Ficou bem para trás, na história, o conceito de que cidadão era um indivíduo - homem, mulher e criança - nascido ou naturalizado dentro de um território, com um conjunto de direitos e deveres. Da Grécia antiga, em que só ‘homens livres’ eram efetivamente cidadãos, chegou-se ao mundo de fechamento de fronteiras reais e abstratas, em que é difícil tornar esse indivíduo um efetivo cidadão até no próprio país em que nasceu.
Leis, normas e regras mudam a todo instante, e em todos os cantos - às vezes, apenas em função do viés ideológico do governante de plantão. Nos Estados Unidos, as regras têm endurecido ou afrouxado conforme as conveniências. São, por exemplo, bem seletivas para uma espécie de elite: os vistos H-1B, para imigrantes extremamente qualificados em educação e saber, são concedidos de forma simplificada. Para filhos natos de imigrantes ilegais, o tratamento mais “digno” é, como serventia da casa, a porta da rua - da expulsão sumária à separação dos pais ou, às vezes, à execração pública.
O fato é: por conta de questões socioculturais e políticas, as regras para concessão de cidadania passaram a ser tão variáveis quanto confusas ou até mesmo esdrúxulas.
“Como entender que alguns países europeus optem por atribuir cidadania para o neto de um cidadão que jamais pisou em seu território e não para o filho de imigrante que nasceu em seu próprio solo?”, questiona Flávio Jardim, doutor em Direito pela Fordham Law School, de Nova York (EUA) e advogado em Brasília (DF). "O aspecto cultural e a tradição ainda pesam demais", complementa ele.
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No Brasil, a Constituição Federal (art. 12, § 4º, II) tem como preceito a perda perda automática da nacionalidade para cidadãos brasileiros que adquirem outra cidadania, com exceções. Pelo ordenamento jurídico nacional vigente, a múltipla nacionalidade de brasileiros apenas é aceita se a outra nacionalidade decorrer do nascimento em território estrangeiro (nacionalidade originária), de ascendência estrangeira (nacionalidade originária) ou de naturalização por imposição da norma estrangeira como condição para permanência do brasileiro em seu território ou para o exercício de direitos civis.
Jardim diz que “o direito atual pode produzir situações que, apesar de legais, serão injustas”. Ele defende uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que altere esse teor para que milhares de brasileiros que adquiriram ou pretendem adquirir outra nacionalidade não corram o risco de ser submetidos a um processo de perda da cidadania brasileira. “Não parece existir justificativa racional para essa previsão constitucional, seja sob o ângulo moral, econômico ou político”, opina.
No entanto, a legislação brasileira em relação ao tema está ancorada na Constituição - e por mais que alguns governos queiram endurecer as formas de concessão de cidadania (ou refúgio ou asilo), a Carta conterá qualquer arroubo.
“Costumo dizer que isso acontece por prudência do legislador ou providência divina”, ressalta Joaquim Pedro Rodrigues, especialista em direito internacional do escritório Pisco & Rodrigues Advogados.
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Ainda assim, surgem sempre pendengas jurídicas: há três anos, Cláudia Cristina Hoerig - brasileira nascida no Rio de Janeiro, de pais brasileiros - foi extraditada para os EUA, sob a suspeita de ter matado o marido norte-americano, exatamente porque havia se tornado cidadã americana. O processo se deu com base na aplicação do art. 12 da Constituição. Flávio Jardim complementa que a nova Emenda deveria prever a possibilidade de se extraditar brasileiros natos que, após a naturalização, cometam crimes no país da nova nacionalidade e fujam para o Brasil.
Paralelamente, há outro fenômeno: brasileiras indo dar à luz nos EUA, principalmente em Miami, para garantir cidadania à criança. Pelas regras atuais, criança que nasça por lá tem direito à cidadania norte-americana - mas só ao completar 21 anos é que pode tentar estendê-la a pais ou irmãos.
Há até agências organizando esse tipo de “turismo”: a atriz Karina Bacchi, por exemplo, usou o serviço oferecido pela Ser Mamãe em Miami para ter Enrico, e gastou entre R$ 40 mil e R$ 80 mil, incluindo despesas com passagens e hospedagens. A agência foi criada em 2015 e estima ter prestado serviços para 300 famílias nos últimos três anos.
Lado positivo
Poder espontaneamente mudar de cidadania costuma trazer benefícios também, obviamente. Andrea Côrtes, uma aventureira jornalista curitibana sabe bem disso. Ela já morou - ao lado do filho e do marido - no Sri Lanka e no Vietnã e desde o ano passado vive na Inglaterra.Andrea tem dupla cidadania: é também italiana por laços sanguíneos há quase 20 anos, num processo que envolveu todos os descendentes da família.
“Tudo foi muito caro, burocrático e exigiu trabalho e disposição”, conta. Ela considera, contudo, que o trabalho valeu a pena. Andrea entrou na Inglaterra com passaporte italiano, por exemplo. Seu irmão, também brasileiro com dupla cidadania, estudou na Alemanha e até ajuda financeira recebeu do governo local, mas apenas pelo fato de também ter cidadania dupla (italiana, tornando-se, nesse caso, europeu).
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Na Inglaterra, a curitibana conseguiu toda documentação legal - algo, obviamente, facilitado pelo fato de o marido, Michael Johnson, ser britânico. Hoje, mesmo sem visto, ela exerce e goza de todos os direitos e deveres - inclusive para trabalhar e para usar o sistema de saúde pública britânico. Aliás, o filho dela, Luca Côrtes Johnson, já tem tripla cidadania (é brasileiro, italiano e britânico).
“Se alguém tiver alguma chance, deve tentar a dupla cidadania. Só vejo benefícios”, diz Andrea. Hoje, ela vive numa cidadezinha inglesa de 24 mil habitantes, Market Harborough. Ao contrário do que poderia acontecer na maioria das cidades brasileiras, Andrea nunca usou tranca para a bicicleta. “E sempre a deixo em frente de casa, na rua”.
Conceitos
Nacionalidade
Vínculo político entre um Estado soberano e o indivíduo.
Naturalização
Adoção de uma naturalidade, geralmente a partir da renúncia da original, concedida de forma espontânea.
Jus sanguinis
Significa "direito de sangue”. Tem como princípio dar cidadania a um indivíduo a partir da sua ascendência. Surgiu para reparar danos das grandes migrações europeias decorrentes de guerras, principalmente, garantindo pátria aos descendentes desses.
Algumas nações que adotam o jus sanguinis (embora com alguns critérios distintos):
- Alemanha;
- Áustria;
- Hungria;
- Japão;
- Polônia;
- Rússia;
Jus soli
Termo latino que significa "direito de solo". Tem como princípio reconhecer o lugar de nascimento de um indivíduo para efeito de nacionalidade. Levantamento da empresa de mídia alemã Deutsche Welle (DW) mostra que pelo menos 30 Estados-nações outorgam nacionalidade a todos os nascidos em seu território. Veja os principais:
- Argentina;
- Brasil;
- Canadá;
- Chile;
- Cuba;
- Estados Unidos;
- México;
- Paraguai;
- Peru;
- Uruguai
- Venezuela;
Jus soli restrito
Alguns países concedem nacionalidade a quem nasce em seu território desde que preencham certos critérios, como exigir que um dos pais tenha a nacionalidade do país. É o caso da Austrália, Colômbia, Irlanda, Malásia, entre outros.
Como funciona em casa país
Brasil
O Brasil adota o critério jus soli. Mas o país leva em conta muitos critérios do jus sanguinis - assemelhando-se, aliás, a um sistema híbrido.
Para estrangeiros, o Brasil não abre exceções (nem mesmo casamento): o que permite o pedido de cidadania é o tempo de residência (15 anos ininterruptos). Brasileiro que nasce no exterior não é brasileiro - a não ser que que seja registrado em repartição brasileira competente ou venha a residir no Brasil e opte, em qualquer tempo, depois de atingida a maioridade, pela nacionalidade brasileira.
Portugal
Em Portugal, não basta o filho de estrangeiro nascer no território para garantir a cidadania. Para a cidadania originária (plena desde o nascimento, até com direito à transmissão aos descendentes), exige-se que um dos pais esteja morando legalmente por dois anos no país. Até meados do ano passado, eram exigidos cinco anos de residência legal.
Para a cidadania derivada (naturalização sem direitos plenos) exige-se que um dos pais resida, legal ou ilegalmente, em Portugal, há pelo menos cinco anos. E que o filho tenha concluído um ciclo do ensino básico ou secundário. O naturalizado não pode, por exemplo, candidatar-se a cargos como presidente da República ou ao senado local.
Espanha
Criança que nasça no país, desde que um dos pais também tenha nascido lá, obtém até de forma fácil a cidadania. Filhos de pais brasileiros nascidos na Espanha têm direito à nacionalidade espanhola, mas o processo exige, entre outras coisas, dois comprovantes do consulado brasileiro local: um atestando não reconhecer a nacionalidade brasileira e outro mostrando que não há registro da criança.
França
Teve como política, até 1993, conceder cidadania a qualquer cidadão que nascesse em seu território. No entanto, passou exigir que filhos de pais estrangeiros sejam obrigados a requerer a nacionalidade ao completarem a maioridade (18 anos, no caso).
Alemanha
Também aliviou as regras: filho de estrangeiro que tenha visto permanente há pelo três anos, ou more no país por oito anos, garante cidadania.
Tailândia
Lembra daqueles meninos que ficaram presos numa caverna por duas semanas no ano passado? Três deles, mesmo nascidos lá, não eram cidadãos: o Estado não concede cidadania a filhos de estrangeiros, principalmente dos países vizinhos (Mianmar, China e Laos). Pelo menos 500 mil crianças e jovens estão nessa situação. Depois do episódio, o governo enfim deu cidadania a eles e ao técnico de futebol que os acompanhava no trágico episódio.
Estados Unidos
Maior alvo de brasileiros, os EUA só oferecem duas maneiras para alguém obter cidadania: crianças nascidas nos EUA, filhos de pais americanos ou pais estrangeiros que vivem legalmente em território americano; crianças nascidas em outros países e que um ou ambos os pais sejam americanos.
Por naturalização, para estrangeiros, haja exigências: green card (cartão de residente permanente), fluência na língua, conhecimento histórico local, ausência de antecedentes criminais etc etc. Todo o processo é relativamente barato: US$ 725, ou cerca de R$ 2,7 mil.
Dinamarca
As regras para concessão de cidadania são rígidas. Mesmo para quem, nascido fora do país, tem pai ou mãe dinamarqueses (as condições variam de pai para mãe).Casar com um cidadão de lá não garante cidadania automática. E o processo ainda pode durar uma década. Morar ou ter filho também não importa muito.
Itália
Filho de pai ou mãe italiano é italiano. Mas o país admite cidadania por direito de solo (sendo um dos pais cidadão italiano). Se os pais (ou só um) forem italianos naturalizados, os filhos ganham cidadania de forma automática. A Itália também dá cidadania a filhos de pais apátridas.
Reino Unido
Filhos de britânicos nascidos no Reino Unido são britânicos. Filho de estrangeiro nascido por lá não garante automaticamente - depende do período em que nasceu, das circunstâncias da permanência dos pais etc. Para estrangeiros, exige-se fluência na língua, visto de residência e, por fim, o canto God Save the Queen.
Outras possibilidades
Há outras possibilidades para garantir cidadania caso você não tenha direito ao jus soli ou sanguinis:
Casamento
Muitas maneiras, com condições também distintas, existem para garantir cidadania com o casamento com um(a) local. Há países que garantem, a princípio, permanência fixa - e depois estendem o benefício para a nacionalidade. Outros dão a cidadania logo no dia do casório. O Brasil não dá cidadania nesses casos - exige tempo de moradia, por exemplo. Já em outros, o estrangeiro ganha no ato o direito à residência permanente, porém a cidadania só sai depois de dois anos.
]No Reino Unido, a lei exige que, mesmo casando com cidadão britânico, o requerente terá que residir por lá por cinco anos (para obter a residência permanente) - e somente depois de um ano com visto definitivo pode solicitar cidadania.
Residência e bom comportamento
Muitas nações oferecem cidadania a quem morar por determinado tempo, variável de país a país, e jamais tenha cometido crime, por exemplo. Portugal e Grã-Bretanha garantem nacionalidade qualquer imigrante que esteja legalmente no país há pelo menos cinco anos. A Itália exige 10 anos ininterruptos, mas há exceções: se o estrangeiro tiver mãe, pai ou outro ascendente italiano, o prazo cai para 3 anos. Na Espanha, para brasileiros, bastam apenas dois anos de moradia.
Dinheiro e bens
Parece estranho saber que dinheiro ‘compra’, de alguma forma, cidadania, mas é fato: comprar imóveis (principalmente de alto padrão) ou construir fábricas e montar comércio que garantam empregos podem garantir nacionalidade.
Em Portugal, quem adquirir um imóvel acima de 500 mil euros (R$ 2,2 milhões) ou aplicar 1 milhão de euros em bancos garante o golden visa. Já nos Estados Unidos, o Programa de Investidor (o EB-5) garante cidadania - incluindo cônjuge e filhos solteiros menores de 21 anos - para quem investir acima de US$ 500 mil e criar 10 postos de trabalho no país. Mas isso é possível só cinco anos depois do investimento. Costa Rica e Panamá também estimulam esse fenômeno.
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