Após três meses, o Supremo Tribunal Federal (STF) retomou o julgamento das ações que pedem o reconhecimento da omissão do Poder Legislativo em editar legislação criminal protegendo a população LGBT e a criminalização da homofobia. Na sessão desta quinta-feira (23), com os votos dos ministros Rosa Weber e Luiz Fux, o tribunal já formou maioria nesse sentido, mas o presidente Dias Toffoli suspendeu o julgamento, que deve ser retomado no próximo dia 5 de junho.
A maioria do tribunal adotou a posição de que as condutas discriminatórias contra homossexuais e transexuais passem a ser enquadradas na Lei 7.716/1989, que atualmente pune “os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. Os ministros entenderam que esse tipo de discriminação é compatível com o conceito de racismo que o tribunal estabeleceu em 2003.
Em fevereiro, já haviam votado nesse sentido os ministros Celso de Mello, relator da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26, Edson Fachin, relator do Mandado de Injunção (MI) 4.733, Alexandre de Mores e Roberto Barroso. As ações foram propostas pelo PPS e de e pela Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT). O pedido de responsabilização civil do Estado e subsidiária dos parlamentares pela omissão foi rejeitado pela maioria.
Esta foi a quinta sessão que o tribunal dedicou ao tema, cuja discussão começou em fevereiro. O ministro Fux fez a defesa mais enfática do tema na sessão desta quinta-feira (23). “A jurisdição constitucional se impõe quando se trata de defesa das minorias contra as violências da maioria”, afirmou Fux. O ministro também tentou rebater a acusação de que o STF estaria violando princípio da reserva legal – segundo o qual apenas o Legislativo pode criminalizar condutas. “O Judiciário não está criando uma figura, o Judiciário está interpretando a legislação infraconstitucional à luz da Constituição Federal”, disse Fux.
Retomada do julgamento se transformou em ato de independência judicial
Em resposta a uma notificação do Senado Federal endereçada ao tribunal, os ministros do STF aproveitaram para reagir aos pedidos de impeachment contra membros da corte. Celso de Mello, Edson Fachin, Roberto Barroso e Alexandre de Moraes foram alvo de um pedido de impeachment coletivo em fevereiro, por terem votado a favor da criminalização da homofobia. O presidente do tribunal, Dias Toffoli, chegou a dizer que estava inclinado a sugerir a retirada de pauta das ações, mas mudou de ideia quando foi lembrado do fato por Celso de Mello.
Mello lembrou que os quatro ministros foram denunciados por “suposto” crime de responsabilidade. “Falta de decoro não tem aplicação ao caso”, afirmou. “Na independência dos juízes reside a independência da magistratura, e sem juízes independentes não há cidadãos livres [...] A intolerância foi ‘processualizada’ perante o Senado Federal por essa absurda denúncia, simplesmente por quatro juízes exercerem seu dever jurisdicional”, disse ainda.
O ministro Fux também foi duro na resposta. “É um ato atentatório à dignidade da jurisdição. Se, por esse motivo [criminalizar a homofobia], a corte tiver que sofrer algum tipo de retaliação, que soframos todos nós”, disse o ministro. “Se esse requerimento não tivesse sido precedido desse episódio, eu confesso que ponderaria que nós deveríamos ponderar um critério de prudência política [...] Não se trata de retaliação, trata-se de postura judicial: ou o Judiciário é independente, ou o Judiciário é subserviente”, completou.
A retomada do julgamento começou com a apreciação de uma notificação dos advogados do Senado sobre a aprovação dos projetos de lei 672/2019 e 191/2017 pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, nesta quarta-feira (22). O primeiro projeto inclui a discriminação de sexo, orientação sexual e identidade de gênero na lei contra o racismo. O segundo inclui na Lei Maria da Penha a identidade de gênero para proteger pessoas transgênero que se identifiquem com o sexo feminino.
Os projetos serão votados em turno suplementar na CCJ e, se não houver recurso, seguirão direto para a Câmara, sem passar pelo plenário do Senado. O pedido de notificação foi feito pela presidente da CCJ, Simone Tebet (MDB-MT) ao presidente da casa, Davi Alcolumbre (DEM-AP), e Celso de Mello sugeriu votar se o tribunal deveria tirar de pauta as ações. A decisão da maioria, contudo, foi manter o julgamento. Somente Marco Aurélio Melo e Dias Toffoli votaram por suspendê-lo.
Como a Gazeta do Povo registrou, membros da Frente Parlamentar Evangélica (FPE) avaliam que o projeto não tem chances de ser aprovado na Câmara com a atual redação do Senado e preparam um texto de consenso. Os parlamentares tiveram reunião com o presidente do Supremo na tarde de ontem (23). Na véspera do início do julgamento, em 12 de fevereiro, a FPE pediu que o tema fosse retirado de pauta, mas Toffoli negou.
“A mera existência de proposição legislativa em tramitação no Congresso Nacional não tem o condão de afastar, só por si, a configuração, na espécie, de inércia por parte do Poder Legislativo”, opinou Mello. O ministro lembrou que, no passado, o STF chegou a entender que a existência de processo legislativo sobre um tema afastaria a acusação de atraso do Poder Legislativo, mas o tribunal mudou sua posição em 2007, seguindo a orientação do ministro Gilmar Mendes.
“Conquanto não se desconheça a complexidade de determinados projetos legislativos, as peculiaridades e dificuldades da atividade parlamentar não justificam a inércia demasiadamente longa diante de imposição ditadas pelo texto constitucional”, afirmou Mello, citando um precedente do tribunal. O ministro argumentou ainda que não há garantia de que os projetos de lei aprovados pela CCJ sejam de fato aprovados pelo Senado, uma vez que recurso pode ser apresentado por ao menos nove senadores para que os projetos sejam remetidos ao plenário.
Nesta quinta-feira (23), o presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara , Helder Salomão (PT-ES), e os deputados Erika Kokay (PT-DF), David Miranda (PSOL-RJ), Carlos Veras (PT-PE), Tulio Gadelha (PDT-PE) e Camilo Capiberibe (PSB-AP) reuniram-se com o presidente Dias Toffoli para pedir que o tribunal concluísse o julgamento.
Como foi a discussão em fevereiro
O STF começou a julgar a ADO 26 em 13 de fevereiro. O relator da ação, ministro Celso de Mello, levou duas seções inteiras apenas para ler o relatório de seu voto. Na terceira sessão, em 20 de fevereiro, Mello reconheceu a omissão do Poder Legislativo em criar legislação que proteja a população LGBT e votou pela equiparação da homofobia e da transfobia ao conceito jurídico de racismo, suprindo essa lacuna.
O relator argumentou que os incisos XLII (“a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”) e XLI (“a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”) do artigo 5º da Constituição são “mandados expressos de criminalização, tendo em vista os bens e valores envolvidos”.
Diante da omissão do Congresso em editar legislação criminal, o ministro defendeu que o STF teria duas opções: ou a "certificação do Congresso Nacional para que adote as medidas necessárias para efetivação da norma constitucional” ou o “reconhecimento de que homofobia e transfobia, quaisquer que sejam as formas pelas quais se manifestam, enquadram-se, mediante interpretação conforme da Constituição, na noção de racismo”.
Citando precedentes de outros casos mais recentes, em que o STF adotou uma postura mais ativista, Mello chamou a demora do Congresso de “irrazoável” e “abusiva” e propôs que, enquanto o Legislativo não adotar uma legislação específica, a discriminação por “orientação sexual” e “identidade de gênero” seja considerada racismo para fins de aplicação da Lei 7.716/1989, que atualmente prevê uma série de crimes de “discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”.
O ministro propôs interpretar a Lei 7.716/1989 conforme a Constituição e ao conceito de racismo estabelecido pelo STF em 2003, no julgamento do caso Ellwanger (HC 82.424), que considerou o antissemitismo (preconceito contra judeus) uma forma de racismo para fins da aplicação legal.
No dia 21 de fevereiro, Edson Fachin, relator do Mandado de Injunção (MI) 4.733, seguiu a mesma posição, lembrando que, sem legislação específica, “a omissão legislativa estaria a indicar que o sofrimento e a violência dirigida a uma pessoa homossexual ou transexual é tolerada, como se fosse uma pessoa não digna de viver em igualdade com as demais”. Alexandre de Moraes e Roberto Barroso acompanharam a posição de ambos os relatores”.
Fachin citou ainda a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4275, em que o STF decidiu, em março do ano passado, que as pessoas transgênero têm direito a mudança de nome no registro civil sem a necessidade de laudo médico ou decisão judicial. Segundo o ministro, essa decisão estabeleceu na jurisprudência do tribunal que “o direito à igualdade sem discriminações abrange a identidade ou expressão de gênero”.
Os ministros Alexandre de Moraes e Roberto Barroso encerraram o quarto dia de julgamento, acompanhando Mello e Fachin. “[Por meio de lei penal], o legislador procedeu em relação à criança e ao adolescente, idosos, pessoas com deficiência, [...] aos consumidores [...] e, mesmo sem uma referência expressa [na Constituição], às mulheres. Não houve, por parte do Congresso, em momento algum, nenhuma dúvida de que a proteção dada a esses grupos vulneráveis dependia de lei penal. O único grupo que, nesses 30 anos, ficou excluído foi o grupo relacionado a orientação sexual e identidade de gênero”, disse Moraes.
“A criação primária das leis – ninguém discute – é papel do Congresso Nacional [...] Já a interpretação constitucional é um exercício típico do Supremo”, disse Barroso, defendendo o tribunal da acusação de estar usurpando a competência do Legislativo no tema. “Às vezes o processo político majoritário emperra, mas existe uma demanda premente das sociedades, e as Supremas Cortes acabam sendo chamadas para satisfazer essas demandas”, afirmou ainda.
“No normal das circunstâncias, eu fixaria um prazo para o Congresso atuasse, prevendo uma consequência jurídica na hipótese de a omissão persistir, porém, aqui é um caso típico em que o processo majoritário não dá conta de fazer valer o comando constitucional”, emendou o ministro.
Dados que sustentam narrativa da homofobia são controversos
A principal fonte de estatísticas sobre a violência contra a população LGBT, citada inclusive pelos ministros do STF em seus votos, é o levantamento anual do Grupo Gay da Bahia (GGB), produzido há 39 anos e que este ano foi colocado em dúvida por uma revisão de pesquisadores independentes.
Em entrevista à Gazeta do Povo em março, o antropólogo Luiz Mott, fundador do GGB, reconheceu o problema, mas creditou-o à falta de dados oficiais – atualmente, o governo não organiza nenhum levantamento oficial. O que mais se aproxima os números do Disque 100, que recebe denúncias de violações de Direitos Humanos.
“Nós somos os primeiros a reconhecer que nosso levantamento é incompleto, porque não é feito por órgãos oficiais, que deveriam ter acesso aos relatórios anuais das delegacias de polícia, dos fóruns dos estados, dos fóruns municipais, das secretarias de segurança pública e de direitos humanos”, afirmou Mott. “É claro que há dados contraditórios, às vezes equivocados, mas não chegam a 5%”, disse ainda.
O problema é que a revisão independente encontrou equívocos bem maiores que os 5%. O grupo de pesquisadores checou cada um dos 347 casos contabilizados como morte homofóbica no levantamento de 2016, usando a mesma metodologia do GGB: o recurso a notícias de jornal e internet. A conclusão do grupo é que em 49,2% dos casos a informação é inconclusiva, em 38,8% não houve motivação homofóbica nas mortes, o que só foi observado em 12% dos casos.
Em entrevista à Gazeta do Povo, o biólogo Eli Vieira, homossexual que já questionou o pastor Silas Malafaia por ter afirmado que boa parte dos homossexuais tinha histórico de abusos na infância, explicou que há várias inconsistências metodológicas no levantamento.
“Apesar do relatório se referir ao Brasil, estão incluídos seis casos de mortes no exterior. Há alguns casos duplicados. Em alguns casos descobrimos uma leitura incompleta do relato jornalístico: por exemplo, um casal heterossexual supostamente viciado em drogas foi assassinado por um traficante no Ceará. Aparentemente, o caso foi incluído pelo GGB somente porque a manchete omitiu o sexo da mulher, dando a entender erroneamente que poderia ser um casal gay”, disse.
Os organizadores do levantamento defendem que a inclusão de certas mortes, como suicídio, se justifica porque a homofobia no Brasil é “estrutural” – raciocínio também aceito pelos ministros. A revisão, contudo, contesta esse raciocínio circular: “Casos incertos foram incluídos nos dados porque a homofobia é estrutural. A homofobia é estrutural porque esses dados mostram