A Justiça brasileira não é conhecida pela agilidade. Mas um processo que já dura 123 anos e continua sem previsão de terminar é demais até para os padrões nacionais. Ele foi movido em 1895, pela princesa Isabel, seis anos depois que a monarquia havia sido derrubada e a família real, expulsa do país. Neste momento, tramita no Superior Tribunal de Justiça (STJ), onde já está há nove anos.
O tamanho da causa ajuda a explicar a morosidade: a família real solicita a reintegração de posse do Paço Isabel. Era assim que o edifício era chamado no século 19. Atualmente, ele é mais conhecido como o Palácio Guanabara, que sedia o governo estadual do Rio de Janeiro.
Tudo começou em 1891, dois anos depois da proclamação da República. Primeiro, um decreto, de número 447, determinou a incorporação do paço Isabel. Os representantes legais da família, que se mantiveram no Brasil, se recusaram a entregar o edifício. O novo governo, então, solicitou a posse na Justiça. Perdeu.
Em 23 de maio de 1894, um grupo de militares ocupou (e saqueou) o palácio. A União ficou no local e pediu na Justiça a posse novamente. Mais uma vez, o Judiciário decidiu a favor da família. Um recurso levado ao Supremo Tribunal Federal (STF) foi também recusado. Mas o governo do marechal Floriano Peixoto desobedeceu a decisão e não deixou mais o palácio.
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A família imperial moveu uma ação, no dia 25 de setembro de 1895, pedindo a reintegração da posse. Acabou derrotada – o caso foi julgado por Godofredo Xavier da Cunha, genro do líder republicano Quintino Bocaiúva. A família recorreu ao STF em 1897. A papelada desapareceu por décadas, sem explicação (supõe-se que tenha sido arquivada, de propósito ou não, no lugar errado). Em 1946, quando parte dos descendentes voltou a se instalar no Brasil, a família imperial apresentou um protesto, alegando que o antigo recurso não havia prescrevido. Em 1955, por via das dúvidas, entrou com uma outra ação.
Precedente grego
Em 1964, o processo de 1895 foi encontrado, finalmente. Demorou mais alguns anos, mas os dois casos, este e o de 1955, passaram a tramitar juntos. Antes de chegar ao STJ, os dois processos, que têm os números 1149487 e 1141490, foram negados pelo Tribunal Regional Federal (TRF) da 2ª Região.
“O palácio pertencia ao patrimônio privado da princesa Isabel e de seu marido, o conde d’Eu”, diz Guilherme de Faria Nicastro, advogado e autor de estudo sobre essa polêmica. Ele lembra que a construção foi comprada pela família com o dinheiro do dote pago pelo Estado, como previa a Constituição da época.
Existe um entendimento de que, ao ceder o dote [para a compra do Palácio Guanabara], a União atuou como entidade privada e não poderia reaver os valores. Nesse caso, mudanças políticas não deveriam interferir no direito privado, diz.
A União discorda. Alega que os 300 contos de reis dados a Isabel como dote por ocasião de seu casamento (o palácio foi comprado por 250) deveriam ser usados para comprar uma residência da princesa e que, no momento em que ela deixou de ser uma autoridade real no Brasil, o edifício deveria ser devolvido. E há também uma discussão, que se estendeu por toda a década de 1970, sobre o fato de o pedido da família ter ou não prescrevido. Finalmente, foi decidido que ele ainda é válido.
Agora, o caso continua caminhando, muito lentamente, no STF. Para Guilherme Nicastro, existe uma alternativa: recorrer à Corte Interamericana. O último rei da Grécia, Constantino II, adotou estratégia parecida ao recorrer à Corte Europeia de Direitos Humanos e, em 2000, venceu. O governo grego pagou a ele 12 milhões de euros por três propriedades tomadas da família imperial em 1967.
Construído pelo português José Machado Coelho a partir de 1853, em um local que desde o século anterior fazia parte de uma chácara, o atual Palácio Guanabara era uma residência particular até ser comprada pela família imperial. A princesa Isabel e o esposo o transformaram em sua residência no Rio de Janeiro em 1865, e posteriormente o Conde d’Eu adquiriu de seu próprio bolso alguns terrenos à volta.
O prédio abrigou a residência oficial dos presidentes da república entre 1926 e 1947. Desde então e até a inauguração de Brasília, sediou a prefeitura do Distrito Federal. Depois, passou a abrigar o governo estadual.
Indenização dividida
Caso vença a ação, a família pode pedir uma indenização a ser calculada por perícia, depois do processo – há quem especule que o valor poderia estar na casa dos R$ 300 milhões. Os beneficiados seriam todos os descendentes vivos de Isabel. Neste momento, eles somam dezenas de pessoas, entre bisnetos, trinetos e tataranetos, vindos de dois filhos da princesa, Pedro e Luís. Apenas o palácio está em discussão, ainda que o terreno, originalmente, fosse muito maior e incluísse o local onde hoje está o estádio de futebol do Fluminense.
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Mas por que, afinal, tanta polêmica em torno do Palácio Guanabara? A família imperial não ocupava outros edifícios? Sim, é claro. Mas a maior parte deles não havia sido comprada pela família. “O Paço Imperial, por exemplo, pertencia ao estado, era um edifício público. A família real não reclamou sua posse”, diz Guilherme Nicastro.
Já a coroa de Dom Pedro I, por exemplo, foi mantida com a família por decisão judicial. Afinal, havia sido feita com joias que pertenciam aos nobres, e não ao Estado. Ela seria depois adquirida pelo governo de Getúlio Vargas para ser exibida. O mesmo aconteceu com a fazenda da família em Petrópolis, que permaneceu na posse dos descendentes de Dom Pedro II, até que a família doou o espaço para a construção de um museu. Em quase todos os outros muitos casos, o governo republicano deu a Dom Pedro II dois anos para leiloar todo o patrimônio de sua família no Brasil, coisa que de fato foi feita.
O caso do Palácio Guanabara seguiu um rumo diferente, até pela importância que o edifício ganhou com o passar do tempo.
‘Há doses de incompetência e de má vontade, pois o processo ficou parado por 67 anos’, diz o historiador Gunter Axt, que pesquisa a história do Judiciário no país. ‘No passado, a Justiça esteve mais atrelada aos governantes, então, podia ser conveniente em certos contextos que algumas decisões se arrastassem’.
A eficiência e a independência dos tribunais vêm aumentando, ele alega, mas ainda aparecem, aqui e ali, julgamentos bastante atrasados.
“Por incrível que pareça, esse não é um caso tão isolado assim. O inventário do comendador Domingos Faustino Corrêa, por exemplo, tramitou na Justiça Comum do Rio Grande do Sul por 107 anos”. O comendador morreu em 1873 e seus descendentes passaram mais de um século discutindo seu espólio.
Em relação ao palácio no Rio de Janeiro, a disputa é resultado da mudança brusca de sistema político.
“A chamada proclamação da república foi um golpe de estado detonado por uma quartelada. E não foi incruento, ou pacífico, como se contou por décadas nas escolas”, diz Gunter Axt. “Os militares eram desde 1850 a vanguarda da nação, porque defendiam a abolição da escravatura e a industrialização do país. Mas ao chegarem ao Poder, provocaram uma catástrofe. Não se administra um país complexo como se gere um quartel. Estamos até hoje pagando o preço daquela aventura. Esse processo judicial de 120 anos é tão somente uma face pitoresca da tragédia”.
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