Desde dezembro de 2016, uma série de decretos do presidente Michel Temer e portarias ministeriais vêm alterando a regulamentação do Estatuto do Desarmamento (Lei 10826/2003). As medidas do Poder Executivo alarmaram algumas entidades da sociedade civil, que veem nelas um enfraquecimento da política de desarmamento no Brasil, mas os críticos da atual legislação enxergam as mudanças como avanços e negam que o governo tenha flexibilizado a lei sem o aval do Congresso.
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O deputado Rogério Peninha (PMDB-SC), autor do Projeto de Lei 3722/2012, que pretende revogar o Estatuto do Desarmamento e criar novas regras sobre aquisição, posse, porte e circulação de armas de fogo e munições, a nova regulamentação é parte de uma tomada de consciência da sociedade civil e da classe política sobre o tema. “Quando eu propus o projeto em 2012, nenhum deputado tinha coragem de mexer nisso. Hoje, já temos quase a maioria necessária para aprová-lo em plenário. A discussão amadureceu”, avalia Peninha.
Peninha ressalta que o novo regulamento se afasta da postura ideológica dos governos do Partido dos Trabalhadores (PT) e adota parâmetros mais técnicos. O deputado lembra também que os decretos e portarias atendem reivindicações de setores da sociedade que vêm lutando pelo direito à posse e ao porte de armas, de acordo com o referendo sobre o tema em 2005. “As mudanças foram bem positivas, mas ainda estão longe do que esperamos. O PL 3722/2012 tem como cerne acabar com a discricionariedade da polícia na hora de conceder a posse ou porte”, diz Peninha.
“Até hoje, o cidadão atende a todos os requisitos, faz todos os testes, e o delegado da Polícia Federal não concedia o pedido. Você pode até aumentar as exigências, mas se o cidadão cumprir as exigências, ele tem que ter o porte concedido”, Rogério Peninha, relator do PL 3722/2012.
Além do fim da discricionariedade, Peninha elenca outras demandas a que o PL 3722/2012 pretende atender: a renovação do porte de arma a cada cinco anos, e não três, o acesso por guardas municipais a armas restritas e mais postos para conceder porte e posse de armas. Hoje, existem 121 postos da Polícia Federal que podem fazer isso e o projeto quer que essa condição esteja disponível também para as polícias civis.
Peninha não faz questão de que as mudanças ocorram via Legislativo. Para ele, o próprio Executivo pode atender à maioria das demandas. “Eu não quero aprovar o projeto pelo projeto. De repente, se o governo avançasse mais, poderíamos abrir mão do projeto e fazer modificações pontuais na legislação”, afirma o deputado.
A medida que causou mais polêmica foi a Portaria nº 28 do Comando Logístico do Exército, de 14 de março deste ano, que passou a permitir a atiradores transitarem, em direção a clube de tiro ou competição, com uma arma municiada. Peninha justifica a mudança por uma questão de segurança. “O cidadão tinha de levar, às vezes até viajando, todas as armas descarregadas. Um guri só com um canivete poderia roubar essas armas todas e a munição”, diz.
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Os críticos da medida alegam que, na prática, o que portaria fez foi permitir o porte de armas para cerca de 90 mil pessoas no Brasil. Para Felippe Angeli, coordenador de advocacy do Instituto Sou da Paz, a portaria vai aumentar o ônus da fiscalização sobre a polícia brasileira. “Como é que vão atestar que o atirador parado numa abordagem policial está mesmo indo para a casa ou para o local de treino? Como a polícia vai verificar se o porte de arma é legítimo ou não?”, indaga.
Bene Barbosa, presidente do Movimento Viva Brasil, diminui a importância da questão. “O porte de arma para o atirador esportivo está previsto no Estatuto do Desarmamento, mas nunca havia sido regulamentado”, diz. “Já são quase dois meses da publicação da portaria e não houve nenhum incidente envolvendo esses atiradores. A verdade é que, hoje, quem quer desobedecer a lei já desobedece. Os atiradores, que já cumpriam as normas, vão cumprir esta também”, afirma o ativista pró-armas.
O integrante do Sou da Paz também levanta a questão do transporte público e dos táxis. Como proceder no caso desse atirador ir ao treino de ônibus ou metrô? Um taxista poderá se recusar a transportar um passageiro armado? “São várias omissões nessa portaria que colocam em risco tanto os atiradores quanto a população em geral”, opina.
Já o Decreto 8935, de 19 de dezembro de 2016, alterou a periodicidade da renovação do Certificado de Registro de Arma de Fogo. O prazo, que antes era a cada três anos, passou para cinco. Além disso, o atestado de capacidade técnico tinha de ser apresentado a cada renovação e, agora, é requerido apenas a cada duas renovações, isto é, a cada dez anos.
“O prazo curto de três anos gerou o efeito exatamente contrário do que o pregado pelo Estatuto. A maioria das pessoas que ainda tem uma arma legalizada acabou não renovando seus registros, porque é caro, burocrático, e a Polícia Federal não tem capilaridade para atender território nacional”, diz Bene Barbosa. “Mais de sete milhões de armas estão com seus registros vencidos e, hoje, não é possível legalizar essa situação. Os proprietários foram jogados para a ilegalidade”, completa.
Para Michele dos Ramos, pesquisadora do Instituto Igarapé, a destreza física de uma pessoa pode sofrer grandes impactos em uma década. “A não necessidade de apresentação desse atestado por tanto tempo não tem embasamento científico nenhum”, afirma. Angeli destaca que há policiais recomendando a renovação do laudo de aptidão anualmente.
“Primeiro, estamos falando da posse de armas, a pessoa vai ter essa arma dentro de casa. Segundo, ao mesmo tempo em que se critica a mudança no prazo da capacidade técnica, a própria lei impede que a pessoa treine com a arma dela. Isso é maluco”, opina Bene. “De qualquer maneira, isso é secundário. O uso defensivo que uma pessoa vai fazer dessa arma dentro de casa requer o conhecimento mínimo do uso”, completa.
Mais recentemente, a Portaria nº 356 do Ministério da Justiça, de 27 de abril, regulamentou o Decreto 8938, de 21 de dezembro de 2016, que permitiu a doação de armas apreendidas aos órgãos de segurança pública ou às Forças Armadas. Até então, as armas apreendidas eram sempre destruídas. Agora, depois de usadas como prova nas ações penais, elas podem passar por perícia e, se estiverem em bom estado, poderão ser usadas pelos agentes do Estado. “Essa destruição obrigatória era fruto de uma visão preconceituosa, mas era uma política burra”, diz Bene.
Michele salienta, porém, que há pontos da questão armamentista que têm mais urgência de regulamentação. Como exemplo, aponta a integração dos dois sistemas de dados sobre armas e munições vigentes no Brasil: o Sistema Nacional de Armas (Sinarm), da Polícia Federal, e o Sistema de Gerenciamento Militar de Armas (Sigma), do Exército. Segundo Michele, o Decreto n. 5.123/2004, que regulamenta o Estatuto do Desarmamento, previu que essa integração deveria ser realizada no prazo máximo de um ano, embora ela não tenha ocorrido ainda.
“Essa integração teria um impacto muito importante na problemática do tráfico de armas, para reduzir desvios de armamentos pesados e para investigações”, afirma.
Nota: Uma versão anterior deste texto falava em "membro de clube de tiro" em vez de “atirador". Corriqueiramente, as expressões são usadas como sinônimas, mas, tecnicamente, nem todo membro clube de tiro é registrado como atirador. Para isso, o procedimento é mais rigoroso.
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