A forte reação contra a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 181/2015, que pretende reformar os artigos 1º e 5º da Constituição Federal, explicitando que a proteção da vida humana começa na concepção, não passa de confusão e de cortina de fumaça. O que realmente está em jogo, se a proposta for aprovada como está, é o fardo que o Supremo Tribunal Federal (STF) precisará chamar para si se quiser legalizar o aborto em qualquer circunstância até a 12ª semana de gestação, como pede a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442, formulada pelo Instituto Anis e pelo PSOL.
A PEC 181/2015 está sendo vendida por alguns setores da militância como se proibisse o aborto em todas as circunstâncias. É um equívoco. A atual proposta de explicitar que a dignidade humana começa na concepção e que a Constituição protege a vida desde a concepção é uma reação dos parlamentares a uma decisão, além de mal fundamentada, tecnicamente equivocada da Primeira Turma do STF, que, em novembro do ano passado, julgou que a proibição do aborto até o 3º mês de gestação seria inconstitucional. À ocasião, a turma discutia uma questão processual em um habeas corpus e acabou se excedendo, a partir de um voto do ministro Luís Roberto Barroso, entrando no mérito da proibição do aborto.
Alguns meses depois, não por acaso, o Supremo recebeu a ADPF 442, que se fundamenta em dois argumentos independentes entre si. O primeiro deles, baseado em uma leitura enviesada da jurisprudência do próprio tribunal, afirma que só os seres humanos já nascidos seriam “pessoas constitucionais” e, portanto, destinatárias da proteção constitucional à vida. Seres humanos não nascidos seriam meras “criaturas humanas intraútero”, passíveis apenas de proteção legal infraconstitucional. Em suma, não teriam direitos fundamentais. A distinção ecoa argumentos morais que procuram justificar o aborto desde a década de 1960 e algumas decisões judiciais de outros países, mas não encontra fundamento nas leis e na tradição jurídica brasileiras.
De fato, o artigo 2º do Código Civil diz que “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro” [destaque nosso], mas o Código Penal elenca o aborto nos crimes contra a pessoa. Nelson Hungria, ex-ministro do STF e um dos maiores criminalistas da história do Brasil, quando enfrentou os argumentos a favor do aborto, já escrevia que o feto – ou o embrião, ou a mórula, ou qualquer nome que se dê ao ser humano individual que porta um novo código genético a partir da fecundação – é “um subjectum iuris [sujeito de direito], podendo dizer-se que tem caráter de pessoa” e que “o interesse jurídico relativo à vida e à pessoa é lesado desde que se impede a aquisição da vida e da personalidade civil a um feto capaz de adquiri-las (...) Quem pratica um aborto não opera in materiam brutam [sobre matéria bruta], mas contra um homem na antessala da vida civil”.
Apesar disso, e apesar de a Constituição não fazer qualquer distinção entre os seres humanos nascidos e não nascidos, quem quer a descriminalização do aborto no Brasil usa essa distinção como argumento para a revisão judicial do Código Penal. É nesse contexto que a PEC 181/2015 procura explicitar o que o constituinte de 1987-1988 não viu necessidade de escrever, porque lhe parecia óbvio: vida protegida é vida humana em qualquer estágio de desenvolvimento.
As exceções
É verdade, porém, que a lei prevê dois casos especiais e aqui começa parte da confusão. O artigo 128 do Código Penal diz que “Não se pune o aborto praticado por médico: I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante”, o chamado aborto terapêutico, e “II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal”, o chamado aborto sentimental.
O STF criou uma terceira hipótese ao liberar o aborto de fetos anencefálicos, a partir de fundamentos dúbios: ora aparece o raciocínio de que fetos anencefálicos não possuiriam expectativa de vida e, portanto, não seriam vida no sentido relevante do termo; ora os ministros parecem enquadrar a hipótese no inciso I do artigo 128, argumentando a partir dos riscos da gravidez.
O artigo 128 do Código Penal diz que “não se pune o aborto”. Portanto, em interpretação literal, crime haveria em qualquer hipótese, mas a lei escolheria pela não punição de duas delas, em razão da excepcionalidade da situação. Quando o Código quer excluir a própria existência do crime, ele escreve “não há crime” ou “não constitui crime”. Então, de acordo com essa posição, a conduta, embora não punível, manteria seu caráter ilícito. Isso sinaliza a opção da comunidade brasileira em afirmar a sacralidade da vida, mesmo que, em algumas circunstâncias, uma tragédia pessoal possa escusar alguém de ser punido por não respeitá-la.
Opinião da Gazeta: A defesa da vida na Constituição
A maior parte dos juristas, porém, tem argumentado que as duas exceções são análogas às excludentes do artigo 23, I: “Não há crime quando o agente pratica o fato: I – em estado de necessidade”. Está em estado de necessidade “quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se”. Em suma, não seria razoável exigir de uma mulher sacrificar a própria vida para salvar a vida do feto ou levar a cabo uma gravidez resultante de estupro, embora ela possa fazê-lo se quiser. O aborto, nestas hipóteses, não seria um ato ilícito.
Seja como for, explicitar a proteção da vida humana desde a concepção, como quer a PEC 181/2015, não contraria nenhum dos fundamentos para as exceções abertas pelo artigo 128 do Código Penal. Mesmo se alguns deputados tenham essa intenção, a aprovação de uma PEC não revoga parte do Código Penal. A decisão sobre isso seria do Poder Judiciário e, fatalmente, do STF, que não tardaria em agir para pacificar qualquer confusão sobre o tema. Isso se ainda antes, provocado, o Supremo não acabasse por invocar a competência de declarar a inconstitucionalidade da própria PEC, com base no artigo 60, § 4, IV da Constituição. Se se equivocar na interpretação que dê aos efeitos da proposta, o Supremo pode entender que a PEC “tende a abolir direitos individuais” das mulheres e, portanto, seria inconstitucional – o STF é um dos poucos tribunais do mundo que arrogaram para si uma competência tão invasiva contra as prerrogativas do Legislativo.
O que está em jogo
Mas o real efeito da aprovação da PEC 181/2015, que realmente poderia fazer diferença para a defesa da vida, seria aumentar o ônus argumentativo no colo do STF, se a corte quiser legalizar o aborto pela via judicial no julgamento da ADPF 442. A proteção da vida desde a concepção, inscrita com todas as letras na Constituição, enterraria o argumento de que os seres humanos não nascidos não seriam protegidos. Isso é o que realmente está em jogo.
A bem da verdade, porém, o alerta que deve ficar é que nem mesmo a aprovação da PEC 181/2015 afastaria de vez o risco de o Supremo legalizar o aborto. Desde que se disseminou pela Judiciário brasileiro a “doutrina da proporcionalidade”, os juízes abusam do cacoete retórico de que “nenhum direito é absoluto, nem mesmo o direito à vida”. A ideia é que, diante da colisão entre direitos fundamentais, deve-se fazer uma ponderação e decidir, no caso concreto, qual deve prevalecer. Restrições desproporcionais, mesmo aprovadas pelo Legislativo, são inconstitucionais.
A doutrina da proporcionalidade trouxe avanços à efetividade de direitos, mas tem sido aplicada a esmo, sem maiores rigores. O segundo argumento da ADPF 442, de fato, é que a proibição irrestrita do aborto, por uma série de razões, seria desproporcional (entenda a discussão aqui) ao dar prevalência ao direito do feto diante das restrições à liberdade da mulher. A incongruência da aplicação desse raciocínio quando o direito à vida está em jogo num nível tão elementar salta aos olhos, mas o aborto tem sido legalizado com base nele em vários países. É aqui que reside o nó górdio da questão.
No fundo, mesmo que não se diga, opera-se com a premissa de que a vida dos seres humanos não nascidos vale menos. A PEC 181/2015 é um avanço, reagindo a essa compreensão equivocada, mas não garante que a disputa política ou jurídica esteja ganha.
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