As vozes na cabeça de John Rudd ficavam cada vez mais altas. Era abril de 2017, e Rudd, interno em uma prisão federal da Virginia Ocidental, havia parado de tomar seus medicamentos psiquiátricos. Ele disse a funcionários do local que gostaria de se enforcar, então foi transferido a uma “cela de suicidas monitorada”. Quando Rudd bateu sua cabeça contra a parede, numa tentativa de quebrar o pescoço, recebeu injeções de haloperidol, droga antipsicótica usada para tratar esquizofrenia e prevenir tentativas de suicídio.
Mesmo assim, a administração da penitenciária concluiu que Rudd não estava doente o suficiente para ser submetido a um tratamento regular. No dia seguinte ao episódio, um psicólogo escreveu que ele deveria ser reconduzido à cela monitorada e permanecer no “nível de cuidado 1”, voltado aos presos que não precisam de grandes cuidados de saúde mental.
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Em 2014, em meio a inúmeras críticas e à pressão legal, o Departamento Penitenciário Federal dos EUA definiu uma política que previa maiores cuidados e vigilância a detentos com problemas psiquiátricos. Mas os dados obtidos pela reportagem por meio da “Lei de Liberdade de Informação” mostra que, em vez de expandir o tratamento, o órgão reduziu em cerca de 35% o número de presos destinados a cuidados de saúde mental mais extensivos. Cada vez mais as equipes que atuam nas prisões determinam que internos, alguns com longos históricos de problemas psiquiátricos, não precisam de nenhum tratamento de rotina.
Em fevereiro de 2018, o Departamento Penitenciário apontou que apenas 3% dos presos federais possuíam problemas psiquiátricos sérios o suficiente para justificar um tratamento regular. Em comparação, mais de 30% dos detentos em presídios estaduais da Califórnia recebem tratamentos para “sérios transtornos mentais”. Em Nova York, 21% dos presos estaduais recebem tratamento. No Texas, a taxa fica na casa dos 20%.
Uma análise em documentos de tribunais e registros médicos de detentos, que inclui entrevistas com antigos psicólogos de prisões, revelou que ainda que o Departamento Penitenciário tenha mudado sua política de saúde mental, não foram feitos investimentos para implementá-la. Por e-mail, o órgão confirmou que a equipe de saúde mental nas prisões não aumentou desde que a política entrou em vigor. O departamento esclareceu as dúvidas da reportagem por meio de um e-mail, sem identificar o funcionário responsável pelas respostas para que fosse citado nesta reportagem.
“Você dobra a carga de trabalho, mas mantém os recursos de antes. Não é preciso ser Einstein para perceber no que vai dar”, afirmou, sob a condição de anonimato, um psicólogo que trabalhou no Departamento Penitenciário. Ele não quis se identificar por causa de um processo judicial pendente a respeito de seu tempo na agência.
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O órgão penitenciário alegou que, por causa de uma recomendação do Departamento de Justiça, está “desenvolvendo uma estratégia” para analisar essa queda nos cuidados de saúde mental dos presos. Apesar de apenas uma parcela dos presos federais ser considerada doente o suficiente para fazer jus a um tratamento regular, as autoridades reconhecem que ao menos 23% desses detentos foram diagnosticados com algum transtorno mental.
Os dados mostram que a redução no atendimento varia muito dependendo da localização. Na penitenciária de segurança máxima de Hazelton – perto da prisão de segurança média onde o rapaz do início da matéria, John Rudd, está preso –, por exemplo, o número de detentos que recebem um tratamento psiquiátrico regular caiu 80% desde maio de 2014. Na prisão de Beckley, também na Virgínia Ocidental, o número despencou 86%.
Ainda que contratar e manter uma equipe psiquiátrica seja um desafio para todas as prisões, a tarefa se torna especialmente difícil em instalações mais remotas. Um estudo recente publicado pela Revista Americana de Medicina Preventiva (American Journal of Preventive Medicine, no original em inglês) mostrou que metade das comunidades rurais dos Estados Unidos não tem acesso a psicólogos, enquanto 65% não contam com um psiquiatra.
“A maioria das pessoas que passou por um longo período de estudos e despesas necessárias para se tornar um psicólogo não quer viver numa região rural”, afirmou Doug Lemon, que já atuou como chefe de psicologia em duas prisões federais do Kentucky. “Você até poderia dizer que ‘a clínica de Doug Lemon deveria ter, pelos menos, uns cinco psicólogos’, mas eu só contrato três, porque não consigo mais ninguém para trabalhar aqui. E adivinhe: eu preciso cumprir com três profissionais a mesma missão que demandaria cinco”.
A escassez de pessoal em várias áreas do sistema prisional forçou o Departamento Penitenciário a exigir que alguns conselheiros prisionais atuassem como agentes de correção, situação que piorou durante o governo Trump após um congelamento contratual destinado a cortar gastos. Em 2016, a agência instruiu os funcionários a parar de chamar psicólogos para tarefas não relacionadas à saúde mental, exceto em emergências. Os relatórios, entretanto, mostram como conselheiros ainda são chamados a realizar tarefas estranhas.
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“A frase de efeito do departamento era ‘faça mais com menos’”, contou Russ Wood, que atuou como psicólogo em prisões federais por 24 anos. “Os psicólogos eram chamados para trabalhar em torres de vigilância e na escolta de prisioneiros”.
Um porta-voz do departamento disse que todos os funcionários são, em primeiro lugar, “agentes da lei profissionais”, e que a agência não considera que cuidados de saúde mental sejam a principal preocupação dos conselheiros ou assistentes sociais que trabalham nas prisões.
Carga de trabalho
A política que vigora atualmente determina que os presos devem ser submetidos a consultas mensais ou mesmo semanais com profissionais de saúde mental, além de serem monitorados por uma equipe que se reúne regularmente para revisar o tratamento e observar o progresso dos pacientes. Antes de 2014, não havia equipes assim, e os profissionais de saúde mental verificavam os presos com menos frequência.
Patricia Griffin, que atuou como psicóloga na prisão federal de Otisville, em Nova York, recorda que seus colegas de trabalho temiam a mudança. Segundo ela, “você tem uma quantidade de tempo durante o dia e de repente sua carga de trabalho aumenta drasticamente”. Patricia disse que os membros de sua equipe examinaram os presos de modo a ver se seria possível reduzir os níveis de atendimento com segurança suficiente para diminuir os casos.
Antes da nova política, relatório apontou que os psicólogos tinham maior probabilidade de aumentar o nível de atendimento a um detento ao revisar seu estado de saúde mental. Mas uma vez que as regras mudaram, eles passaram a ser mais propensos a reduzir o tratamento dos prisioneiros.
O Departamento Penitenciário disse que os níveis de atenção podem mudar por muitas razões. A saúde mental dos prisioneiros se tornaria mais estável à medida que se ajustam à reclusão, por exemplo. Um porta-voz da agência observou que mesmo os presos no nível mais baixo de tratamento têm acesso a “serviços de saúde mental”, como medicamentos psiquiátricos.
Chegar a um diagnóstico do estado de saúde mental de um detento é difícil. Agentes penitenciários afirmam que é relativamente comum que os prisioneiros mintam ou exagerem sobre seus problemas para que não sejam colocados na solitária ou a fim de conseguir medicamentos que possam vender, trocar ou mesmo usar como droga. Ativistas dos direitos dos presos e advogados, entretanto, dizem que tal ceticismo leva os funcionários a descartar necessidades legítimas de tratamento psiquiátrico.
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Registros das prisões federais obtidos e analisados pela reportagem mostram que mais presos têm se voltado à autoagressão, embora os dados variem de acordo com a instituição. O número combinado de suicídios, tentativas de suicídio e automutilação aumentaram 18% de 2015 – quando o departamento começou a coletar os números – a 2017.
Depois que Rudd saiu da cela monitorada, funcionários do setor de psicologia da prisão deram por feito que ele estava fingindo a maioria de seus sintomas. Na ficha do detento, marcaram que o estresse pós-traumático e a esquizofrenia – diagnósticos feitos em um hospital psiquiátrico em 1992 – estavam “resolvidos”. Nos documentos, a equipe da prisão afirmou que Rudd sofria apenas de um transtorno de personalidade antissocial, e ele permaneceu no nível mais baixo de cuidado. Isso significa que em vez de ter uma equipe que o monitorasse, Rudd deveria avisar os guardar sempre que tivesse o desejo de se machucar novamente.
Tammy Seltzer, do DC Jail and Prison Advocacy Project, que presta apoio a ex-detentos com transtornos mentais, disse que o histórico médico de Rudd comprova que ele deveria ter sido designado para o nível mais alto de cuidados. Uma classificação mais elevada, disse , “teria assegurado que alguém o checasse constantemente. De modo algum ele deveria ter sido posto no nível 1 de cuidado. Nunca”.
Implorando por medicação
Doenças mentais não tratadas também contribuem para a violência na prisão. Enquanto a enorme maioria das pessoas com transtornos mentais não são violentas, pesquisas compiladas nos últimos anos mostram que indivíduos com transtornos psicóticos graves, especialmente quando não tratados, podem ter maior probabilidade de cometer um crime violento. E os indivíduos mentalmente doentes têm 11 vezes mais chance, em comparação à população em geral, de serem vítimas.
“Os sintomas podem incluir delírios, pensamentos de que há pessoas conspirando contra eles”, contou Paul Appelbaum, psiquiatra da Universidade Columbia. “[E] na medida em que são barulhentos ao falar sobre suas ilusões, intrusivos com outras pessoas ou hiperativos, podem acabar provocando outros prisioneiros, que irão atacá-los”.
A reportagem analisou dados que demonstram que a média mensal de agressões em todas as prisões federais aumentou 16% entre 2015 e 2016, o último ano com dados completos disponíveis. A maioria desses incidentes não foi classificada como grave – definidas pela agência como suficientes para causar morte ou ferimentos sérios –, que diminuíram nos últimos anos, antes da mudança na política de saúde mental, em 2014. Dos vários homicídios ocorridos recentemente em prisões, registros sugerem que o suposto agressor, bem como a vítima, não recebia o tratamento necessário.
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Em 2015, na penitenciária de Lewisburg, na Pensilvânia, Jose Hernandes-Vasques supostamente estrangulou seu companheiro de cela, Gerardo Arche-Felix, com um lençol, de acordo com uma acusação federal. Ele se declarou inocente do assassinato. Transcrições do tribunal mostram que Hernandez-Vasquez foi diagnosticado com esquizofrenia e sofre de delírios e paranoia.
O Departamento Penitenciário já havia marcado previamente Hernandez-Vasquez como doente mental; ele foi involuntariamente medicado em 2007. Mas em Lewisburg ele não recebeu nenhum tratamento, de acordo com documentos judiciais. Em uma audiência realizada em abril, um psicólogo declarou que os funcionários da penitenciária “simplesmente não reconheciam que ele estava doente”.
A suposta vítima de Hernandez Vasquez também não recebia o tratamento do qual precisava. Os registros mostram que, apesar de um histórico de hospitalizações psiquiátricas e tratamento para esquizofrenia, Arche-Feliz não apresentou “problemas significativos de saúde mental” enquanto estava em Lewisburg. Ele escreveu repetidamente para sua família implorando por medicação.
Na penitenciária de segurança máxima Hazelton, que registrou uma das maiores quedas nos cuidados de saúde mental, a taxa média mensal de agressões subiu de 29, a cada 5 mil detentos em 2015, para 40, em 2016. O aumento na taxa de ataques graves foi particularmente dramático, mais que quadruplicando nesse período. O chefe do sindicato dos agentes penitenciários tem relacionado o aumento na taxa de agressões à quantidade insuficiente de funcionários. A violência em Hazelton ganhou as manchetes no fim de outubro do ano passado, quando o infame chefe da máfia James “Whitey” Bulger foi assassinado logo após ser transferido para a instalação.
Em novembro de 2015, o detento Marricco Sykes, cuja família diz ter sido diagnosticado com esquizofrenia e transtorno bipolar, supostamente espancou e estrangulou outro detento de Hazelton, de acordo com uma acusação federal. A maioria dos registros de seu caso está sob sigilo. A família de Sykes diz que ele sofre de delírios e paranoia.
Em uma reclamação protocolada por Sykes em 2013, ele escreveu que os guardas lhe pediam armas e bombas para que pudessem assassinar o então presidente Barack Obama. Funcionários da prisão já haviam encontrado o detento agindo de forma “psicótica e ameaçadora”, e ele não foi considerado culpado de um ataque devido a seu estado de saúde mental. Mas a família de Sykes disse que, nos últimos anos, ele não foi submetido a nenhum tratamento. Ele é mantido em uma instalação médica federal enquanto seu julgamento está em andamento.
O Departamento Penitenciário se recusou a comentar esses casos individuais, citando questões de privacidade.
O modo como os detentos são diagnosticados pode afetá-los por muito tempo depois que saírem da prisão. A determinação de que os prisioneiros não têm nenhuma doença mental pode dificultar a obtenção de benefícios como a aposentadoria por invalidez ou tratamentos gratuitos assim que forem libertados. E em comparação aos presos que estão no nível mais baixo de atenção, os de níveis mais altos passam por uma preparação maior por parte da prisão antes mesmo de serem libertados, para que consigam seus medicamentos e encontrem um lugar de apoio para viver.
Quando Rudd deixou a prisão, em julho de 2017, após cumprir oito meses devido a uma violação de liberdade condicional decorrente de condenação por posse de cocaína, a organização de Tammy Seltzer o ajudou a conseguir um apartamento, aposentadoria por invalidez e um terapeuta. Seus registros recentes da prisão apontavam que ele não tinha nenhuma doença mental, mas foi possível comprovar a condição de Rudd por meio de seu longo histórico de problemas psiquiátricos e tratamento.
Agora, Rudd se encontra quinzenalmente com um conselheiro para tratar seu estresse pós-traumático e esquizofrenia, e toma diversos remédios para controlar seus sintomas. Oficiais da prisão, diz ele, “pensam que colocar você pelado em uma sala é suficiente para lhe acalmar. Eles podem muito bem fazer mais que isso. É preciso alguém para interagir com você. Na prisão, há todos os tipos de gatilhos [para o suicídio], mas ninguém para convencê-lo a não fazer isso”.
*** Essa matéria foi produzida em parceria com o Marshall Project, projeto jornalístico sem fins lucrativos que cobre o sistema de Justiça criminal dos EUA.