Em vigor desde novembro de 2017, a reforma trabalhista (Lei 13.467/2017) completa um ano neste domingo (11) com mais avanços que retrocessos. A opinião é de especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo sobre o tema, e reflete a urgência que havia em se modernizar os aspectos que regem as relações de trabalho no país, praticamente estagnadas desde a criação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) pelo presidente Getúlio Vargas, em 1943. Em um país onde ainda persiste o costume de separar as leis entre as que “pegam” e as que “não pegam”, a reforma cada vez mais pousa-se confortável na segunda opção.
Um dos responsáveis pelo texto-base da nova lei é o juiz do trabalho Marlos Augusto Melek. Membro da comissão de redação da Reforma Trabalhista, Melek aponta que segurança jurídica, racionalização do sistema judicial e diferencial competitivo são os três pilares fundamentais para o sucesso da mudança.
No campo da segurança jurídica, o juiz afirma que vários questionamentos a respeito da reforma chegaram ao Supremo Tribunal Federal (STF). Até o momento, a Corte só proferiu decisão sobre o fim da contribuição sindical obrigatória, conhecida popularmente como “imposto sindical”, sendo que os ministros mantiveram a íntegra da lei reformada no ano passado.
“Não houve modulação de efeito, criação de percentual, mudança de data de aplicação, nada. O STF manteve na íntegra o texto da lei. Isso dá uma segurança jurídica muito grande para quem ainda tinha alguma dúvida sobre esses assuntos comece a aplicá-los”, destaca.
A pouca quantidade de questionamentos direcionados ao Supremo é sintoma do segundo pilar citado por Melek. Em um cenário em que miudezas em geral acabam sendo decididas por tribunais superiores, a reforma – segundo o juiz – trouxe mudanças nos trâmites de processos trabalhistas. Causas sem repercussão nacional nas áreas econômica, política, social ou jurídica dificilmente vão subir para o Tribunal Superior do Trabalho (TST), o Superior Tribunal de Justiça (STJ) ou mesmo para o Supremo.
Outra mudança sensível que traz mais racionalização ao sistema jurídico é a que acaba com a aleatoriedade dos valores das causas que vão a julgamento.
“Desde 1973 o Código de Processo Civil já dizia que a causa deve ter como valor a realidade econômica dos pedidos. E na Justiça do Trabalho nós tínhamos valores aleatórios. O cidadão trabalhava três meses numa empresa e colocava lá o valor da causa em R$ 36 mil, R$ 40 mil. Ninguém sabia exatamente de onde vinha essa quantia, e isso criava uma falsa expectativa no trabalhador. O advogado pediu R$ 40 mil, mas chega lá e faz acordo por R$ 3 mil”, explica Melek.
Por fim, as melhorias no chamado diferencial competitivo já podem ser notadas no balanço de setembro, o mais recente do Cadastro Nacional de Empregados e Desempregados (Caged) do Ministério do Trabalho. Com um saldo positivo de mais de 137 mil vagas de trabalho, o mês foi o melhor setembro desde 2013 e teve o melhor resultado de 2018 – sem contar com um período sazonal, como dia das Mães ou Natal. Já são, ao todo, nove meses seguidos de criação de empregos formais, de acordo com a série histórica.
Ciente de que os bons números não são resultado exclusivo da reforma trabalhista, Marlos Melek acredita que esse é um dos principais fatores para a tendência de crescimento dos novos postos de trabalho.
“A reforma tinha esse compromisso de geração de empregos, e a partir do momento em que as empresas, os contadores, os advogados vão tomando conhecimento dos benefícios que a lei gera, das facilidades que a lei cria, esses números começam a aparecer”, explica.
Não foram poucas as críticas feitas à reforma trabalhista durante todo o período de discussão até a aprovação do texto final no Congresso Nacional e posterior entrada em vigor, em novembro de 2017. Entidades como a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e Ministério Público do Trabalho (MPT), entre outras, chegaram a apresentar uma nota criticando o projeto, segundo elas “crivado de inconstitucionalidades” e representando um “grave retrocesso social”.
Entre os principais pontos de polêmica estava o princípio de que as decisões acordadas entre patrões e empregados têm prevalência sobre questões presentes em leis, o que afrontaria a Constituição Federal, segundo a nota.
Na opinião do advogado trabalhista e professor da Faculdade de Direito da FGV-SP Sólon Cunha, contudo, esse é um dos pontos mais importantes da reforma. A explicação: o negociado sobre o legislado resulta no empoderamento dos sindicatos. “Isso dá aos sindicatos um poder enorme de negociação. Isso leva a negociação coletiva de trabalho para a base. Ou seja, aquele modelo vigente nos últimos anos do sindicalismo de cúpula, decidido pelas centrais sindicais, deixa de existir e passa-se a ouvir mais a base do sindicalismo, que é efetivamente quem precisa e quem conhece o dia a dia dos trabalhadores”, avalia.
Mas se por um lado os sindicatos veem crescer seu poder de intermediários na negociação entre patrões e empregados, por outro precisam enfrentar a súbita quebra na geração de receitas trazida pelo fim da contribuição sindical obrigatória, o popular imposto sindical.
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Nas contas do juiz Marlos Melek, o total de recursos retirados compulsoriamente dos trabalhadores – sindicalizados ou não – todos os anos girava em torno de R$ 5,4 bilhões. Por isso o caráter de divisor de águas da medida, que pode fazer com que parte dos sindicatos do país, principalmente aqueles que só existem no papel e que têm como função principal receber fatias desse bolo generoso, venham a desaparecer ou se aglutinar a outras agremiações.
“Nesse período de transição, os sindicatos precisam aprender a ser criativos e fazer o que eles sabem fazer de melhor, que é negociar com o seu próprio cliente, o trabalhador, e mostrar a importância do sindicato. Uma saída para essa quebra de receitas pode ser a fusão de sindicatos afins ou similares. Sindicato dos calçados se junta ao sindicato do vestuário, cosméticos se junta à indústria química, uma aglutinação para fortalecimento e até economia de custos”, revela.
Para Cunha, é pouco provável que o formato de contribuição obrigatória seja retomado em curto prazo. Segundo ele, a medida já era desaprovada por trabalhadores antes mesmo da reforma, e segue impopular depois da entrada em vigor da nova legislação. A saída, para o advogado, passa obrigatoriamente pela filiação sindical, que tende a aumentar conforme as entidades forem mostrando mais engajamento com os trabalhadores.
“Existem sindicatos como o dos Bancários, o dos Metalúrgicos do ABC, onde o índice de filiação é muito alto. A explicação é que eles ‘prestam um serviço adequado’, têm um relacionamento muito próximo com as categorias, e com isso não sofrem tanto com essa queda de receita”.
O Brasil tem hoje mais de 17 mil sindicatos – desses, quase 11 mil são uniões de trabalhadores. O número assusta, e é um reflexo do bom negócio que era ter um sindicato no país, pelo menos até o fim da contribuição sindical obrigatória. O “mercado” de sindicatos era tão próspero, com 250 novas entidades surgindo a cada ano no país, que chamou a atenção do STF e da Procuradoria-Geral da República (PGR). A Operação Registro Espúrio investigou e a PGR denunciou ao Supremo 26 pessoas. Nas alegações, a formação de uma organização criminosa que trabalhava na concessão de falsos registros sindicais.
A ausência de participação do Estado na criação de sindicatos é um dos pontos da Convenção 87 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Porém, apesar de ter sido elaborada logo após o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1948, ainda não foi ratificada pelo governo brasileiro. O documento chegou a tramitar pela Câmara dos Deputados, mas, de acordo com o professor titular de Direito do Trabalho na USP Nelson Mannrich, está parado no Senado Federal desde a década de 1950. Para ele, ratificar essa convenção é o próximo passo necessário no caminho da modernização das relações entre patrões e empregados.
“É uma organização sindical que está comprometida com uma visão ultrapassada de um Direito do Trabalho corporativista, protecionista e intervencionista. Nós precisamos arejar essas relações de trabalho por meio da liberdade sindical. É o grande desafio que deve ser enfrentado agora. Na Europa, por exemplo, existe uma organização sindical forte onde as questões mais importantes são resolvidas com base na negociação, cabendo ao Estado ter uma legislação básica de garantia dos direitos fundamentais. O resto cabe à negociação coletiva. Ora, como é que eu vou confiar numa negociação coletiva se os sindicatos [do Brasil] não têm liberdade para se organizar?”, questiona Mannrich.
Para ele, a reforma trabalhista, apesar de alterar mais de 200 itens da CLT, ainda é superficial. Para por em prática essa liberdade sindical preconizada na convenção da OIT, por exemplo, seria necessário mexer no artigo 8º da Constituição Federal, que determina a unicidade sindical. Com mais entidades disponíveis, caberia ao trabalhador escolher aquela que melhor o representa.
“Na prática, a negociação coletiva acaba sendo uma reprodução da lei porque não há uma disputa entre sindicatos, para ver qual é o mais representativo, qual representa melhor os direitos do trabalhador. Por isso nós precisaríamos avançar da reforma trabalhista para uma reforma constitucional, na medida que a lei alterada pela reforma é infraconstitucional, uma lei que não podia mexer na constituição. A contribuição sindical está na CLT, e nisso foi possível mexer. Mas o artigo 8º da CF mantém a estrutura sindical da era Vargas, por isso a reforma trabalhista não pôde acabar com o sindicato único”, analisa Mannrich.
Apesar dos inegáveis avanços, a nova legislação trabalhista também trouxe pontos negativos para patrões e empregados. Um desses reveses é o Termo de Quitação Trabalhista Anual. Pela nova lei, ao fim do ano, empregador e empregado vão até o sindicato onde é lavrado um documento onde o trabalhador confirma que não há nada mais a receber além daquilo já pago pelo patrão no período. O objetivo é dar mais segurança aos empregadores e reduzir o índice de reclamações trabalhistas, já que uma vez assinado o termo o empregado não poderia mais reclamar sobre eventuais perdas na Justiça do Trabalho.
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Tomada como um “sonho de consumo” dos empregadores pelo juiz Marlos Melek, a medida pode a longo prazo se tornar um tiro no pé.
“A Constituição Federal diz que nenhuma lesão ou ameaça de lesão aos direitos será excluída da apreciação do Poder Judiciário. Então não adianta vir com um documento assinado pelo trabalhador no sindicato, até mesmo se for junto com o papa, dizendo que o empregado não tem direito. Se ele quiser levar o caso ao judiciário, a Constituição permite que ele vá. Isso foi uma teimosia do parlamento colocada no texto. Esse documento não tem valor jurídico algum”, reforça.
Apesar de aprovada pelo Congresso, a nova lei trabalhista ainda deixou pontos importantes em aberto. Na ânsia de corrigir eventuais defeitos e também de aplacar a ira de quem se sentiu atingido pelo novo texto, congressistas de oposição se apressaram em apresentar um texto que promovia uma minirreforma da Reforma Trabalhista. Com mais de mil emendas ao texto original, a Medida Provisória 808/2017 acabou por caducar – não foi aprovada em tempo hábil – e com isso criou uma espécie de zona cinzenta em alguns dos pontos da reforma trabalhista.
Questões como o trabalho intermitente e a jornada de 12 horas de trabalho por 36 de descanso, mais conhecida como “12 por 36” haviam sido regulamentadas pela MP. Mas após o fim do prazo de validade da medida, elas voltaram à zona cinzenta. Algo que, de acordo com os especialistas ouvidos pela reportagem, vai se resolver com o tempo.
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“Eu acho que esses ajustes precisam ser feitos por negociação sindical, em função do negociado sobre o legislado. Não há nada ali que não possa ser negociado dessa forma”, defende Sólon Cunha.
A opinião é a mesma do juiz Marlos Melek: “o fenômeno trabalho é muito rico, e com o avanço da tecnologia o trabalho está adquirindo novas facetas a cada dia. E a lei não teve a pretensão de abarcar tudo isso. A sociedade vai avançando, se desenvolvendo, e a lei tem que estar sempre junto. E uma evolução é sempre necessária. Quaisquer pontos que possam ter ficado nebulosos tendem a se adequar. O próprio mercado se auto regula, ou a jurisprudência, através do Estado e do Poder Judiciário, vai regular. Há instrumentos para isso. Vai depender, na prática, da necessidade de cada ponto”.