O governador da Virgínia, Ralph Northam (Partido Democrata), ofereceu uma defesa qualificada do infanticídio ao comentar, recentemente, a respeito de um projeto de lei que afrouxaria as restrições ao aborto tardio (após o terceiro semestre de gestação) em seu estado. Sobre o caso hipotético de uma mulher entrar em trabalho de parto e mesmo assim querer abortar, Northam disse:
“Eu posso dizer exatamente o que aconteceria:o bebê nasceria e seria mantido confortável. A criança seria ressuscitada, se fosse o caso e fosse isso que a mãe e a família desejassem. Então, uma discussão seria travada entre os médicos e a mãe”.
Antes de os comentários de Northam serem rapidamente ofuscados pela descoberta de uma foto chocantemente racista retirada de sua página no anuário da faculdade de medicina que ele frequentou, seu gabinete divulgou nota no sentido de que abortos após o primeiro trimestre de gestação se dão em “circunstâncias trágicas ou difíceis, como uma gravidez não viável ou no caso de anormalidades fetais graves, e as declarações do governador se limitaram às ações que os médicos tomariam no caso de uma mulher nessas circunstâncias entrar em trabalho de parto”.
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A declaração de Northam trouxe à mesa a questão: um bebê, destinado ao aborto mas nascido vivo, ainda que em circunstâncias trágicas, é uma pessoa que mereceria a proteção da lei? Nos debruçarmos sobre essa questão nos leva rapidamente ao centro do debate sobre Roe v. Wade (1973) e seu legado atual.
Em Roe, a Suprema Corte invalidou a lei centenária sobre aborto do Texas, que autorizava o procedimento apenas se a vida da mãe fosse colocada em risco pela manutenção da gravidez. Quando combinada à decisão de Doe v. Bolton, que saiu no mesmo dia, a nova jurisprudência do tribunal passou a permitir o aborto em qualquer fase da gravidez, caso um médico julgasse a interrupção necessária para preservar a saúde da mulher, entendida “à luz de todos os fatores - físico, emocional, psicológico, familiar e da idade da mulher”.
Personalidade e direitos constitucionais
Um dos pontos críticos que decorreu da decisão em Roe se trata da premissa de que crianças não nascidas não são pessoas, constitucionalmente falando. Se fosse estabelecido que “um feto é uma pessoa protegida pela 14ª Emenda [à Constituição dos EUA]”, então derrubar a lei texana seria “praticamente impossível”, disse o então ministro da Suprema Corte Potter Stewart, durante os argumentos orais do julgamento. Desde o início da análise de Roe, o tribunal insistiu que “a palavra ‘pessoa’, como aparece na 14ª Emenda, não inclui os não nascidos”.
A advogada da autora de Roe v. Wade, Sarah Weddington, deixou a questão ainda mais clara durante seu pronunciamento no tribunal. Antes do nascimento, ela afirmou, as crianças no útero estão “desprotegidas de qualquer tipo de direito constitucional federal”.
Mais à frente, muitos juízes conservadores, como o já falecido Antonin Scalia, também sustentaram que a Constituição Federal dos EUA realmente não protege seres humanos não nascidos. A questão do aborto, portanto, ficaria inteiramente a cargo das legislações estaduais.
Ocorre que no julgamento de Roe o tribunal insistiu que a 14ª Emenda garantiria um direito constitucional à interrupção da gravidez, que não poderia ser revogado pelas leis dos estados. Esse tipo de afirmação fez com que se questionasse a respeito do significado moral e legal do nascimento, e se a decisão de 1973 não abriria portas para o infanticídio legalizado.
O que distingue o aborto de um homicídio?
Ao refletir a respeito do debate acadêmico sobre o assunto durante a década anterior a Roe, o filósofo Michael Tooley observou, em artigo publicado em 1972 na revista Philosophy & Public Affairs que “parece-me muito difícil formular uma posição liberal completamente satisfatória sobre o aborto sem enfrentar a questão do infanticídio”.
O posicionamento de Tooley, compartilhado hoje por filósofos como Peter Singer e Francesca Minerva, é de que não há nenhum fato moralmente relevante que diferencie o aborto do infanticídio. Eles defendem, portanto, o infanticídio como um corolário de princípios para que se aceite o aborto. Os filósofos abertamente pró-vida concordam, mas insistem que tanto o aborto quanto o infanticídio são modos igualmente injustos de retirar a vida humana.
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A consistência, entretanto, não é exigida na política como é na filosofia. Nesse sentido, os debates políticos e legais sobre o aborto ficaram defasados por muitos anos em comparação ao debate filosófico. Quando o caso Roe v. Wade ainda tramitava na Justiça, a legislação do Texas previa, especificamente:
“Quem quer que, durante o parto, destrua a vitalidade da criança, em estado antes do nascimento efetivo, que teria nascido viva de outra maneira, será confinado em penitenciária por toda a vida, ou por não menos que cinco anos”.
Durante a apresentação dos argumentos orais no julgamento de Roe, o ministro Thurgood Marshall perguntou, especificamente, sobre a questão do parto prevista na lei texana de proibição ao aborto. O questionamento levou ao seguinte diálogo com o então procurador-geral do Texas, Robert Flowers:
Ministro Marshall: O que esse estatuto significa?
Flowers: Senhor?
Ministro Marshall: O que significa?
Flowers: Eu acredito que...
Ministro Potter Stewart: Que é um crime matar uma criança durante o trabalho de parto?
Flowers: Sim, senhor. Seria imediatamente antes do parto, ou perto do nascimento da criança.
Ministro Marshall: O que não seria um aborto.
Flowers: Que não é, não seria, um aborto, sim, senhor. Você está certo, senhor. Seria um homicídio.
A discussão entre os ministros Marshall e Potter Stewart e o procurador Flowers demonstram que o aborto durante o trabalho de parto, ou imediatamente após o nascimento do bebê, seria uma espécie de homicídio, e não do constitucionalmente protegido aborto.
Embora os comentários dos juízes fossem certamente políticos para a ocasião, muitos dos debates travados sobre aborto nos últimos 45 anos foram sobre as implicações lógicas e limites da jurisprudência decorrente de Roe v. Wade.
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12 anos depois da decisão, por exemplo, um médico do Texas foi condenado a 15 anos de reclusão por realizar o parto de uma menina lançando mão de uma histerectomia (retirada do útero) e depois afogá-la num balde d’água. Os advogados do médico argumentaram que, segundo a lógica de Roe, a criança que seria abortada, mas nascida viva, era um “não-indivíduo”, desprotegida da lei estadual de criminalização do homicídio.
O tribunal do Texas manteve a condenação do médico, mas outros casos do chamado “aborto de nascidos” surgiram pelo país, e a população foi confrontada com a importante questão: o direito ao aborto incluiu o direito de “abortar” uma criança logo após seu nascimento?
A legislação do “nascido vivo”
Os adversários de Roe logo concentraram sua atenção no que Hadley Arkes - principal articulador do Ato de Proteção dos Nascidos Vivos (2002) - chamou de “modesto primeiro passo”: a proteção legal de uma criança inadvertidamente nascida viva durante um procedimento de aborto.
O esforço para proteger em lei federal os nascidos vivos tinha um amplo propósito pedagógico. Dizer “por que a criança tem uma dignidade intrínseca”, explicou Arkes mais tarde em suas memórias, é “colocar em prática a premissa que finalmente enfraqueceria ou dissolveria o ‘direito ao aborto’ e toda a jurisprudência construída apoiada nesse slogan”.
Após os comentários do governador de Virgínia, Ralph Northam, o senador Ben Sasse (Partido Republicano), de Nebraska, renovou os pedidos para aprovar uma lei com objetivos pedagógicos semelhantes. O Ato de Proteção aos Sobreviventes de Aborto Nascidos Vivos requer que médicos “exerçam o mesmo grau de habilidade profissional, cuidado e diligência necessários para preservar a vida e a saúde da criança”, como fariam em relação a “qualquer outra criança nascida viva na mesma idade gestacional”.
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Projetos como esses colocam os defensores do aborto legal numa situação embaraçosa. Embora poucos políticos já tenham declarado prontamente apoiar o direito ao infanticídio, os princípios implícitos na legislação de proteção aos nascidos vivos claramente ameaça a lógica do direito ao aborto. Enquanto atuava no Senado de Illinois, Barack Obama disse, a respeito de uma movimentação local sobre o tema, que protestaria contra qualquer lei que buscasse reconhecer como pessoa um bebê nascido durante um procedimento fracassado de aborto.
Obama temia que proteger “um feto ou criança - como alguns poderiam descrever” que estivesse “temporariamente vivo fora do útero” implicaria em eles serem “pessoas com as mesmas proteções destinadas a crianças - um bebê nascido aos nove meses de gestação”. O senador Obama percebeu o perigo que esse princípio representaria para o sistema de aborto construído após Roe. Quando o tema voltou a ser debatido mais tarde, Obama declarou categoricamente que a “questão fundamental é sobre o aborto, e não a respeito de nascidos vivos”.
As questões não são facilmente dissociadas. As controvérsias modernas sobre aborto e infanticídio surgiram juntas, em uma hora não auspiciosa, e a proteção jurídica destinada a uma criança imediatamente após seu nascimento é difícil e desconfortável se analisada através das premissas que sustentam o direito ao aborto. Dar um passo tão modesto neste momento, como assegurar os cuidados a uma criança nascida viva, continuaria a estabelecer as premissas que visavam primeiro conter e depois retroceder a lógica imposta após Roe v. Wade.
* Justin Dyer é professor de Ciência Política e diretor do Kinder Institute on Constitucional Democracy na Universidade do Missouri.
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