Já faz meio século que a Grã-Bretanha abandonou suas últimas colônias na África. Suas perucas, contudo, permanecem. E não são quaisquer perucas. Elas são longas, brancas e encaracoladas, e eram utilizadas por juízes das Supremas Cortes (e pelo rei George III, há mais de 200 anos). São tão fora de moda que até os magistrados britânicos já deixaram de usá-las.
Nas antigas colônias – como Quênia, Zimbabwe, Gana e Malaui – porém, os adereços persistem, usados por juízes e advogados. Agora, uma nova geração de juristas africanos tem se perguntado: por que as mentes jurídicas mais proeminentes do continente ainda usam acessórios impostos pelos colonizadores?
Não é apenas uma questão de estética. As perucas e togas são, talvez, o mais flagrante símbolo da herança colonial, num momento em que esse aspecto da história vem sendo destruído de todas as formas. Este ano, o presidente da Tanzânia, John Magufuli, descreveu uma proposta de livre comércio com a Europa como “uma forma de colonialismo”. No Zimbabwe, o chefe de Estado, Robert Mugabe, ainda se refere aos britânicos como “ladrões colonialistas”.
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Em junho, a premiê da província do Cabo Ocidental, na África do Sul, Helen Zille, foi suspensa de seu partido após escrever no Twitter que o legado do colonialismo não era completamente negativo.
Os resquícios do Império Britânico estão espalhados por todo o continente. Há homenagens à realeza: existem as Cataratas de Vitória – rebatizadas de Mosi-ao-Tunya por Mugabe em 2013 – na fronteira entre a Zâmbia e o Zimbabwe, o Lago Vitória na Uganda, a Ilha Victoria na Nigéria. Dirige-se na mão inglesa. E ainda há o críquete e também o modo como o sistema público de educação é estruturado.
Ainda que muitas cidades e ruas tenham recebido novos nomes após a saída dos europeus do território africano, as perucas permanecem, assim como outros aspectos dos tribunais coloniais: as togas vermelhas, os laços brancos e a necessidade de se referir aos juízes como “meu senhor” e “minha dama”.
Por que um homem que expulsou fazendeiros brancos de suas terras, que bradou contra o nome das Cataratas de Vitória, permite que uma tradição judicial tão arcaica permaneça viva?
Em quase toda a antiga colônia britânica artigos de opinião foram escritos e discursos foram feitos sobre a necessidade de se abandonar as perucas. Em Uganda, o jornal New Vision realizou uma investigação a respeito do custo dos adereços, que saem por US$ 6,5 mil cada. Já em Gana, um famoso advogado, Augustine Niber, argumentou que abandonar as perucas ajudaria a reduzir os sentimentos de “intimidação e medo que permeiam os tribunais”.
Um dos editores do blog The Nigeria Lawyer escreveu que os adereços não foram pensados para o calor intenso de Lagos, onde advogados “derretem” por baixo de seus trajes. “A cultura que criou as perucas e as togas é diferente da nossa, o clima é diferente”, anotou Unini Chioma.
Os opositores das perucas, no entanto, não estão se colocando contra somente o inconveniente que é usar o acessório, mas contra a tradição britânica que imperava nos “tribunais coloniais”, precedentes ao processo de independência, que muitas vezes eram brutais. Na época da Revolta dos Mau-Mau, por exemplo, que emergiu pela descolonização do Quênia, na década de 1950, os juízes brancos, com as cabeças adornadas com perucas, sentenciaram mais de mil pessoas à morte por conspiração contra as leis coloniais.
“O sistema colonialista usava a lei como um instrumento de repressão, e mantemos essa tradição sem sequer questioná-la”, afirmou Arnold Tsunga, diretor africano na Comissão Internacional de Juristas. “É uma vergonha para os tribunais da África moderna”.
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No Quênia, Willy Mutunga, que foi Chefe de Justiça e presidente da Suprema Corte do país, fez um apelo para banir as perucas das salas de julgamento, sob a justificativa de que elas eram uma imposição estrangeira, e não uma tradição queniana. Mutunga propôs que as vestes vermelhas britânicas fossem substituídas por becas verdes e amarelas, mais quenianas. Para o jurista, as perucas eram “terríveis”.
Acontece que a perspectiva de Mutunga não foi acolhida por muitos colegas, que veem as togas e perucas como uniformes, itens que colocam os tribunais em outro patamar, apesar de – ou por causa delas – suas ligações coloniais.
“Os magistrados receberam a sugestão com consternação”, disse Isaac Okero, presidente da Sociedade Jurídica do Quênia. Okero, defensor da peruca e das togas vermelhas, argumenta que os acessórios representam mais do que uma tradição britânica, sendo itens de distinção para os juízes do país. “Eu não sinto, de forma alguma, uma conotação negativa atrelada ao colonialismo. Eles [os itens] são maiores do que isso. São uma tradição da Justiça queniana”, disse.
As perucas encaracoladas, feitas com crinas de cavalo, começaram a ser usadas nos tribunais em 1600, durante o reinado de Carlos II, quando os adereços se tornaram um símbolo do sistema judicial britânico.
Recentemente, o novo Chefe de Justiça do país, David Maraga, indicou que quer manter as tradições coloniais. Em sua cerimônia de posse, ele usou uma longa peruca branca e uma toga vermelha, ao estilo britânico. Muitos quenianos ficaram perplexos.
“Sua escolha peculiar de roupa enviou uma mensagem ressonante aos quenianos”, falou um repórter do KTN, um dos canais de tevê mais populares do país. “Voltamos aos velhos tempos”.
No Zimbabwe, governado pelo veemente anticolonialista Robert Mugabe, a manutenção das perucas talvez tenha caráter ainda mais místico. Por que um homem que expulsou fazendeiros brancos de suas terras, que bradou contra o nome das Cataratas de Vitória, permite que uma tradição judicial tão arcaica permaneça viva? Alguns analistas acreditam manter as perucas revela algo sobre Mugabe, um anglófilo discreto, fã de Dickens e que uma vez disse que o críquete “civiliza as pessoas e cria cavalheiros”.
Arnold Tsunga, da Comissão Internacional de Juristas, porém, argumenta que a lógica é mais complexa. “Estamos vendo Estados africanos pós-independência tentando manter símbolos de poder e autoridade na crença de que isso lhes conferirá respeito”, alegou.
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As perucas encaracoladas, feitas com crinas de cavalo, começaram a ser usadas nos tribunais em 1600, durante o reinado de Carlos II, quando os adereços se tornaram um símbolo do sistema judicial britânico. Alguns historiadores afirmam que a popularização das perucas começou, de fato, com o rei Luís XIV, da França, que usava o acessório na esperança de disfarçar sua careca.
Lá pelo século 18, elas tinham o intuito de diferenciar juízes e advogados – e outros membros da classe alta.
Outros países da Commonwealth britânica, como Austrália e Canadá, também herdaram as perucas e togas, mas já as removeram de seus tribunais. Ano passado, uma juíza da Suprema Corte do estado australiano de Victoria se negou a continuar uma audiência caso cinco advogados que usavam os adereços não os retirassem. “Abolir as perucas é necessário para trilharmos um caminho moderno”, afirmou Marilyn Warren.
Em fevereiro deste ano, a Câmara dos Comuns do Reino Unido – câmara baixa do parlamento britânico – retirou a obrigatoriedade de seus secretários usarem perucas. John Bercow, porta-voz da Casa, disse que a decisão promoveria uma imagem menos “carregada” de seus componentes.
Mas, apesar das perucas, os tribunais africanos têm se adaptado a um contexto pós-colonial. Constituições foram escritas. Uma nova geração de juízes surgiu. Mesmo que alguns Judiciários se curvem a pressões políticas e estruturas legais ainda estejam atrelados à common law britânica, o sistema legal africano está se moldando a partir das tradições e culturas de seus próprios países.
No início deste mês, a Suprema Corte do Quênia anulou as eleições presidenciais do país, numa jogada de independência do Judiciário que enfureceu o governo. No tribunal de Nairóbi onde a sentença foi proferida, vários advogados usaram perucas, em uma sessão presidida por homens e mulheres de togas vermelhas.
David Maraga se sentou antes de começar a falar, as longas mangas de suas vestes penduradas. “A grandeza de uma nação se mede por sua fidelidade à Constituição”, afirmou, “e em sua lealdade ao Estado de Direito”.
Tradução: Mariana Balan.
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