O Supremo Tribunal Federal (STF) está discutindo os aspectos técnicos e jurídicos da coleta de DNA para uso em investigações policiais. A corte sedia, nesta quinta-feira (25) e na sexta-feira (26), audiências públicas sobre o tema, convocadas pelo ministro Gilmar Mendes, relator do Recurso Extraordinário (RE) 973.837. A ação, que discute a possibilidade de coleta de DNA de condenados por crimes dolosos praticados com violência ou hediondos, levanta fortes controvérsias sobre os direitos dos indivíduos contra o poder estatal.
O caso debatido pelo STF envolve um indivíduo que questiona justamente a aplicação do § 1o do artigo 9º-A da Lei de Execução Penal (LEP), introduzido pela Lei 12.654/2012, que passou a obrigar a coleta de material genético de condenados, por crimes violentos ou hediondos, para a composição de um banco de dados. Para a Defensoria Pública, a previsão do artigo ofende o inciso II do artigo 5º da Constituição, que garante o direito de não produzir provas contra si mesmo.
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O Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJ-MG) não aceitou o argumento, considerando que a previsão legal “não viola o princípio da não autoincriminação, vez que decorre de condenação criminal transitada em julgado”. A Defensoria recorreu ao STF, que reconheceu a repercussão geral do caso de acordo com a “a alegação de violação a direitos da personalidade e da prerrogativa de não se autoincriminar”.
A Procuradoria-Geral da República (PGR) manifestou-se contrariamente ao pleito do autor da ação, considerando, a partir de informações prestadas pelo Instituto Nacional de Criminalística, que “a colheita de material genético para a formação de banco de dados constitui método seguro e eficiente de identificação criminal, que não afronta direitos constitucionalmente assegurados ao acusado”.
O parecer assinado pela subprocuradora-geral da República, Cláudia Sampaio Marques, afirma que “ao contrário do que afirma o recorrente, ao permitir a coleta do material genético que irá integrar a base do banco de dados, o acusado não está produzindo prova contra si mesmo, inclusive porque o material somente é colhido após a condenação”.
Art. 9o-A. Os condenados por crime praticado, dolosamente, com violência de natureza grave contra pessoa, ou por qualquer dos crimes previstos no art. 1o da Lei no 8.072, de 25 de julho de 1990, serão submetidos, obrigatoriamente, à identificação do perfil genético, mediante extração de DNA (...) por técnica adequada e indolor.
§ 1o A identificação do perfil genético será armazenada em banco de dados sigiloso, conforme regulamento a ser expedido pelo Poder Executivo.
§ 2o A autoridade policial, federal ou estadual, poderá requerer ao juiz competente, no caso de inquérito instaurado, o acesso ao banco de dados de identificação de perfil genético.
O cerne do argumento da PGR é que a identificação por DNA é apenas um método mais desenvolvido e preciso de identificação criminal, o que já se pratica no Brasil, como o registro das impressões digitais. “Assim como ocorre com o sistema datiloscópico, no sistema de identificação pelo DNA a pessoa tem que permitir ao Estado a obtenção do material que vai ser armazenado e que irá identificá-la criminalmente”, afirma o parecer assinado pela Subprocuradora-Geral da República, Cláudia Sampaio Marques.
Ingressaram como amici curiae no processo a União, a Academia Brasileira de Ciências Forenses (ABCF), o Instituto de Tecnologia e Sociedade Rio (ITS Rio), em parceria com a Clínica de Direitos Humanos da Universidade Federal do Paraná (CDH-UFPR), O Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) e a Associação Nacional dos Defensores Públicos (ANADEP).
O Justiça & Direito tentou contato com a ABCF e com membros do Ministério Público, mas não obteve retorno até o fechamento desta reportagem.
Análise
Celina Bottino, diretora de projetos do ITS Rio, questiona a inovação legal introduzida em 2012. “A lei foi alterada para criar esse banco de dados, mas sem nenhuma salvaguarda da proteção à privacidade e intimidade dessas pessoas”, diz. De acordo com Celina, desde 2012 a coleta do material genético é feita por laboratórios públicos e os dados, armazenados em bancos públicos estaduais, embora o pais não tenha uma legislação geral de proteção de dados, nem procedimentos claros de armazenamento e descarte de material genético.
“Da maneira como a legislação existe hoje no Brasil, não há garantia de como o as pessoas vão tratar esse material, não há garantia de segurança. Cada laboratório acaba tendo sua forma de fazer”, afirma Celina. “O DNA carrega informações que nem a pessoa sabe: propensão a desenvolver determinadas doenças, as características das pessoas. Imagine essas informações nas mãos de planos de saúde ou eventuais empregadores, por exemplo”, diz ainda. A diretora do ITS Rio ressalta também que não existe, no país, nenhuma previsão de punições para quem não seguir a lei quando trata de material genético.
A alteração legislativa de 2012 previu uma norma regulamentadora, que foi editada como Decreto 7950/2013, mas Celina ressalva que este decreto tampouco trouxe as garantias necessárias para um tema tão sensível. “O decreto é muito genérico”, afirma.
O memorial que o IBCCrim apresentará como amicus curiae ainda está sendo preparado. “Nosso foco será discutir uma forma de operacionalizar isso sem conflitar com direitos fundamentais. Se você tem uma estrutura criminalística pobre, o uso de mecanismos avançados pode ser uma temeridade. Falsificar ou contaminar provas com base em DNA é uma coisa extremamente fácil de fazer”, afirma Maurício Stegemann Dieter, professor de Direito Penal da USP e coordenador do departamento de amicus curiae do IBCCrim.
O professor sustenta que o sistema criminal brasileiro não tem condições de operacionalizar a aplicação do dispositivo legal de uma forma que seja compatível com as garantias individuais do processo. “Não adianta dizer que a técnica é avançada, porque ela precisa de um padrão de aplicação muito elevado e rigoroso. Não adianta vir mostrar o sucesso nos Estados Unidos, quando nossa realidade é a brasileira”, diz Dieter.
O § 1º do artigo 9º-A da Lei de Execução Penal prevê que a edição de um regulamento pelo Poder Executivo para regrar esse banco de dados, mas ainda não houve expedição. “A ideia é que o STF diga que, até se alcançar determinado padrão de cientificidade na operação da coleta e do uso desse material, isso não pode se aplicar. Ou se modulam os efeitos dessa lei, ou se exige um padrão antes da possibilidade de aplicação”, afirma o coordenador do IBCCrim. “Me assusta muito, em um país no qual o padrão probatório é muito baixo, em que 74% das condenações por drogas são baseadas exclusivamente nas palavras dos policiais, você dar mais um instrumento de condenação para o Estado”, resume.
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