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Seleção brasileira desfila em Brasília (DF) após vencer a Copa do Mundo de 1970, no auge da ditadura militar brasileira. | Arquivo
Seleção brasileira desfila em Brasília (DF) após vencer a Copa do Mundo de 1970, no auge da ditadura militar brasileira.| Foto: Arquivo

A prisão do ex-presidente Lula provocou, na sociedade civil, um debate que há muito agita o meio jurídico: a possibilidade de o condenado cumprir pena de reclusão independentemente de estar pendente o julgamento de recursos em tribunais superiores – que, na prática, acabam funcionando como uma “terceira” e até “quarta” instâncias. 

O que nem todos sabem é que durante muito tempo, e por conta da concepção original do Código de Processo Penal (CPP), a prisão era automática após a condenação em primeira instância, independentemente da interposição de recurso – estar o réu preso era requisito para apelar. Promulgado em 1941, o CPP brasileiro tem clara inspiração autoritária, uma vez que tinha como base jurídica a Constituição Federal de 1937, outorgada no mesmo dia em que Getúlio Vargas implementava a ditadura do Estado Novo. 

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Foi só durante outra ditadura brasileira – a militar, que vigorou de 1964 a 1985 – que a situação começou a beneficiar os condenados. O texto original do artigo 408 do CPP previa, em relação aos crimes de competência do Tribunal do Júri (ou seja, os crimes dolosos contra a vida), que a pronúncia do acusado era caso de prisão automática. A pronúncia ocorre quando o juiz reconhece a existência material do crime, além dos indícios de autoria, e encaminha o réu para ser julgado perante um júri popular. 

No fim da década de 1960, contudo, o delegado Sérgio Fernando Paranhos Fleury, que atuava no Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), em São Paulo (SP), passou a ser investigado por associação ao tráfico de drogas e extermínios – à frente do grupo paramilitar que ficou conhecido como Esquadrão da Morte. Fleury teria metralhado um traficante rival de José Iglesias, conhecido como Juca, para quem o delegado prestaria uma espécie de serviço de proteção. Também foi Fleury quem coordenou a operação da qual saiu morto o guerrilheiro Carlos Marighella. 

O promotor responsável pelo caso era ninguém menos que Hélio Bicudo, conhecido, dentre outros feitos, por ter participado da fundação do Partido dos Trabalhadores (PT) e por ser um dos autores do pedido de abertura do processo que culminou no impeachment de Dilma Rousseff. Como membro do Ministério Público de São Paulo (MP-SP), destacou-se no combate à atuação do Esquadrão da Morte. 

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Em artigo publicado na revista Novos Estudos Jurídicos, o jurista Lenio Luiz Streck escreve que “apesar das inúmeras pressões e intimidações que o promotor Hélio Bicudo estava sofrendo, ele havia conseguido reunir evidências suficientes para o indiciamento do delegado” e, em 1973, Fleury teve sua prisão preventiva decretada. Numa manobra promovida pelo Congresso Nacional, porém, foi aprovada a Lei 5.941/1973, que popularmente ficou conhecida como “Lei Fleury”. 

A lei trouxe uma novidade ao CPP ao modificar o parágrafo segundo do artigo 408. Se fosse primário e tivesse bons antecedentes (caso de Fleury), o réu poderia aguardar o julgamento em liberdade, ainda que já houvesse condenação em primeira instância e estivesse pendente a apreciação de recursos ordinários no tribunal. De qualquer forma, Fleury, nesse processo, acabou absolvido por unanimidade pelo 2° Tribunal do Júri de São Paulo no ano seguinte. 

Importante salientar que vários outros condenados foram beneficiados pela decisão, e não apenas o delegado.

A prisão como exceção 

Em 2008 e 2011, o Congresso Nacional revogou as possibilidades de prisão automática antes previstas no Código de Processo Penal, inclusive a do artigo 408. Os parágrafos desse dispositivo trazidos pela “Lei Fleury” também foram revogados. Isso porque, em 2011, o artigo 283 do CPP foi modificado para concretizar uma interpretação do Supremo Tribunal Federal (STF) acerca da previsão trazida pela Constituição de 1988 de que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

Art. 283. Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva. (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011). 

Professor de Direito Penal da FGV-Rio, Thiago Bottino afirma que a essência desse artigo é de que “a regra é a liberdade, a prisão é a exceção”, uma vez que sempre deve ser demonstrada, em cada caso, a necessidade concreta de encarceramento. 

“O que o Congresso fez em 2011 foi, basicamente, reconhecer que se antes quem precisava argumentar de forma contrária à prisão era o réu, hoje se presume que a prisão não é necessária e quem deve argumentar de forma contrária é o Ministério Público”, opina. 

Em 2016, ao mudar o entendimento de que a execução da pena de prisão deveria esperar o julgamento de todos os recursos, ainda que de natureza constitucional (endereçados ao STJ e ao STF), os ministros do Supremo travaram um embate quanto ao artigo 283. Prevaleceu o entendimento de que, caso haja condenação confirmada em segundo grau, o início da execução criminal é coerente com a Constituição Federal.

Ainda que a discussão deva se estender por um bom tempo na corte, especialmente por causa do “fator Lula”, o que não se pode negar é que, para o bem ou para o mal, a possibilidade de se recorrer em liberdade foi inaugurada num regime de exceção, por mais contraditório que isso possa parecer.

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