“Chegou um momento em que eu me sentia presa dentro do meu próprio corpo. Eu estava num estágio grave. Era o fim da minha vida, e não queria morrer. Só eu estive lá, na cama, sem poder fazer nada, morrendo, e ouvi os médicos dizerem ‘não tem o que fazer’”.
Quem faz o relato é Camila*, diagnosticada com adenoma cerebral hipofisário, um tumor cerebral não-maligno, em novembro de 2010. Moradora de Curitiba (PR), ela é a primeira pessoa do Sul do Brasil, que se tem conhecimento, a conseguir autorização judicial para produzir o próprio extrato de canabidiol, popularmente conhecido como óleo de maconha.
Extraído do caule e das folhas da planta, o canabidiol não possui propriedades psicoativas. Isso porque o que causa o efeito alucinógeno nos usuários de maconha é o tetraidrocanabinol (THC), substrato da resina e da flor da cannabis sativa.
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No auge da doença, Camila usava, diariamente, oito medicamentos, entre analgésicos, antiepiléticos e antidepressivos. O tumor comprometeu sua mobilidade e provocou problemas oftalmológicos. Ela também enfrentava fortes dores de cabeça, fraqueza, espasmos musculares e alterações hormonais. Chegou um momento em que realizar atividades banais, como escovar os cabelos, tornou-se um fardo.
Quando as dores ficaram insuportáveis, a paciente começou a pesquisar, por conta própria, alternativas. Deparou-se com estudos sobre o uso da cannabis para tratamento de dores crônicas, espasmos e câncer. Vencido o medo inicial, conversou com médicos a respeito, e desde que começou a usar o canabidiol, o tumor regrediu expressivamente. As dores e espasmos foram contidos, e ela conseguiu até retornar ao trabalho.
‘Nós, pacientes, pesquisamos muito sozinhos, porque a gente não quer ficar nessa situação. Discutimos com o médico, e se o médico tem esse perfil mais aberto, abarca a ideia. E nenhum médico vai dizer ‘abandone todos os seus medicamentos e tome só o canabidiol’. Não existe isso’, conta. Atualmente, ela faz uso de três medicamentos por dia, incluindo o óleo.
Foi em 2015 que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) decidiu retirar o canabidiol da lista de substâncias de uso proibido no Brasil. Isso significa que pacientes que necessitam do extrato conseguem encomendá-lo do exterior com autorização do órgão. Há, contudo, toda a questão burocrática. Ao chegar na alfândega, não é possível precisar em quanto tempo o produto, que deve ser de uso contínuo pelos pacientes, será liberado.
Além do mais, o custo da importação é alto. Camila gastava, em média, R$ 2,5 mil por mês para importar o óleo. Com a produção própria, o custo reduziu em mais de um quarto. Mas para produzir, ela precisava cultivar a planta, e quem planta maconha no Brasil pode ser enquadrado por tráfico de drogas (art. 33 da Lei n. 11.343/2006). Era preciso, portanto, recorrer à Justiça.
Caminho judicial
Com a ajuda do advogado Anderson Rodrigues Ferreira, Camila impetrou um habeas corpus (HC) para que autoridades policiais não viessem a investigá-la ou, até mesmo, prendê-la por possuir sementes e insumos destinados à produção, e posterior uso, do extrato de cannabis. Apesar de o juiz designado ter pedido urgência nos despachos, por se tratar de uma questão de saúde, o processo não correu tão rápido para um habeas corpus: foram cerca de seis meses do ajuizamento da ação até a obtenção da autorização judicial.
Num primeiro momento, o Ministério Público do Paraná (MP-PR) se manifestou de forma contrária à concessão do HC. Com a apresentação de tomografias, que comprovaram a regressão do tumor após a continuidade do uso do canabidiol, e laudos e diagnósticos médicos, contudo, a promotoria emitiu parecer favorável. Ainda, o advogado pediu um parecer técnico para atestar a qualidade do óleo que a paciente produzia.
A intenção, segundo ele, não era a de demonstrar que o óleo é “milagroso”, mas que ele pode ser associado a um tratamento e medicamentos tradicionais.
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Um dos questionamentos da primeira negatória do MP-PR, diz Ferreira, foi se Camila também havia ingressado com uma ação pedindo para que o Estado arcasse com os custos de importação ou da produção do óleo. Além de essa não ser a intenção da autora da ação, o advogado afirma que também não haveria garantia do fornecimento contínuo pelo Poder Público, por se tratar de um medicamento de alto custo.
“E ela [a paciente] se propôs a fazer algo sem ônus para o Estado”, complementa.
O próximo passo será impetrar um habeas corpus na Justiça Federal pedindo a importação da semente. Desta forma, Camila poderá rastrear o grão, saber sobre sua origem e qualidade. Ela conta que em países onde a questão do uso da cannabis em medicamentos está mais avançada existem variedades híbridas de semente com nível mais elevado de canabidiol.
“No Brasil, a gente acaba dependendo do mercado paralelo, que não tem nenhum controle”, desabafa.
Apesar de todos os percalços, Ferreira vê a decisão como um sinal de avanço do Judiciário brasileiro - especialmente porque esse avanço foi concretizado na Justiça criminal, que costuma ser estigmatizada pela sociedade leiga.
“Eu, como advogado, vejo que nossa função social está sendo cumprida de forma completa. Relacionar o Direito Penal com o direito à saúde é fantástico, pois a base do direito é essa defesa do direito à vida”, finaliza Ferreira.
Alfândega dos EUA barra remessas de canabidiol ao Brasil
Pelo menos três remessas de canabidiol importadas dos Estados Unidos por pacientes brasileiros, cada uma no valor médio de U$ 1 mil (cerca de R$ 3,8 mil), foram confiscadas pela alfândega americana nos últimos 30 dias por causa de um conflito das diferentes leis americanas.
Inicialmente, os pacientes e a empresa importadora do produto acreditaram que a medicação havia sido furtada após chegar ao Brasil. Isso porque as caixas foram entregues lacradas na casa dos clientes, mas, ao serem abertas, estavam sem o medicamento, apenas com o isopor e a capa de alumínio que protege o produto. A Polícia Federal brasileira chegou a abrir inquérito para investigar o sumiço dos frascos de canabidiol.
Questionada pela reportagem, a empresa transportadora das mercadorias, a americana UPS, informou que, na verdade, os produtos não haviam sido furtados, mas, sim, interceptados pela U.S. Customs and Border Protection (CBP), a alfândega dos Estados Unidos, no Aeroporto de Louisville, no Estado do Kentucky, informação confirmada pelo órgão.
Veja: Importar semente de maconha nem sempre é crime, diz STJ
Em nota, a alfândega afirma que “embora o uso de maconha, principalmente para fins medicinais, tenha sido descriminalizado em algum grau por alguns Estados dos EUA, a venda, posse, produção e distribuição de maconha continuam sendo ilegais sob a lei federal” do país. A CBP não informou o porquê de apenas essas três encomendas foram confiscadas sob essa alegação, se dezenas de outras remessas do tipo são enviadas para o Brasil todos os meses.
Já a UPS afirmou que está “cooperando com a CBP, e trabalhando juntamente com nossos clientes, para que eles tenham todas as informações a respeito das circunstâncias do conteúdo confiscado de suas remessas”. Enquanto isso, as famílias dos pacientes que ficaram sem remédio demonstram desespero pela falta.
Um dos prejudicados é Lázaro Medina Ruas, de 23 anos, que sofre de epilepsia grave desde os cinco anos e toma o canabidiol para controlar as crises convulsivas.
“Nós já tínhamos tentado de tudo, eram umas 20 crises por dia. Depois que começamos com o canabidiol, praticamente zerou. Agora já estamos há dez dias sem o remédio e ele voltou a ter crises. Em uma delas, ele caiu da cama e se machucou. Nós, que somos pais, não sabemos o que fazer”, conta a operadora de caixa Valdenia Medina Sousa, de 41 anos.
Outro paciente afetado pelo problema é o garoto Felipe da Silva Marra, de 6 anos, que sofre de uma síndrome genética rara e usa o canabidiol há dois anos.
‘Além de controlar as crises convulsivas, o remédio ajudava na parte cognitiva e na irritabilidade. Com o canabidiol, ele fica mais feliz, mais sociável’, comenta a fisioterapeuta Viviane Ferreira Marra, de 36 anos, mãe do menino.
Representante da CBDRx Functional Remedies no Brasil, uma das fabricantes do produto nos Estados Unidos, Cassio Ismael diz que a empresa já envia o produto para o País há três anos e o confisco nunca havia acontecido.
“Isso deve ser apurado rigorosamente para que não falte medicamento para os pacientes. O absurdo é não haver notificação nenhuma (do confisco) nem para a empresa que está vendendo nem para o paciente”, declarou. De qualquer forma, a fabricante já providenciou outras três remessas de produto para os pacientes prejudicados.
* O nome foi alterado a pedido da entrevistada.
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