Matéria atualizada no dia 22 de dezembro de 2017
A alteração do registro civil de transexuais, mesmo sem a realização de cirurgia de redesignação sexual – a chamada “mudança de sexo” – é mais um assunto polêmico que ficou para o Supremo Tribunal Federal (STF) decidir em 2018. O julgamento de uma das duas ações que tramitam no tribunal sobre o assunto, iniciado no fim de novembro, recebeu provimento do relator da matéria na Corte, Dias Toffoli, e o voto favorável de outros quatro ministros.
Uma busca pela jurisprudência nacional revela que vários tribunais regionais já têm deferido a alteração no registro civil de transexuais, independentemente da realização da operação de transgenitalização. A justificativa, na maioria dos casos, é de que o gênero é preponderante ao sexo e que os documentos devem ser compatíveis com a forma como o indivíduo se vê. Ocorre que, mesmo com a realização da cirurgia, “não haveria a transformação da situação biológica, mas exclusivamente a tentativa de correção de uma inaptidão psicológica”. Seria, portanto, uma mudança na forma de viver do indivíduo, e não a “inversão da natureza”, como colocou Murilo Rezende Salgado no artigo “O Transexual e a Cirurgia para a Pretendida Mudança de Sexo”, da Revista dos Tribunais.
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Nesse sentido, é preciso indagar quais são as consequências jurídicas da alteração do gênero no registro civil de transexuais e que instituições teriam que fazer adaptações frente à nova realidade – até porque Toffoli deixou claro que o STF não teria a capacidade para pensar “em todas as situações do mundo fático”.
Previdência social
Um dos questionamentos mais comuns que se faz quando o assunto é transexualidade, justamente pelo fato de a lei não fazer nenhuma menção específica a essa situação, está ligado à aposentadoria. Uma pessoa transexual, afinal, vai se aposentar de acordo com a idade prevista para homens ou mulheres?
Atualmente, os requisitos adotados pela Previdência Social, idade ou tempo de serviço, são estritamente biológicos, isto é, destinados a homens ou mulheres. A lei é taxativa ao trazer os critérios para aposentadoria: 35 anos de contribuição, se homem e 30, se mulher, ou 65 anos de idade, no caso dos homens, e 60 no caso das mulheres, com redução de tempo para trabalhadores rurais e professores.
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Em relação aos transexuais, ainda não há precedentes na Justiça, mas Tereza Rodrigues Vieira, PhD em Direito pela Universidade de Montreal e que há 20 anos trabalha com o público transgênero, acredita que “a partir do momento em que a sentença transitou em julgado reconhecendo a adequação do nome e do gênero da pessoa trans, esta deve ser considerada como qualquer outra do mesmo gênero”. Para a advogada, “não deve haver diferenças na concessão de benefícios, independentemente da realização de cirurgias”. No estado de São Paulo, por exemplo, segundo Tereza, as ações do gênero têm demorado de dois meses a um ano para serem concluídas.
Como o sistema previdenciário é entendido como um sistema protetor, os juízes tenderiam a interpretar que aos homens transexuais (aqueles que nasceram com o sexo biológico feminino) devem ser aplicados os critérios relativos à aposentadoria das mulheres, por se tratar de norma mais favorável.
Em 2010, na Inglaterra, uma mulher transexual (que nasceu num corpo masculino) conseguiu, na Justiça, o direito de que sua aposentadoria fosse contada a partir do momento em que completou 60 anos, idade mínima para as mulheres se aposentarem na localidade. Na época, o Departamento de Trabalho e Pensões, agência governamental do Reino Unido, negou o pedido de Christine Timbrell, nascida Christopher, pelo fato de ela ter continuado casada com sua esposa, Joy.
É que pelo Gender Recognition Act (Ato de Reconhecimento de Gênero), emitido pelo Parlamento britânico em 2004 e que passou a valer no ano seguinte, a mudança de gênero só passa a ter efeitos legais se o transexual, se casado, divorciar-se de seu parceiro. No caso em questão, Christine se submeteu a uma cirurgia de redesignação sexual com o consentimento de Joy, com quem continuou a viver. Christine recorreu da decisão da agência governamental e o juiz que analisou a questão deu ganho de causa à transexual, com o argumento de que a incapacidade da lei ao lidar com pessoas transgênero seria discriminatória.
Forças Armadas
Em julho, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, usou seu perfil no Twitter para anunciar que pessoas transgênero não poderiam mais fazer parte do quadro das Forças Armadas do país. O republicano, que disse ter se reunido com generais e especialistas militares para chegar à decisão, foi na contramão de medida implementada pelo governo Obama. Último secretário de Defesa do democrata, Ashton Carter anunciou, em 2015, que a proibição de recrutamento de transexuais no país seria derrubada para garantir que “todas as pessoas capazes e dispostas a servir tenham a oportunidade plena e igualitária de fazê-lo”.
Mas pouco mais de três meses após o anúncio de Trump, a juíza federal Colleen Kollar-Kotelly, ao analisar o caso Jane Doe v. Trump, deu ganho de causa aos oficiais transgêneros, suspendendo a determinação do presidente. A sentença teve como base a quinta emenda à Constituição dos EUA, que prevê que todos têm direito ao devido processo legal. Na visão de Colleen, a medida de Trump não poderia ser colocada em prática enquanto a Justiça ainda discute o tema.
Enquanto organizações LGBT consideraram a decisão da magistrada uma vitória, houve quem a classificasse como “perigosa”, ao adentrar em uma seara que não seria de sua alçada. “Se Kollar-Kotelly quer comandar as Forças Armadas, ela deveria encarar a sociedade e concorrer à presidência. Até lá, seu tribunal deveria deixar a formulação de políticas para o homem mais bem informado e capacitado para o cargo”, escreveu Tony Perkins, presidente da ONG Family Research Council.
“Do ponto de vista legal, essas decisões são problemáticas. Juízes não têm o condão de desautorizar uma decisão fundamentada do presidente, sob sua autoridade constitucional como comandante-chefe [das Forças Armadas], capaz de estabelecer os princípios de elegibilidade para servir nas Forças Armadas”, disse Alden Abbott, pesquisador da The Heritage Foundation.
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No Brasil, transexuais/transgêneros não enfrentam nenhum impedimento formal para servir nas Forças Armadas. Segundo o Exército brasileiro, mulheres transexuais estão dispensadas do alistamento, ainda que não tenham realizado cirurgia de redesignação sexual. É preciso, porém, que decisão judicial transitada em julgado - sem possibilidade de recurso - tenha confirmado a alteração de gênero no registro civil antes do indivíduo completar 18 anos.
Já os homens trans, se maiores de 18 anos e com idade inferior a 45, assim que obtiverem a mudança no registro civil, precisam se alistar, para, “dependendo da idade, prestar o Serviço Militar obrigatório inicial ou constar no cadastro de reservistas para eventual convocação em caso de conflito armado." O alistamento deve ser realizado em até 30 dias após a mudança dos documentos.
Penitenciárias
Outra dúvida que surge é sobre o sistema prisional. Como todo ser humano, transexuais não estão imunes a cometer crimes, muito menos sujeitos à impunidade por parte do Estado. Onde, então, essas pessoas devem cumprir pena?
Em 2014, a Resolução Conjunta n. 1, da Presidência da República e do Conselho Nacional de Combate à Discriminação, estipulou que tanto homens quanto mulheres transexuais presos devem ser encaminhados a unidades prisionais femininas, além de ser facultado o uso de roupas masculinas ou femininas e garantida a continuidade do tratamento hormonal. No Rio de Janeiro, desde 2015, travestis e transexuais podem escolher ir para as alas dos presídios destinadas às mulheres, mesmo ano em que o Piauí registrou o primeiro caso de transferência de uma transexual de penitenciária masculina para feminina.
Mesmo assim, ainda há muitas críticas quanto a esses procedimentos e o assunto não está pacificado. De um lado, há relatos de transexuais que sofrem abusos nas cadeias, chegando a serem estuprados muitas vezes por dia. De outro, são registradas queixas de mulheres que se sentem inseguras em uma cela com mulheres trans que não realizaram a cirurgia de transgenitalização. Para complicar ainda mais esse cenário, a crise carcerária brasileira mostra o quanto é difícil controlar os presos ou segregar detentos que são perseguidos.
Casamento
As consequências para o casamento civil, tanto para pessoas transexuais que já realizaram cirurgia quanto para as que não o fizeram, também apresentam inúmeros desafios.
A advogada Tereza Rodrigues Vieira diz conhecer vários casos de homens e mulheres trans que, após a alteração legal dos documentos, contraíram matrimônio com pessoas do sexo oposto. A advogada, contudo, reconhece a possibilidade do cônjuge, desconhecendo a condição de transexual do companheiro, de pedir pela anulação do casamento.
Isso porque o inciso I do artigo 1.556 do Código Civil prevê como hipótese de anulação o erro essencial quanto à pessoa do outro, no “que diz respeito à sua identidade, sua honra e boa fama”. Nesses casos, o prazo para entrar com o pedido é de três anos a partir da data do casamento.
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“É possível que o cônjuge que desconhecia a transexualidade do outro tenha manifestado, antes do casamento, o desejo de ter filhos próprios, rejeitando a possibilidade de adoção ou reprodução assistida heteróloga. Ter filhos não é finalidade essencial do casamento, porém, o cônjuge que já conhece seu estado não deve omitir sua impossibilidade do outro”, afirma a jurista. Para ela, caso o transexual não tenha revelado seu estado anterior ao futuro companheiro, “deverá suportar as consequências de sua negativa no caso de o cônjuge haver indagado e a pessoa trans ter negado sua transexualidade”. O fundamental, insiste, é que haja ética entre aqueles que desejam levar uma vida em comum.
O Projeto de Lei (PL) 3875/2012, que tramita na Câmara dos Deputados, busca incluir explicitamente a hipótese de desconhecimento da condição de transexual do cônjuge no rol das possibilidades de anulação do casamento. De autoria do parlamentar Manato (SD-ES), o texto já foi aprovado pela Comissão de Seguridade Social e Família da Casa e aguarda agora parecer da Comissão de Constituição e Justiça.
Em audiência pública sobre o tema realizada na Câmara em 2015, convidados defenderam o direito ao esquecimento dos transgêneros, que asseguraria que o passado em uma outra identidade fosse realmente deixado para trás por esses indivíduos.
Esporte
As entidades ligadas ao esporte também são instituições que precisam se adaptar à nova realidade, estipulando regras sobre a participação de transexuais em torneios. Em relatório divulgado em janeiro de 2016, o Comitê Olímpico Internacional (COI) definiu as diretrizes para atletas transexuais participarem de competições esportivas, mesmo sem a realização de cirurgia de transgenitalização.
No caso de quem nasceu com o sexo biológico masculino e fez a transição de gênero para o feminino, a atleta precisa ter a identidade de gênero declarada legalmente e manter nível baixo de testosterona durante os 12 meses que antecedem o início das provas. Quando se trata de transexuais masculinos - aqueles que nasceram com o sexo biológico feminino -, a organização não prevê restrições.
No início deste ano, uma mulher transexual curitibana conseguiu o aval da Federação Paranaense de Vôlei (FPV) para disputar competições no estado, após comprovar, por meio de exames, manter baixos índices de testosterona. A Gazeta do Povo contou a história em março.
A força física, que seria maior em corpos masculinos, é um dos principais argumentos usados por quem se posiciona de forma contrária à participação de transexuais em equipes femininas, por isso a testagem do testosterona. Ocorre que mesmo com os níveis baixos à época da competição, pode-se afirmar que as mulheres transexuais possuem uma espécie de benefício pregresso em relação às mulheres biológicas.
O fisiologista Turibio Leite de Barros explica que, por terem tido mais testosterona no processo de “construção” do corpo, as mulheres transexuais têm massa muscular mais desenvolvida, o que seria uma vantagem em esportes nos quais força, impulsão e potência são fatores determinantes de desempenho. “Isso é incontestável, é um aspecto hormonal e fisiológico”, afirma Barros. Para o profissional, é uma situação difícil de ser resolvida porque, ao mesmo tempo em que essas pessoas têm o direito de se envolver em uma atividade esportiva, não é possível declarar que elas não possuem nenhuma vantagem.
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