Marcha de supremacistas brancos em Charlottesville, em 12 de agosto de 2017| Foto: Evelyn Hockstein/For The Washington Post

O ano era 1977 e um grupo de neonazistas queria marchar por uma região no estado de Illinois onde, na época, um em cada seis dos residentes judeus era ou sobrevivente do Holocausto ou diretamente relacionado a um.

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A União Americana de Liberdades Civis (ACLU, sigla em inglês) argumentou com sucesso que a marcha deveria ser permitida, apesar das veementes objeções da cidade. (A manifestação foi finalmente transferida para Chicago.) Sua defesa da liberdade de expressão, mesmo se qualificando como discurso de ódio, custou à ACLU cerca de 30 mil membros – mas a organização permaneceu consistente com uma política que mantinha desde o final dos anos 30.

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Os limites da liberdade de expressão

Na semana passada, a ACLU decidiu mudar tal política em resposta ao violento protesto supremacista branco em Charlottesville, no estado da Virginia. Dezenas de manifestantes marcharam pela cidade com armas – alguns mais bem armados que a polícia, de acordo com oficiais do estado – ilustrando um novo problemático desafio para os guardiões da Primeira Emenda: o que fazer agora quando as pessoas querem exercer seu direito de protestar ao mesmo tempo em que desejam exercer seu direito de abertamente portar armas em público?

“Os acontecimentos de Charlottesville desencadearam um clássico debate americano que tem sido parte de nossa conversa constitucional por mais que cem anos”, disse Rodney Smolla, reitor da Escola de Direito da Universidade Widener de Delaware.

“Você tem o direito de se engajar em um discurso de ódio, e talvez haja o direito legal de carregar uma arma, mas quando se coloca os dois juntos em uma demonstração em massa você cria uma combinação perigosa”, adicionou Smolla.

O entrelaçamento da Primeira e Segunda Emendas não é inédito nos Estados Unidos (provavelmente tenha ficado mais famoso com os Panteras Negras nos anos 70, o que levou ao decreto de leis de controle de armas em estados como a Califórnia). Hoje, contudo, 46 estados possuem algum tipo de lei que permite o porte de armas em público – complicando o debate, de acordo com pesquisadores do Direito. Por sua vez, a ACLU disse que está tentando se adaptar aos tempos.

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Antes da manifestação de Charlottesville, a ACLU da Virginia defendeu com sucesso os organizadores contra um pedido das autoridades do município que tentaram transferir o evento para outra localidade. Por fim, a manifestação foi violenta – com 35 pessoas feridas e uma mulher morta, segundo a polícia, após um simpatizante neonazista atacar a multidão com um automóvel – e depois declarada ilegal. Dias depois – após a condenação pública do ato, inclusive por alguns dos membros da ACLU –, a organização nacional anunciou que não mais defenderá grupos que desejem marchar com armas de fogo.

Eles também afirmaram que vão analisar de perto eventos de seus filiados com possíveis indícios de violência, confirmou o diretor executivo Anthony Romero ao Wall Street Journal.

“Não é nem um não nem um sim final”, adicionou Sr. Romero, dizendo que a ACLU continuará a lidar com pedidos caso a caso. Mas os eventos de Charlottesville, ele disse, demandam “que qualquer grupo legal [como nós] olhe para os protestos de supremacistas brancos com muito mais atenção”.

Porte de armas

As tentativas de mudanças na lei sobre o porte de armas é o que faz atualmente o debate sobre liberdade de expressão ser tão mais complexo para grupos como a ACLU, dizem especialistas.

“A simples dedicação aos princípios da liberdade de expressão se torna um pouco mais obscura quando as pessoas estão carregando armas”, disse William Marshall, professor Kenan de Direito na Universidade da Carolina do Norte (UNC, sigla em inglês).

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“Você pode ter uma crença muito forte nos direitos da Segunda Emenda [permite o porte de armas] e da mesma forma nos direitos da Primeira [liberdade de expressão], mas mesmo que você acredite de fato neles talvez seja importante pensar em como esses direitos funcionam juntos em demonstrações altamente voláteis”, ele acrescentou.

Antes de dois protestos da autodenominada “extrema-direita” neste fim de semana na Califórnia, afiliados da ACLU na Califórnia emitiram sua própria declaração intitulada “Violência supremacista branca não é liberdade de expressão”.

“Se supremacistas brancos marcham em nossas cidades armados até os dentes e com a intenção de fazer mal a outras pessoas, eles não estão engajados em uma atividade protegida pela Constituição dos Estados Unidos”, concluiu a declaração.

Em Charlottesville, dezenas de civis carregaram armas semiautomáticas durante o protesto. Alguns “tinham melhor equipamento que a nossa polícia”, disse o governador democrata da Virginia Terry McAuliffe enquanto críticos sugeriram que os manifestantes fortemente armados fizeram a polícia temerosa demais para intervir na situação.

Marcha paramilitar

No entanto, um consenso inicial entre aqueles que pesquisam a liberdade de expressão está começando a emergir refletindo que um protesto com armas não pode ser tratado, dentro do propósito da Primeira Emenda, da mesma forma que um sem armas.

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“Uma marcha ou uma manifestação de pessoas que estão fortemente armadas não é um exercício do que a Primeira Emenda chama de ‘o direito de as pessoas pacificamente se reunirem’”, escreveu no blog Take Care o professor de Direito na Universidade de Cornell, em Ithaca, estado de Nova York, Michael Dorf.

Manifestantes aspirantes podem “como indivíduos, exercitar seu suposto direito da Segunda Emenda de carregar armas em público ou eles podem, como um grupo, exercitar o direito da Primeira Emenda de se reunirem pacificamente, sem estarem armados”, ele acrescentou. “A tentativa de combinar esses dois direitos implicará, em um caso comum, na ausência de proteção”.

Como manifestações com armas devem ser tratados pelos tribunais é algo que ainda deve ser decidido. Este terreno legal é ainda mais complicado pelo fato de que não há uma regra definitiva por parte da Suprema Corte em relação ao direito de carregar armas em público.

Nas decisões nos casos Heller (2008) e McDonald (2010) – os mais recentes envolvendo a Segunda Emenda ouvidos por um tribunal superior –, os juízes evitaram responder se os americanos têm permissão de carregarem armas abertamente em público. Recentemente, juízes se recusaram a aceitar um caso fora da Califórnia que abordaria diretamente isso.

Samuel Walker, professor emérito da Universidade de Nebraska e antigo membro da diretoria da ACLU, disse que a ACLU precisa continuar protegendo a liberdade de expressão até para os grupos mais extremistas porque “o progresso social avançou em parte porque nossa lei protege uma linguagem forte e, por vezes, até ofensiva”. Mas ele também concorda com a nova mudança de política da organização.

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“É um novo aspecto de toda essa controvérsia”, disse Walker, autor de “In Defense of American Liberties” (“Em defesa das liberdades americanas”, sem edição em português), que trata da história da ACLU. “Eu não acho que a ACLU deveria defender qualquer demonstração ou marcha onde os manifestantes planejam carregar armas”.

Os limites da liberdade de expressão

Antes da Segunda Guerra Mundial, o país era muito mais duro com discursos de ódio. Em 1919, a Suprema Corte dos Estados Unidos decretou que pronunciar-se contra o que era estabelecido não era protegido pela Primeira Emenda e, em 1942, juízes decretaram que “palavras de combate” (palavras que “infligem ferimentos ou que tendem a incitar uma quebra imediata da paz”) não estavam protegidas também.

Desde então, as visões dos juízes Oliver Wendell Holmes e Louis Brandeis prevaleceram. (Pelo menos, em locais públicos abertos. Em locais como escolas e prédios do governo há mais restrições de liberdade de expressão.) Tais juízes acreditam “que o bom discurso irá afogar o mau discurso” no “mercado de ideias”, disse o professor Smolla, autor de “Free Speech in a Open Society” (“Liberdade de expressão em uma sociedade aberta”, sem edição em português).

Assim como está, naquilo que concerne à Primeira Emenda, a liberdade de expressão inclui discurso de ódio. Diferentemente da Europa, “discurso de ódio” não possui uma definição legal específica nos Estados Unidos.

O compromisso da ACLU em defender os direitos da liberdade de expressão é motivado pela preocupação de que construir exceções, mesmo para a linguagem mais repulsiva, pode ser utilizado futuramente para censurar outras formas de discurso mais aceitáveis.

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Ainda assim, é esta posição que tem provocado a ira mais uma vez de muitos, incluindo alguns membros da organização. Há também uma mudança entre americanos jovens em relação à importância de proteger discursos ofensivos: 40% dos jovens adultos do século 21 acreditam que o governo federal deveria ser capaz de limitar o discurso ofensivo às minorias, conforme uma pesquisa de 2015 feita pelo Centro de Pesquisas Pew.

Mesmo antes de Charlottesville, a ACLU já estava sob fogo cruzado internamente por conta de sua decisão de defender Milo Yiannopoulos, uma figura publicamente conhecida na autodenominada “extrema-direita” – uma coalisão que combina nacionalismo branco, antissemitismo e populismo – em uma disputa com as autoridades de transporte público de Washington. As autoridades haviam se recusado a exibir as propagandas de Yiannopoulos no transporte público. (Yiannopoulos é apenas um dos diversos requerentes no caso, incluindo Carafem, um grupo que ajuda mulheres a obterem acesso a anticoncepcionais e medicamentos para aborto, o grupo de proteção animal PETA e a própria ACLU.)

Mas Charlottesville desencadeou uma reação muito maior.

Muitos pediram que patrocinadores parem de fazer doações à organização. Um membro da diretoria da ACLU na Virginia, Waldo Jaquith, renunciou ao cargo após os protestos de Charlottesville, tuitando que ele não iria “ser aquele que ajuda a ocultar os fatos para os nazistas”.

A nova conduta da ACLU deixa intocado o princípio de que o discurso de ódio é protegido constitucionalmente – um princípio que aqueles da esquerda estão questionando –, mas a dinâmica introduzida pelas novas leis ainda em modificação de porte de armas pode introduzir outro limite para as proteções americanas da liberdade de expressão no futuro.

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“O modo como a Segunda e a Primeira Emendas se interlaçam é de fato uma nova área de pesquisa legal”, disse o professor Marshall, da UNC. “Eu acho que qualquer um tratando dessa área está refletindo e tentando pensar sobre as ramificações”.