolvidos indicam que muitas discussões ainda virão acerca do tema. O decreto é apenas mais um capítulo nesse affair.
Em linhas gerais, o decreto tem mais acertos do que erros. Primeiro, ele parte de uma concepção realista: tais serviços estão implementados e atendem de modo satisfatório seus usuários. Assim, a grande proposta é trazer alguns padrões de fiscalização diferenciados que visam a garantir a segurança dos usuários. O decreto é feliz ao assumir a premissa de que muito ajuda quem não atrapalha, não tendo sido criadas obrigações que fogem muito desse núcleo.
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Nessa perspectiva, o referido decreto encara os serviços prestados como privados. As operadoras (chamadas de ATTCs) são consideradas meras intermediadoras de relações entre agentes privados (motorista/usuário). Reconhece-se ainda a liberdade de as operadoras praticarem preços livres, ressalvando apenas a necessidade de comunicar adequadamente os usuários acerca dos valores objeto da cobrança. Ponto para o decreto. Ele adota a visão de que o serviço é privado e que não cabe exigir que ele seja prestado nos mesmos moldes de serviços públicos, algo que já defendemos acerca do tema. O decreto – que certamente será questionado nesse ponto pelos taxistas – encara a premissa de que se trata de atividade privada, em que há liberdade de ingresso e formação de preços, o que parece ser o grande atrativo desse modelo de negócios.
Outro ponto favorável é a preocupação em conter o núcleo da regulação à disciplina de aspectos de segurança e conforto do passageiro, seguindo as balizas estipuladas no Código de Trânsito. Daí exigir registro dos motoristas e dos veículos, estipulando um perfil adequado de proteção aos usuários. O ponto central do Decreto é esse, na medida em que assegura um controle mínimo sobre motoristas e veículos, sendo que os pontos a serem observados se conectam aos elementos de incolumidade dos passageiros. E isso parece perfeitamente compatível com a Lei.
O instrumento central da fiscalização é o credenciamento dessas plataformas junto ao município. Ou seja, as empresas que exploram esses serviços devem ser catalogadas, apresentando os dados solicitados para tanto. Isso com vistas a que o município possa cuidar de razões de segurança, nos termos definidos no decreto.
Todavia, nem tudo são flores. Há pontos em que o decreto parece ter desbordado claramente de seus limites.
Um dos problemas mais claros é a violação da privacidade dos usuários. O decreto indica que todos os dados da viagem devem ser repassados à fiscalização (passageiro, horário, itinerário, etc.). E isso não tem qualquer justificativa legítima. Nada justifica que o município tenha acesso a todos os dados das viagens individualizadas, no melhor estilo grande irmão. Uma coisa é voluntariamente compartilhar esses dados numa relação privada, outra é ver esses dados fornecidos sem qualquer justificativa concreta. Enfim, o decreto nessa linha viola frontalmente o direito à intimidade dos usuários desses serviços. Eu por exemplo não tenho a menor vontade de que alguém saiba para onde vou, que horas e coisa e tal.
Outro ponto em que o decreto não anda bem é ao tentar estipular uma cobrança das operadoras a ser instituída ainda por atos da Secretaria de Finanças. Claro, a tentação de arrecadar é irresistível em tempos de escassez de recursos. Segundo o texto, haveria um preço público a ser pago em função da distância percorrida, que poderia ser modificado livremente pelo município para regular aspectos urbanísticos. Aqui o decreto tenta dar um drible semântico falando em preço público a remunerar a utilização intensiva do viário urbano.
Ainda na metáfora futebolística, contudo, o decreto pisa na bola. Está na cara que se pretende cobrar uma taxa pelo exercício do poder de polícia, o que não pode ser criado por decreto, mas apenas por lei. Mais do que isso, a cobrança pela distância não corresponde a atividade fiscalizatória, o que exclui a figura da taxa aqui. O que quis a Prefeitura foi criar uma espécie de imposto disfarçado, chamando-o de preço público. Não há qualquer relação que permita se falar em preço público, sendo as figuras de cobrança necessariamente tributárias e, portanto, exigindo Lei. Enfim, tem-se aqui uma ilegalidade daquelas bem flagrantes que não têm chance de prosperar em Juízo.
Enfim, o decreto é uma tomada de posição. E a posição é claramente favorável à utilização dos aplicativos de transporte e da preservação de sua natureza privada. Mantidas e calibradas as coisas, este pode ser um importante marco para a utilização livre dessas tecnologias no município trazendo tranquilidade para quem usa os serviços e para quem os presta.
*Bernardo Strobel Guimarães, mestre e doutor em Direito do Estado pela USP, professor da PUC-PR e advogado
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