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 | Henry Milleo / Arquivo Gazeta do Povo
| Foto: Henry Milleo / Arquivo Gazeta do Povo

A lista de descontentes com a portaria do governo que muda o conceito de trabalho escravo é enorme. Mas não faltam vozes para defendê-la. Publicado no domingo (15), o documento do Ministério do Trabalho determina que, a partir de agora, só o ministro do Trabalho pode incluir empregados na “lista suja” do trabalho escravo – mesmo se o parecer de técnicos contrariar a decisão. A nova regra altera ainda a forma como se dão as fiscalizações.

Leia a íntegra da portaria Portaria 1.129/2017 do Ministério do Trabalho.

Um dos principais questionamentos é incluir no conceito de trabalho escravo a “privação da liberdade de ir e vir”. O Ministério Público do Trabalho (MPT) e o Ministério Público Federal (MPF) afirmam que a adição desse requisito contraria tanto o Código Penal quanto as convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT). 

Na lei brasileira, trabalho escravo é “reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto”, ou seja, as condições degradantes já bastam. 

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As duas entidades lembra que, em dezembro de 2016, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Brasil pelo caso da Fazenda Brasil Verde, no sul de Pará, onde mais de 300 trabalhadores foram resgatados, entre 1989 e 2002. 

“A [Corte Interamericana] deixa claro [na decisão de 2016] que a ocorrência da escravidão dos dias atuais prescinde da limitação da liberdade de locomoção, evidenciando-se quando um homem exercer sobre seu semelhante [...] ‘atributos do direito de propriedade’”, afirma o documento enviado pelas procuradorias ao governo. 

Para MPT e MPF, também fere a Lei de Acesso à Informação a previsão inserida no texto de que a lista com o nome de empregadores autuados por submeter trabalhadores a situações análogas à escravidão passará a ser divulgada apenas com “determinação expressa do ministro”. 

A OIT também se pronunciou dizendo que, com a nova medida, o Brasil deixava de ser referência no combate à escravidão.

Fogo amigo

A própria área técnica do Ministério do Trabalho, em memorando circular enviado na segunda-feira (16), a todos os auditores do trabalho e obtido pelo jornal O Estado de S. Paulo, o secretário de Inspeção do Trabalho Substituto, João Paulo Ferreira Machado, diz que a portaria contém “vícios técnicos e jurídicos” e “aspectos que atentam contra normativos superiores à portaria”, como a própria Constituição. 

“De grandeza tal o conjunto de dificuldades que exsurgem da mencionada portaria”, que o setor “pleiteará, inclusive, a sua revogação apontando, tecnicamente motivos para tal”, diz o documento. No memorando, o secretário orienta seus auditores a manter, por ora, os procedimentos que já estavam em vigor antes da edição da portaria. 

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O secretário informou ainda que tomou conhecimento da portaria pelo Diário Oficial. As novas normas, diz ele, não foram discutidas com a área e não refletem as práticas da secretaria.

Câmara dos Deputados

A publicação gerou pelo menos dois projetos de decreto legislativo: um de autoria do deputado Alessandro Molon (Rede-RJ) e outro do deputado Roberto de Lucena (PV-SP). O senador Paulo Paim (PT-RS) disse que a Comissão de Direitos Humanos do Senado fará requerimento para que o ministro explique a portaria e a revogue.

Segundo a Folha de S. Paulo, apesar da reação negativa, o presidente Michel Temer está, por enquanto, disposto a manter a portaria. Uma eventual revogação da medida poderia indispor Temer com a bancada ruralista, às vésperas da votação da denúncia contra ele na Câmara dos Deputados. A Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), que reúne deputados e senadores ruralistas, já afirmou que a norma vem ao encontro de pautas da bancada. 

Apesar disso, auxiliares reconheceram que a norma pode ser revogada, caso a pressão aumente. Recentemente, o presidente recuou da extinção da Reserva Nacional de Cobre e Associados (Renca).

Um interlocutor do presidente comentou que a reação negativa decorre da “incompreensão” do que pretende a norma, que é dar mais segurança aos fiscais no exercício de suas funções. Em nota, o Palácio do Planalto afirmou que somente o Ministério do Trabalho se pronuncia sobre o teor da portaria.

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Elogios

O ministro da Agricultura, Blairo Maggi, divulgou nesta terça-feira, 17, nota de apoio à Portaria 1.129/2017 do Ministério do Trabalho, que dificulta a punição de empresas que submetem trabalhadores a condições degradantes e análogas à escravidão. 

Maggi disse, na nota, que a portaria “vem organizar um pouco a falta de critério nas fiscalizações”. E complementou: “Ninguém quer ou deve ser favorável ao trabalho escravo, mas ser penalizado por questões ideológicas ou porque o fiscal está de mau humor não é justo. Parabéns presidente Michel Temer. Parabéns ao ministro (do Trabalho) Ronaldo Nogueira”.

Já, a Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc), em nota divulgada nesta quarta-feira (18), afirmou que a portaria aumenta a segurança jurídica das empresas, incentiva a geração de empregos e combate o “fanatismo ideológico” nas esferas trabalhistas.

“Lista suja”

A Abrainc é a autora de ação contrária à divulgação da lista suja do trabalho escravo. O processo chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF) em 2014 e encerrou a divulgação periódica da lista, como acontecia na ocasião. Até então, era recorrente a presença de empresas de construção na lista. Além de arranhar a imagem das corporações, a medida dificultava o acesso à obtenção de financiamentos junto aos bancos públicos.

“A prática de trabalho análogo ao escravo constitui conduta gravíssima, que deve ser duramente combatida pelo Estado. Mas nem por isso sua discussão pode ser contaminada pelo fanatismo ideológico que se incrustou nas instâncias trabalhistas nas últimas décadas”, ressaltou o presidente da Abrainc, Luiz Antonio França. “O tema exige sobriedade e bom senso, qualidades cada vez mais raras no cenário atual”, acrescentou.

A associação de empresas imobiliárias avaliou que, antes da determinação da portaria 1.129, a falta de definição do conceito de trabalho escravo dava margem a diferentes interpretações.

A entidade patronal observou que o descumprimento de algumas normas de segurança e saúde do trabalho, mesmo por omissão ou erro sem a intenção, era suficiente para configuração do crime e divulgação dos nomes das empresas na lista suja, sem o devido processo judicial.

A associação apontou também que há uma quantidade elevada de normas de segurança e saúde, que atingem quase 2 mil itens e dificultam o cumprimento integral pelas empresas.

Esse contexto teria gerado o fechamento de empresas e postos de trabalho, na medida em que a fiscalização transformou infrações pontuais em crime de trabalho escravo, antes mesmo de qualquer condenação criminal. Com a portaria, as empresas vão ganhar “enorme segurança jurídica”, segundo a Abrainc, o que será refletido em geração de emprego.

*** Leia a portaria:

Portaria 1.129, de 13 de outubro de 2017

Dispõe sobre os conceitos de trabalho forçado, jornada exaustiva e condições análogas à de escravo para fins de concessão de seguro-desemprego ao trabalhador que vier a ser resgatado em fiscalização do Ministério do Trabalho, nos termos do artigo 2-C da Lei n 7998, de 11 de janeiro de 1990; bem como altera dispositivos da PIMTPS/MMIRDH Nº 4, de 11 de maio de 2016.

O Ministro de Estado do Trabalho, no uso da atribuição que lhe confere o art. 87, parágrafo único, inciso II, da Constituição Federal, e

Considerando a Convenção nº 29 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), promulgada pelo Decreto nº 41.721, de 25 de junho de 1957;

Considerando a Convenção nº 105 da OIT, promulgada pelo Decreto nº 58.822, de 14 de julho de 1966;

Considerando a Convenção sobre a Escravatura de Genebra, promulgada pelo Decreto nº 58.563, de 1º de junho de 1966;

Considerando a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, promulgada pelo Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992; e

Considerando a Lei nº 7.998, de 11 de janeiro de 1990, bem como a Lei 10.608, de 20 de dezembro de 2002,

Resolve:

Art. 1º Para fins de concessão de beneficio de seguro-desemprego ao trabalhador que vier a ser identificado como submetido a regime de trabalho forçado ou reduzido a condição análoga à de escravo, nos termos da Portaria MTE nº 1.153, de 13 de outubro de 2003, em decorrência de fiscalização do Ministério do Trabalho, bem como para inclusão do nome de empregadores no Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores à condição análoga à de escravo, estabelecido pela PI MTPS/MMIRDH nº 4, de 11.05.2016, considerar-se-á:

I - trabalho forçado: aquele exercido sem o consentimento por parte do trabalhador e que lhe retire a possibilidade de expressar sua vontade;

II - jornada exaustiva: a submissão do trabalhador, contra a sua vontade e com privação do direito de ir e vir, a trabalho fora dos ditames legais aplicáveis a sua categoria;

III - condição degradante: caracterizada por atos comissivos de violação dos direitos fundamentais da pessoa do trabalhador, consubstanciados no cerceamento da liberdade de ir e vir, seja por meios morais ou físicos, e que impliquem na privação da sua dignidade;

IV - condição análoga à de escravo:

a) a submissão do trabalhador a trabalho exigido sob ameaça de punição, com uso de coação, realizado de maneira involuntária;

b) o cerceamento do uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto, caracterizando isolamento geográfico;

c) a manutenção de segurança armada com o fim de reter o trabalhador no local de trabalho em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto;

d) a retenção de documentação pessoal do trabalhador, com o fim de reter o trabalhador no local de trabalho;

Art. 2º Os conceitos estabelecidos no artigo 1º deverão ser observados em quaisquer fiscalizações procedidas pelo Ministério do Trabalho, inclusive para fins de inclusão de nome de empregadores no Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores à condição análoga à de escravo, estabelecido pela PI MTPS/MMIRDH nº 4, de 11.05.2016.

Art. 3º Lavrado o auto de infração pelo Auditor-Fiscal do Trabalho, com base na PI MTPS/MMIRDH nº 4, de 11.05.2016, assegurar-se-á ao empregador o exercício do contraditório e da ampla defesa a respeito da conclusão da Inspeção do Trabalho de constatação de trabalho em condições análogas à de escravo, na forma do que determina a Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999 e a Portaria MTE 854, de 25 de junho de 2015.

§ 1º Deverá constar obrigatoriamente no auto de infração que identificar o trabalho forçado; a jornada exaustiva; a condição degradante ou a submissão à condição análoga à de escravo:

I - menção expressa a esta Portaria e à PI MTPS/MMIRDH nº 4, de 11.05.2016;

II - cópias de todos os documentos que demonstrem e comprovem a convicção da ocorrência do trabalho forçado; da jornada exaustiva; da condição degradante ou do trabalho em condições análogas à de escravo;

III - fotos que evidenciem cada situação irregular encontrada, diversa do descumprimento das normas trabalhistas, nos moldes da Portaria MTE 1.153, de 14 de outubro de 2003;

IV - descrição detalhada da situação encontrada, com abordagem obrigatória aos seguintes itens, nos termos da Portaria MTE 1.153, de 14 de outubro de 2003:

a) existência de segurança armada diversa da proteção ao imóvel;

b) impedimento de deslocamento do trabalhador;

c) servidão por dívida;

d) existência de trabalho forçado e involuntário pelo trabalhador.

§ 2º Integrarão o mesmo processo administrativo todos os autos de infração que constatarem a ocorrência de trabalho forçado; de jornada exaustiva; de condição degradante ou em condições análogas à de escravo, desde que lavrados na mesma fiscalização, nos moldes da Portaria MTE 854, de 25 de junho de 2015.

§ 3º Diante da decisão administrativa final de procedência do auto de infração ou do conjunto de autos, o Ministro de Estado do Trabalho determinará a inscrição do empregador condenado no Cadastro de Empregadores que submetem trabalhadores a condição análoga às de escravo.

Art. 4º O Cadastro de Empregadores previsto na PI MTPS/MMIRDH nº 4, de 11.05.2016, será divulgado no sítio eletrônico oficial do Ministério do Trabalho, contendo a relação de pessoas físicas ou jurídicas autuadas em ação fiscal que tenha identificado trabalhadores submetidos a condições análogas à de escravo.

§ 1º A organização do Cadastro ficará a cargo da Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT), cuja divulgação será realizada por determinação expressa do Ministro do Trabalho.

§ 2º A inclusão do empregador somente ocorrerá após a prolação de decisão administrativa irrecorrível de procedência do auto de infração ou do conjunto de autos de infração.

§ 3º Para o recebimento do processo pelo órgão julgador, o Auditor-Fiscal do Trabalho deverá promover a juntada dos seguintes documentos:

I - Relatório de Fiscalização assinado pelo grupo responsável pela fiscalização em que foi identificada a prática de trabalho forçado, jornada exaustiva, condições degradantes ou condições análogas à escravidão, detalhando o objeto da fiscalização e contendo, obrigatoriamente, registro fotográfico da ação e identificação dos envolvidos no local;

II - Boletim de Ocorrência lavrado pela autoridade policial que participou da fiscalização;

III - Comprovação de recebimento do Relatório de Fiscalização pelo empregador autuado;

IV - Envio de ofício à Delegacia de Polícia Federal competente comunicando o fato para fins de instauração.

§ 4º A ausência de quaisquer dos documentos elencados neste artigo, implicará na devolução do processo por parte da SIT para que o Auditor-Fiscal o instrua corretamente.

§ 5º A SIT poderá, de ofício ou a pedido do empregador, baixar o processo em diligência, sempre que constatada contradição, omissão ou obscuridade na instrução do processo administrativo, ou qualquer espécie de restrição ao direito de ampla defesa ou contraditório.

Art. 5º A atualização do Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores à condição análoga à de escravo será publicada no sítio eletrônico do Ministério do Trabalho duas vezes ao ano, no último dia útil dos meses de junho e novembro.

Parágrafo único. As decisões administrativas irrecorríveis de procedência do auto de infração, ou conjunto de autos de infração, anteriores à data de publicação desta Portaria valerão para o Cadastro após análise de adequação da hipótese aos conceitos ora estabelecidos.

Art. 6º A União poderá, com a necessária participação e anuência da Secretaria de Inspeção do Trabalho e da Consultoria Jurídica junto ao Ministério do Trabalho, observada a imprescindível autorização, participação e representação da Advocacia-Geral da União para a prática do ato, celebrar Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), ou acordo judicial com o administrado sujeito a constar no Cadastro de Empregadores, com objetivo de reparação dos danos causados, saneamento das irregularidades e adoção de medidas preventivas e promocionais para evitar a futura ocorrência de novos casos de trabalho em condições análogas à de escravo, tanto no âmbito de atuação do administrado quanto no mercado de trabalho em geral.

§ 1º A análise da celebração do Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) ou acordo judicial deverá ocorrer mediante apresentação de pedido escrito pelo administrado.

§ 2º O Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) ou acordo judicial somente poderá ser celebrado entre o momento da constatação, pela Inspeção do Trabalho, da submissão de trabalhadores a condições análogas às de escravo e a prolação de decisão administrativa irrecorrível de procedência do auto de infração lavrado na ação fiscal.

Art. 7º A Secretaria de Inspeção do Trabalho disciplinará os procedimentos de fiscalização de que trata esta Portaria, por intermédio de instrução normativa a ser editada em até 180 dias.

Art. 8º Revogam-se os artigos 2º, § 5º, 5º, 6º, 7º, 8º, 9º, 10, 11 e 12 da PI MTPS/MMIRDH nº 4, de 11.05.2016, bem como suas disposições em contrário.

Art. 9º Esta Portaria entra em vigor na data de sua publicação.

RONALDO NOGUEIRA DE OLIVEIRA

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