No início de setembro, a senadora Marta Suplicy (PMDB-SP) protocolou o projeto de lei (PLS) n. 312/2017, que tem como objetivo a inclusão do crime de “molestamento sexual” no Código Penal (CP). A proposta vem na esteira dos recentes casos de abuso sofrido por mulheres no transporte público do país, em especial em São Paulo (SP). O problema, apontam promotoras de Justiça, é que o texto, do modo como foi apresentado, pode confundir juízes no tocante à aplicação da legislação e até beneficiar estupradores já condenados.
Atualmente, o CP prevê, em seu artigo 213, que o estupro consiste em “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”. A pena para o crime é de reclusão, que pode variar de seis a 10 anos. O projeto de Marta, por sua vez, busca inserir à lei o dispositivo 213-A, que regula o seguinte em seu caput: “constranger ou molestar alguém, mediante violência ou grave ameaça, à prática de ato libidinoso diverso do estupro: pena – reclusão de 3 (três) a 6 (seis) anos”.
O grande problema em relação ao PLS é que, ainda que se tenha atribuído ao tipo penal o nome de “molestamento sexual” e feito a ressalva de que o ato libidinoso precisa ser “diverso do estupro”, o artigo descreve o que hoje já é considerado estupro, mas com pena mais branda.
Leia também: Projeto que torna crime de estupro imprescritível é aprovado no Senado
Celeste Leite dos Santos, promotora de Justiça e diretora da Mulher da Associação Paulista do Ministério Público, explica que, atualmente, considera-se estupro qualquer ato libidinoso que tenha sido praticado com violência ou grave ameaça. Se o projeto for aprovado, será conferida uma margem de discricionariedade muito ampla para os juízes entenderem se a violência praticada seria ou não estupro.
“Fica um tipo penal aberto demais. Será como dar um cheque em branco ao juiz, que de acordo com suas convicções pessoais é que vai entender se houve ou não estupro”, afirma a promotora. Celeste é autora, ao lado do também promotor Pedro Eduardo de Camargo Elias, do anteprojeto que deu origem ao PLS n. 312/2017. Quando souberam que Marta havia apresentado o texto, receberam a notícia com sabor agridoce.
Por um lado, diante da necessidade de haver um tipo penal intermediário – não tão grave a ponto de ser punido com seis anos ou mais de reclusão, mas que também merece pena maior que mera multa, caso da importunação ofensiva ao pudor –, é positivo que um legislador se interesse pelo assunto. Em contrapartida, o texto do PLS, como está, pode não só ampliar demasiadamente a discricionariedade dos magistrados, mas até beneficiar estupradores – inclusive os já condenados.
Procurada pelo Justiça, Marta Suplicy respondeu, por meio de sua assessoria de imprensa, que “o projeto não favorece os estupradores, pois, além de revogar a contravenção penal da importunação, que prevê apenas multa [artigo 61 da Lei das Contravenções Penais, cuja revogação também está prevista no PLS da senadora] e criar um tipo penal adequado para aqueles atos libidinosos que diferem do estupro (...), o novo texto mantém inalterado o atual artigo 213 do CP, permitindo aos juízes, nos casos de ato libidinoso equiparável ao estupro, aplicarem pena que varia de seis a 10 anos”.
Confira: Nos EUA, estuprador pode reivindicar direitos parentais. E no Brasil?
A senadora não levou em conta, porém, que, assim como no direito trabalhista existe o princípio da aplicação da lei mais favorável ao empregado, no direito penal é regra que se aplique a norma mais benéfica ao réu. Nesse caso específico, ao se deparar com dois artigos que tratam do mesmo crime – estupro, independentemente de qual tenha sido a intenção do texto –, mas um prevê pena menor, é o com pena menor que será aplicado.
“É uma norma nova [a proposta por Marta], mas que repete o tipo penal e dá um tratamento menos grave, então acaba beneficiando o ofensor”, diz a titular da 15ª Promotoria de Justiça de Cascavel (PR), Andréa Simone Frias.
O que também pode acontecer, caso o PLS seja aprovado sem modificações, é os juízes voltarem a considerar o estupro somente atos que envolvam a conjunção carnal, jogando os outros atos libidinosos no escopo do artigo 213-A proposto por Marta.
“Nesse sentido, delitos que são gravíssimos podem ser mais levemente apenados. Você pega casos de estupro de crianças pequenas, com cinco anos, por exemplo. Dificilmente há coito completo. Os atos, então, vão ser considerados libidinosos, mas numa ordem diferente da do estupro”, aponta a também promotora Susana de Lacerda, que atua em Londrina (PR).
Benefício a estupradores já condenados
Caso aprovado, o texto também pode beneficiar os estupradores já condenados. Isso porque é garantia constitucional que a lei penal retroaja se for para beneficiar o réu. Em resumo, se entrar em vigor uma legislação que regula um tipo penal já existente, mas com previsão de penal menor, o condenado pode propor revisão criminal para obter esse tratamento mais benéfico, esclarece Celeste.
A possibilidade de revisão criminal está prevista no artigo 621 do Código de Processo Penal (CPP).
Como resolver a situação?
A íntegra do artigo 213-A proposto por Marta Suplicy traz que:
“Molestamento sexual
Art. 213-A. Constranger ou molestar alguém, mediante violência ou grave ameaça, à prática de ato libidinoso diverso do estupro:
Pena - reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos.
Parágrafo único. Se o constrangimento ou molestamento ocorrer sem violência ou grave ameaça, independentemente de contato físico:
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos.”
Para as promotoras, o problema está no caput, como é chamada a “cabeça” do artigo. O parágrafo único é suficiente para preencher a lacuna legislativa hoje existente, na opinião das entrevistadas, que consideram essa parte do projeto muito boa. “O parágrafo único está ótimo, não precisa mudar nada, porque era justamente o que estávamos pleiteando”, conta Celeste.
A solução para resolver a questão, no entendimento Susana, seria suprimir o caput por completo. Andréa, por sua vez, pensa que o termo “mediante violência ou grave ameaça” deveria ser substituído por “sem o consentimento expresso da vítima”, situação que justificaria a aplicação de uma pena menor que a do estupro. “Nesse caso, o agressor não pede autorização da vítima, mas também não a ameaça ou é violento”, esclarece.
Saiba mais: O crime de estupro e a proteção constitucional da mulher
Já Celeste, que diz ainda não ter conversado com a senadora após a propositura do projeto, afirma que o principal imbróglio é em relação à pena. Caso não seja possível revogar o caput, a promotora sugere que seja apenas mudada a pena do artigo 213-A, igualando-a à pena do estupro, como já acontecia no atentado violento ao pudor – tipificação penal revogada pela Lei n. 12.015/2009.
Na última semana, a matéria foi distribuída na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, onde foi designado como relator o senador Armando Monteiro (PTB-PE). Segundo a assessoria de Marta, com o PLS submetido ao debate, o texto poderá, “como é natural do processo legislativo, receber contribuições e aperfeiçoamentos de outros senadores”.
Anteprojeto de lei
Confira a redação do artigo 213-A proposta no anteprojeto de lei, apresentado pelos promotores Celeste Leite dos Santos e Eduardo de Camargo Elias, e que foi modificada no PLS da senadora Marta:
“Abuso sexual
Art. 213-A. Molestar alguém, mediante a prática de qualquer ato libidinoso.
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, se o fato não constitui crime mais grave.
Parágrafo único. A pena será aumentada de um sexto até a um terço se o fato ocorrer no interior de transporte coletivo ou aglomerações públicas.”
-
Colaborou: Mariana Balan.
Deixe sua opinião