De toalha e sabonete nas mãos, quatro detentos se posicionam na entrada da cela onde estão. Por um autofalante, escutam a instrução: estão autorizados para o banho. As portas se abrem e eles caminham até o banheiro. A ducha é cronometrada: cinco minutos, nem um segundo a mais. Em todo o procedimento, não há contato com agentes, tudo é operado remotamente, com a ajuda de câmeras. Minutos depois, o quarteto está de volta à cela, vestidos com seus uniformes avermelhados. Em seguida, procedimento idêntico é iniciado na cela ao lado.
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A cena remete ao imaginário construído pelos filmes americanos sobre as prisões do país, mas descreve o cotidiano do primeiro complexo presidiário no Brasil construído por meio de uma parceria público-privada, a chamada PPP.
O complexo funciona há cinco anos em Ribeirão das Neves, cidade da região metropolitana de Belo Horizonte, e hoje possui três unidades, cada uma com 672 vagas, ocupadas exatamente por 672 presos. Outras duas unidades deverão ser construídas até o fim de 2018. Por contrato, não há superlotação – não pode haver sequer um preso acima do limite de vagas.
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São ao menos 2 mil detentos que vivem uma realidade bastante diferente dos outros mais de 600 mil presos no país, de acordo com um levantamento do Ministério da Justiça, que fazem do Brasil o quarto país do mundo com maior população carcerária, atrás de Estados Unidos, China e Rússia.
Em relação à estrutura do complexo, as opiniões são unânimes: não há comparação com os presídios tradicionais. As instalações são novas, o ambiente limpo e organizado. Nos corredores, há salas de aula, oficinas de trabalho e consultórios médicos, odontológicos e de psicólogos. Porém, para se criar esse ambiente, há uma rigidez disciplinar espartana que desagrada a muitos: o fumo é totalmente proibido em todas as dependências, não é permitido qualquer envio de alimentos, bebidas ou produtos de higiene pessoal por parte das famílias, tampouco se permitem objetos pessoais como televisão (há televisões em áreas comuns, passando somente programação educativa).
“É a pior prisão que já conheci”, diz José Roberto Pimentel, que tem um filho na PPP e outro no presídio de segurança máxima Nelson Hungria, em Contagem, outro município da região metropolitana da capital mineira.
Por conta dos dois filhos, há treze anos Pimentel os acompanha em diversas unidades do estado e reclama do excesso de rigidez, como a restrição ao fumo e da proibição do fato de os familiares não poderem levar alimentos ou objetos para melhorar o conforto dos presos. “Quem é viciado no cigarro não consegue simplesmente parar, principalmente alguns que são emocionalmente mais frágeis. Já houve até tentativa de suicídio”, conta.
Maria Geralda de Andrade, que também tem um filho interno na PPP, acha que o filho vem melhorando, inclusive de comportamento, por estar em um presídio com melhor estrutura. “Não tenho do que reclamar da PPP”, diz. Em relação às visitas, que são permitidas a cada quinze dias, Geralda não vê diferença: “as visitas são iguais em qualquer lugar, a revista é ginecológica, mas pelo menos as agentes te tratam com mais respeito”. Ela espera que, quando o filho saia da cadeia, a princípio no fim do ano que vem, ele possa voltar a ter uma vida honesta e retome o relacionamento com a esposa para cuidar de um menino que têm juntos.
Opiniões divididas
O defensor público Gabriel Morgado, que atua especificamente na defesa jurídica penal em Ribeirão das Neves, conta que, principalmente no início, muitos presos pediam para ser transferidos para a PPP, mas agora há também muitos que pedem o contrário, para voltar para os presídios públicos, justamente por ter algumas regras menos rígidas, por passarem mais tempo com os demais detentos e ter maior comunicação. Nos presídios administrados diretamente pelo estado, a segurança é mais frágil e os presos acabam tendo acesso mais fácil à televisão, jornais e mesmo a celulares.
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Para o promotor de Justiça Henrique Nogueira Macedo, que há seis anos atua na vara de execução penal de Ribeirão das Neves, o modelo mais rígido da PPP é preferido por aqueles que não querem tanto contato com outros detentos e estão mais interessados em estudar e em trabalhar.
Cerca de 30% dos internos da PPP estudam no ensino regular, mas segundo a empresa administradora, todos os detentos têm pelo menos alguma atividade de cunho educacional, como oficinas. “Temos até 32 internos que fazem curso superior à distância”, conta Rodrigo Gaiga, presidente da GPA - Gestores Prisionais Associados, consórcio que administra a PPP.Em 2017, 350 internos fizeram o Enem, buscando também conseguir uma vaga no ensino superior à distância.
Além do estudo, os presos trabalham em atividades como a manufatura de acessórios automotivos. A tarefa de estabelecer parcerias com empresas que queiram contratar a mão de obra dos detentos é do consórcio. Segundo Gaiga, o momento de crise tem dificultado o estabelecimento de parcerias, mas ele vê perspectiva de melhora em breve.
A oferta de trabalho para todos os presos que estejam aptos e interessados é um dos mais de 300 itens de qualidade que compõem o contrato de parceria entre o poder público a empresa administradora. Cerca de um terço da remuneração que a empresa recebe do estado está condicionado ao cumprimento dos itens de qualidade.
Quem faz essa medição não é diretamente o estado, mas uma terceira empresa, especializada em auditoria externa. Uma fuga, por exemplo, significa prejuízo para a empresa. Foi o que ocorreu em novembro de 2013, quando o detento Fábio Alves conseguiu fugir da penitenciária. Ele cumpria pena por roubo e trabalhava no galpão de produção de macacões. Um dia, conseguiu se esconder em uma trouxa onde estavam os uniformes confeccionados e foi levado para fora da unidade pelo caminhão de transporte – até hoje ele não foi recapturado. Essa fuga significou uma multa para a empresa no valor de R$ 900 mil à época.
Para o promotor Henrique Macedo, o desenho jurídico com atribuições bem definidas é em parte responsável pelos aspectos positivos da PPP, que vem obtendo resultados melhores do que os dos presídios que simplesmente terceirizaram a administração. Ele explica que o modelo permitiu que o estado delegasse a tarefa de construção e de administração da unidade, mas manteve o seu papel precípuo de poder de polícia e também de definir e aplicar penas administrativas aos detentos, sejam por infrações graves, médias ou mesmo leves cometidas dentro da unidade. Há um diretor administrativo da prisão, funcionário da empresa, e há um diretor geral, funcionário do estado. O poder público permanece também como responsável pela segurança externa do complexo e por realizar as transferências de presos.
Para verificar a qualidade, a empresa de auditoria realiza inspeções em celas escolhidas por sorteio, bem como avalia os serviços de atendimento em saúde, educação e trabalho. Se atendidos todos os itens de qualidade , o consórcio recebe um valor de cerca de R$ 3,5 mil mensais por vaga. Metade desse valor cobre os custos operacionais e a outra metade se refere ao pagamento pela construção do presídio, que foi integralmente custeado pelo consórcio. De acordo com a empresa, já foram investidos R$ 330 milhões na construção das três unidades e a previsão do custo final total do complexo com cinco unidades é de R$ 480 milhões.
O contrato tem duração de 27 anos (dois anos para a construção e 25 para operação) e pode ser prorrogado por mais oito anos. Ao fim do contrato, o complexo com cinco presídios passará a ser patrimônio do estado de Minas Gerais. Nas unidades administradas diretamente pela Secretaria de Administração Prisional, o custo médio mensal de cada preso, segundo a própria Secretaria, é de aproximadamente R$ 2,7 mil, incluindo valores relacionados à manutenção (comida, estudo, trabalho, itens de higiene, água, salários dos agentes penitenciários) e também ao custo de construção da unidade.
Comparar é possível?
Tanto o promotor Henrique Macedo quanto o defensor público Gabriel Morgado consideram que uma simples comparação entre o sistema privado e o público é injusta, por dois motivos.
Primeiramente porque na PPP há uma seleção do perfil dos presos. Pelo contrato, não podem ser enviados para lá presos temporários, nem condenados por estupro e nem pertencentes a facções criminosas. Além disso, o contrato veda a superlotação. Assim, a PPP trabalha com o número de presos exato ao número de vagas, o que torna a operação mais fácil em comparação com os presídios públicos, que usualmente abrigam pelo menos duas ou três vezes mais presos do que o número de vagas.
Em Ribeirão das Neves há outros três grandes presídios públicos: a Penitenciária José Maria Alkimin, com ao menos 2 mil presos onde deveriam estar mil; o Presídio Inspetor José Martinho Drumond, com 820 vagas mas abrigando mais de 2 mil presos; e o Presídio Antônio Dutra Ladeira, com mil vagas e pelo menos 2 mil presos.
Na avaliação de Cirlene Ferreira, presidente do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos de Minas Gerais, mais importante do que o regime administrativo ser público ou privado, o fundamental é que haja um respeito às garantias previstas na lei de execução penal. Ela considera que o modelo de PPP pode funcionar, mas desde que sejam atendidas as condições estabelecidas na lei penal, como a possibilidade de estudo e trabalho a todos os detentos. O problema é que, segundo ela, isso não vem sendo cumprido integralmente, seja nos presídios de administração pública ou privada.
Para o defensor Gabriel Morgado, há também um aspecto moral a ser considerado na discussão do tema, que é o fato de empresas privadas lucrarem com a privação de liberdade de cidadãos.
Essa visão é compartilhada por Laurindo Minhoto, professor do departamento de sociologia da Universidade de São Paulo, autor do livro “Privatização de Presídios e Criminalidade”. Para o professor, o enraizamento de interesses econômicos na gestão do sistema prisional se mostra incompatível com os objetivos de política penitenciária fixados na legislação, chancelando a precariedade de serviços, instalações e força de trabalho em nome do imperativo do corte de custos. “Como em todos os mercados em que vigora a máxima exuberância irracional, o retorno financeiro das companhias é tanto maior quanto menor o valor da vida humana”, diz Minhoto.
Na análise de Gabriel Morgado, se houver uma tendência de tornar o modelo de administração privada hegemônico, como ocorre nos Estados Unidos, haverá certo incentivo para a ocorrência de lobby por parte das empresas junto ao Legislativo e ao Judiciário para a manutenção de leis que estimulem o encarceramento em massa.
Já na avaliação do promotor Henrique Nogueira Macedo, essa seria uma hipótese distante da realidade, uma vez que não há qualquer perspectiva de haver falta de demanda por presos no Brasil – o que o ocorre é justamente o contrário, há falta de oferta de vagas, com um déficit calculado em cerca de 250 mil vagas, segundo um balanço do Ministério da Justiça.
De acordo com Rodrigo Gaiga, presidente do consórcio GPA, como a remuneração à empresa é feita por vaga ofertada, isso independe do número de condenações. “Nossa preocupação é com a qualidade do serviço ofertado e com o objetivo final que é a ressocialização do preso”, diz.
Independentemente do regime administrativo, para Morgado, o mais importante é uma discussão aprofundada sobre a legislação penal, principalmente no que se refere ao uso e tráfico de drogas, a fim de se reverter a tendência de encarceramento que ocorre no país. “Caso contrário, não adianta construirmos infinitos presídios, que a situação carcerária continuará sendo um problema”, diz.
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