A arte do cinema nos possibilita adentrar na complexidade das incertezas humanas, cercadas de irracionalidades, delineando situações de muita ambiguidade moral, onde o certo e o errado se tornam indefinidos. Essas incertezas só podem ser percebidas com a presença da sensibilidade humana, aceita como meio de cognição profunda, em permanente diálogo com nossa racionalidade.
Na esteira do pensamento do filósofo Julio Cabrera, observamos que a linguagem imagética, através dos conceitos-imagem, espelha uma integração permanente entre a razão e a sensibilidade, viabilizando um aprofundamento na reflexão crítica de certos temas que envolvem o problema da Justiça e do Direito em profícua correlação.
A análise de filmes de qualidade artística, integrada, em termos interdisciplinares, com a leitura teórica de textos, pode ampliar nosso olhar jurídico crítico para além das visões dogmáticas tradicionais. Ela possibilita a submersão, de forma profunda, na consciência subjetiva humana, que nos permite ir muito além das percepções das aparências sociais externas mais superficiais, baseadas muitas vezes em visões simplificadoras.
O filme não figura apenas como um exemplo fechado das reflexões teóricas, mas como um meio de expansão das questões propostas nos textos, já que, normalmente, apresenta um perfil narrativo mais aberto e inacabado. Muitas vezes, a mesma temática adquire um novo ângulo de abordagem, muito rico, quando comparada a filmes distintos.
Para aprofundar essa ideia, tomamos como referência a clássica reflexão filosófica sobre o tema Direito e Justiça, que se remete aos modelos verticais, baseados na ideia emotiva de retribuir o mal com o mal, pena de morte e pena de prisão, e aos modelos horizontais, baseados na compensação financeira racional e na ideia amorosa de caritas, como perdão.
Na leitura de textos, podemos entender as diferenças conceituais, mas, na análise de filmes, as noções de Justiça se interpenetram de forma ambígua e complexa em nosso universo lógico-emotivo, por meio da vivência da consciência subjetiva de personagens de carne e osso.
Os filmes nos permitem ir além do entendimento conceitual e avaliar a possibilidade de satisfação concreta da Justiça, através do Direito. Faremos uma rápida análise de dois filmes que abordam este tema de forma profunda, em culturas diversas, que colocam em xeque essa satisfação, tendo como protagonista principal a figura feminina, carregada de afeto: A História de Qiu Ju e Lemon Tree.
A História de Qiu Ju
A produção, dirigida pelo criativo diretor Zang Yimou, ganhou o Leão de Ouro de Melhor Filme e Melhor Atriz para a protagonista Gong Li, no festival de Veneza de 1992.
Qiu Ju, uma esposa grávida, trava uma batalha jurídica e existencial em busca do seu senso moral de justiça, traduzindo a ambiguidade de quem duvida do status quo vigente e acredita na possibilidade de mudança das relações de poder sociais. Numa cultura eminentemente patriarcal, ela luta contra o conformismo submisso de seu marido sobre o senso comum de que um chefe tem poder absoluto sobre todos, podendo decidir, de forma extralegal, sobre o emprego da força.
Toda trama desenvolve-se a partir de um conflito que não presenciamos, mas que nos é relatado pelos próprios personagens. Qiu Ju vive no campo de plantação de pimenta, num remoto povoado, está grávida do primeiro filho e, conjuntamente, com seu marido, pede autorização para o chefe local para utilizar uma parte do terreno para a construção de uma casa para armazenar a pimenta.
O chefe nega o pedido, alegando que a lei apenas autoriza o uso da terra para plantar e não para construir. Irritado, Qinglai, marido de Qiu Ju, ofende verbalmente o chefe dizendo que ele só criará galinhas, como uma referência ao fato dele sé ter tido filhas mulheres, um grande desprestígio na cultura patriarcal.
Como resposta, o chefe chuta os testículos de Qinglai, que quase perde a sua fertilidade. Depois de levar o marido ao médico, Qiu Ju, mesmo sendo quase analfabeta e enfrentando o penoso final de uma gravidez, percebe que houve um abuso na atitude do chefe, pois não havia respaldo legal para uma atitude violenta, mesmo diante da ofensa praticada pelo marido. O chefe, diz ela, poderia ter dado uns cascudos, mas nunca o chutar naquele lugar.
Sentindo que seu marido sofreu uma injustiça e o abuso de poder e uma ofensa moral por parte do chefe, ela sai em busca da justiça, com uma espécie de intuição filosófica de que ela teria um sentido profundamente humano de retratação ética, ela espera que a chefe peça desculpas e se arrependa por seus atos abusivos. Para tanto, ela irá instrumentalizar e buscar uma reposta a essa angústia filosófico-humana através de procedimentos jurídicos dogmáticos.
Na perspectiva da filosofia jurídica, todas as decisões firmadas, pela mediação ou pelo tribunal, espelham um modelo horizontal de Justiça, que se liga ao conceito racional de indenização negociada como compensação financeira de um dano. Os procedimentos dogmáticos da decisão jurídica vão se aperfeiçoando, do ponto de vista da técnica jurídica (Qiu Ju contrata um advogado), mas não conseguem dar uma resposta à angústia humana e ética de Qiu Ju, que parece se sentir cada vez mais frustrada com o universo jurídico.
Várias vezes ela repete a pergunta filosófica: ‘mas isto é a Justiça?’
Como último recurso, na esperança de que o Direito lhe conceda a tão almejada retratação moral, ela decide recorrer para o tribunal intermediário do povo, que solicita nova perícia médica em seu marido, um exame de raio-X.
O descrédito dela é muito grande, pois começa a perceber como as relações de poder - governo x cidadão -, como a noção de controle e o uso retórico da linguagem parecem preponderar sobre a de justiça. Certa noite, enquanto todos os moradores assistem a uma ópera tradicional, Qiu Ju tem dificuldades graves no parto e precisa ir a um hospital. O chefe está em casa e é procurado, pela parteira, para salvar a protagonista e o bebê. A princípio, ele se recusa a ajudá-la, mas acaba cedendo e salvando a sua vida e a da criança.
Em casa, Qiu Ju visita o chefe e expressa a sua enorme gratidão por ter salvado a vida deles, convidando-o para a festa de um mês da criança, um saudável menino. Na comemoração, a alegria domina o coração de Qiu Ju. Em nenhum momento, ela põe foco no exaustivo problema de seu marido. O filme sugere que houve uma espécie de compensação ética na atitude do chefe.
Se ele causou um dano, colocando a fertilidade de seu marido em risco, quando o chutou, ilegalmente, o desequilíbrio foi sanado, com a realização de um bem, na sua atitude de salvá-la da morte, junto com o filho, fica subentendido que Qiu Ju já perdoou o chefe, na afirmação do modelo retributivo horizontal da caritas. Tudo parece caminhar para um final feliz até a chegada do oficial Li.
O oficial Li chega e avisa Qiu Ju que o chefe acabou de ser preso, e assim deverá permanecer por quinze dias, pois o raio-X detectou uma nova evidência. A agressão praticada foi mais grave, pois causou a quebra de uma das costelas. Mais angustiada do que nunca, ela reafirma que nunca pleiteou a sua prisão, mas sim a sua retratação moral, ouve a sirene do carro da polícia e sai correndo atrás de uma justiça moral que nunca consegue alcançar. O seu olhar angustiado, na estrada vazia, simbolicamente, também não encontra uma resposta ética com este novo sentido vertical de justiça, onde se deve retribuir o mal (agressão) com o mal (prisão.)
Lemon Tree
O filme israelense, dirigido por Eran Riklis em 2008, inicia com o recurso narrativo da simultaneidade, ao contrapor, de forma intrigante, um caminhão de mudança que se dirige para a cidade fronteiriça de Zur- HaSharon e o ato de cortar espremer limões frescos e com eles preparar uma saborosa conserva.
A seguir, a inteligente e sensível película, falada em árabe e hebraico, que se baseia em fato jurídico conflitivo verídico, ocorrido na região, nos dá um panorama de que o conflito jurídico, que irá se manifestar, tem como pano de fundo a materialidade conflitiva desigual existente entre palestinos e israelenses, na região da Cisjordânia. Temos um cenário material mais desigual e problemático do que o exposto no ambiente tradicional da chinesa Qiu Ju.
Em poucos minutos, tomamos ciência dos motivos que irão gerar o conflito jurídico. O ministro da Defesa de Israel se muda, com sua esposa Mira, para uma propriedade contígua a um pomar de limoeiros, onde vive a viúva palestina Salma.
A nossa protagonista vive na propriedade há cinquenta anos, a herdou de seu pai e extrai dos limoeiros, com muito afeto, sua subsistência. Durante a mudança, as diferenças materiais e culturais aparecem. A casa do ministro é confortável e ocidentalizada, a de Salma, muito simples, com a foto do marido morto no centro da sala indicando a sua presença moral. Uma guarita de vigilância e uma cerca elétrica são instaladas na propriedade israelense.
O clímax do conflito surge quando ela recebe uma intimação legal do Estado de Israel dizendo que o exército decidiu ordenar o corte dos limoeiros, mediante indenização, porque foram considerados perigosos à segurança do ministro da Defesa. A cisão cultural desigual é ressaltada quando vemos que Salma recebe o conteúdo da decisão em hebraico que não consegue ler, tendo de recorrer a uma tradução feita por um líder local, que recomenda a ela aceitação da conhecida superioridade israelense, mas não a indenização sugerida.
Uma lágrima discreta mostra o conceito-imagem profundo de sua indignação moral e sentimento de injustiça contido. Contrariando a ideia de que não teria a menor chance, decide procurar o jovem advogado Ziad para interpor uma inusitada apelação no Tribunal Militar.
No primeiro julgamento, vemos como a materialidade social desigual influencia a dinâmica processual. O juiz praticamente não deixa o advogado expor seus argumentos em defesa da cliente. Ele é claramente interrompido no início de suas alegações. Rapidamente percebemos como a figura linguística do pomar de limões assume um sentido semântico diverso nas interpretações antagônicas das partes conflitantes: um espaço seguro de sobrevivência e afirmação afetiva familiar para Salma e um espaço de perigo que poderia esconder terroristas em ataque à casa do ministro da Defesa.
Vence a materialidade dominante israelense, ordena-se, novamente, o corte dos limoeiros com a generosa afirmação do modelo retributivo de Justiça horizontal expresso na indenização financeira, que poderia ter sido suprimido com base na Lei da Intifada. A decisão também especifica que a área dos limoeiros deve ser isolada e Salma proibida de entrar nela até o corte das árvores. A insuficiência a afirmação da Justiça como retribuição horizontal financeira faz com que Salma, naquele momento, decida apelar mais uma vez para a Suprema Corte em Jerusalém.
Até o momento do segundo julgamento, a película mostra certa subversão na materialidade dominante, que tem a sua legitimidade questionada. Salma vai desenvolvendo um relacionamento afetivo, não aceito por sua tradição palestina de viúva, com o jovem advogado. Tenta desafiar a proibição legal de ingresso ao pomar, que está muito maltratado, pondo os limoeiros à morte. Por fim, Mira, esposa do ministro da Defesa, que mostra desde o início uma solidariedade contida por Salma, na impossibilidade de uma aproximação física, decide dar uma entrevista a um jornal local expondo a sua solidariedade a vizinha.
O fato é suficiente para que o advogado consiga levar o caso à mídia mundial, conquistando simpatias populares internacionais frente ao conflito que passa a significar a fragilidade histórica do povo palestino contraposta a intolerância truculenta israelense.
No dia do julgamento da Suprema Corte, Salma transmite certo medo quando o advogado vai busca-la em casa. No caminho, tem de enfrentar uma barreira policial que tenta impedi-la de entrar em Jerusalém, devido à determinação legal de um toque de recolher, que só é superada com a ajuda informal do líder comunitário, que por sorte aparece no local. Ao chegar, é recebida pelos repórteres, e troca um breve olhar com Mira, que também estará presente em solidariedade no julgamento.
Na sala de audiência, constatamos que a juíza muda a interpretação da lei, de forma inusitada, provavelmente, influenciada pelo prestígio que a publicidade midiática do caso dá a Salma, que passa a ser vista como símbolo da causa palestina, possibilitando uma clara redistribuição das relações de poder, antes vistas como unilaterais.
Com base na nova apreciação valorativa, ela decide que o impedimento de posse e de exploração deve ser mínimo na propriedade. Ao invés do corte integral dos limoeiros, firmado na primeira decisão, decide, além da indenização financeira, pela poda à altura de trinta centímetros da metade das árvores, as que estão mais próximas da propriedade israelense, como forma de aumentar a visibilidade da equipe de segurança.
A reação inconformada de Salma é imediata, ela se levanta e mostra o impactante conceito-imagem que revela o seu sentimento de injustiça, diante da decisão, dizendo em árabe: sua proposta é um desrespeito a minha vida, a de meu marido e a de meu pai. Minhas árvores são reais, minha vida é real, vocês já não construíram um muro em volta de nós? A juíza, usando o fone de tradução, determina que ela se sente e acate a decisão, como forma de reafirmar a sua autoridade.
Na saída, Ziad é cercado pelos repórteres e destaca que, embora não fosse a melhor decisão esperada, ele significava um claro avanço da causa palestina. Enquanto ele alcança o status de celebridade jurídica, Salma se afasta, de forma discreta, mostrando a sua decepção moral e sua insatisfação com a decisão final que mescla um modelo vertical punitivo preventivo com o modelo horizontal indenizatório.
Em casa, queima as roupas do ex-marido e recebe com tranquilidade a notícia que Ziad já estaria noivo de uma rica herdeira. Ela tinha consciência de que era passageiro o romance. Percebemos uma transformação valorativa em Salma. O seu fortalecimento maduro como mulher independente se consolida a partir da indignação moral que expõe seu sentimento de injustiça na sala de audiência, e que lhe dá voz ativa em ambiente hostil a sua afirmação de gênero feminino.
Na cena final, vemos que Mira abandona o ministro da Defesa, que acaba sozinho em sua casa. Quando ele abre a proteção de segurança de suas janelas, simbolicamente, vemos que o muro de divisão dos territórios já separa a sua casa do pomar. Trata-se de um conceito-imagem do fracasso da dissolução do conflito entre israelenses e palestinos. A câmera “pula o muro” e vemos uma Salma contemplativa vivendo a injustiça da decisão da Suprema Corte, no meio da feiura triste dos limoeiros podados, que, neste novo contexto, da presença do muro, se mostra absurda e sem sentido.
Sem assumir abordagens unilaterais e reducionistas, o filme trata o tema da Justiça com ceticismo, a partir da impossibilidade de aceitação dos dois modelos retributivos, vertical e horizontal, como resposta ao tema filosófico da Justiça que permanece em aberto mesmo que as decisões tenham posto fim ao conflito do ponto de vista jurídico.
De certa forma, o mesmo ocorre com a angústia moral de Qiu Ju, que termina o filme considerando injusta a prisão do chefe - e isso a afirma como mulher. Mas é a partir da consciência da angústia que as personagens crescem e mostram sua força feminina irradiante, sua afetividade profunda, que as eleva, apesar de serem vistas como inferiores em seu ambiente social.
Tanto Qiu Ju como Salma reconhecem as limitações valorativas do alcance das decisões jurídicas e assumem o problema da justiça como sendo algo aberto e ligado à nossa existência que transcende a própria afirmação dos modelos retributivos horizontal e vertical.
*Mara Regina de Oliveira é doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e professora da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).
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