A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que equiparou os regimes de sucessão patrimonial do casamento e da união estável tem gerado preocupação entre os estudiosos do direito de família. Entre as muitas dúvidas geradas pela decisão, está a de saber se resta alguma diferença entre casar de “papel passado” e simplesmente juntar as escovas de dentes, ato também conhecido como união estável.
Por 7 votos a 3, o STF declarou a inconstitucionalidade do artigo 1790 do Código Civil, que previa as regras para a partilha de herança na união estável: “A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável”.
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Desde o dia 10 de maio, passou a valer o artigo 1829 para todo mundo: os efeitos sucessórios típicos do casamento aplicam-se também às uniões estáveis. Ou seja, o companheiro passa a ser herdeiro legítimo de todo o patrimônio do parceiro falecido. Para os estudiosos ouvidos pela reportagem, o STF praticamente varreu as diferenças que a lei estipula entre a união estável e o casamento. Na prática, restam poucas distinções entre os institutos.
Regina Beatriz Tavares, advogada e presidente da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS), critica a extrapolação das competências do STF na decisão. Para a advogada, o STF errou ao decidir, a partir de dois casos concretos, pela total inconstitucionalidade do artigo 1.790, abrindo a possibilidade de companheiros concorrerem na herança até com pais e filhos do falecido. “Uma relação afetiva no plano dos fatos que tenha apenas dois anos já vai gerar os mesmos efeitos sucessórios do casamento”, explica. “Em todos os países que examinei não há essa equiparação dos direitos”, completa.
“Não é que os companheiros estivessem totalmente desamparados no Brasil. Eles já tinham direitos. Além de o companheiro ter direito de habitação sobre o imóvel que foi a última residência do casal, ele fazia jus à herança sobre os bens adquiridos durante a união estável pelo artigo 1790”, explica a advogada.
“Quem não queria casar, está casado de fato. E quem queria, vai casar por quê?”, Regina Beatriz Tavares, presidente da Associação de Direito de Família e das Sucessões.
“A diferença entre casamento e união estável passou a ser meramente formal”, afirma Andre Gonçalves Fernandes, juiz de direito e diretor estadual da ADFAS. Juridicamente, Fernandes destaca as diferentes exigências para a constituição de uma ou outra situação. “O casamento exige um ato formal, um registro civil que segue todo um procedimento legal. A união estável não tem essa formalidade, ela exige apenas uma convivência pública duradoura, estabelecida com o objetivo de constituição de família”, diz.
Regina Beatriz, com base na sua experiência em direito de família, prevê que as pessoas informadas sobre as consequências da decisão terão receio de manter relações de namoro e de união estável. “Será que uma mulher que tenha um filho não vai pensar na possibilidade de vir a falecer e seu companheiro pedir metade da herança? Será que namorados não vão pensar duas vezes antes de estreitar a relação?”, questiona. “A decisão vai prejudicar o afeto e o bem-estar das pessoas”, prevê.
O Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) participou do julgamento no STF como amicus curiae e defendeu a posição vencedora na corte. No entanto, o advogado Rodrigo da Cunha Pereira, presidente da entidade, considera a decisão do tribunal “paradoxal”. “À medida que vai se equiparando casamento e união estável, você vai acabando com a união estável, porque sua essência é a liberdade. A decisão do STF acabou com a liberdade de casar: querendo ou não, a decisão acabou obrigando todos a casar”, diz.
Pereira ressalta que a decisão do IBDFAM de patrocinar a causa foi tomada por maioria. “A posição da maioria era que se deveria equiparar a união estável ao casamento porque, do contrário, isso seria discriminação. Como advogado, eu, particularmente, acho que o fato de haver diferença entre os institutos não significa que há discriminação”, afirma o advogado.
Para Fernandes, as formalidades do casamento existem a fim de garantir segurança jurídica, pois o matrimônio tem eficácia jurídica perante uma série de relações. “Por exemplo, tomar crédito bancário exige outorga do cônjuge; transmitir escritura precisa de anuência do cônjuge; na declaração de imposto de renda: o cônjuge é declarado, mas não o convivente”, elenca o juiz.
“A distinção do regramento do casamento tem sua razão de ser. O casamento tem duas grandes potencialidades: primeiro, gerar estabilidade social, já que duas pessoas se comprometem, pela vontade, a viver juntas duradouramente - já o vínculo da união estável é mais frouxo; segundo, a aptidão de gerar filhos num ambiente saudável e duradouro, que é uma meta assumida pelo casal”, afirma Fernandes.
Entenda o caso
O julgamento conjunto dos Recursos Extraordinários nº 878.694 e 646.721, admitidos em regime de repercussão geral, discutia dois casos de companheiros – em uma união estável homossexual de 40 anos, e em outra heterossexual de nove anos – que disputavam a herança com irmãos dos falecidos, por causa da regra de sucessão prevista no artigo 1790 do Código Civil.
O relator da ação no STF, ministro Luís Roberto Barroso, considerou, em seu voto, que “não é legítimo desequiparar, para fins sucessórios, os cônjuges e os companheiros, isto é, a família formada pelo casamento e a formada por união estável. Tal hierarquização entre entidades familiares é incompatível com a Constituição”.
Art. 226, A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
§ 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
De acordo com o STF, estabelecer regimes sucessórios distintos ofende o artigo 226, § 3º da Constituição. Para o ministro Barroso, seguido pela maioria da corte, esse dispositivo constitucional assegura que “será arbitrária toda diferenciação de regime jurídico que busque inferiorizar um tipo de família em relação a outro, diminuindo o nível de proteção estatal aos indivíduos somente pelo fato de não estarem casados”.
Por outro lado, o ministro Dias Toffoli, em voto divergente, seguido pelos ministros Marco Aurélio Mello e Ricardo Lewandowski, entendeu que “as entidades familiares são distintas, como especificado na Constituição Federal (...) Portanto, há de ser respeitada a opção feita pelos indivíduos que decidem por se submeter a um ou a outro regime. Há que se garantir, portanto, os direitos fundamentais à liberdade dos integrantes da entidade de formar sua família por meio do casamento ou da livre convivência, bem como o respeito à autonomia de vontade para que os efeitos jurídicos de sua escolha sejam efetivamente cumpridos”.
Em seu voto, o ministro Toffoli revisita as discussões legislativas sobre o Código Civil de 2002 e conclui que “não se verifica, nos fundamentos, uma inferiorização de um instituto em relação ao outro, ou deliberada criação de uma situação desvantajosa. O legislador cuidou, no entanto, de dar a eles tratamento diferenciado, até para que não houvesse a equiparação entre os regimes dos dois institutos”.
O Procurador-Geral da República (PGR), Rodrigo Janot, também se manifestou contrário à equiparação. Em parecer na ação, Janot afirma que “tanto a união estável quanto o casamento constituem manifestações da autonomia privada dos contraentes, pois, se não há impedimento para o casamento e, mesmo assim, os conviventes optam pela união estável é por que a entendem mais adequada às suas necessidades e anseios, ou, ainda, por preferirem ficar livres das regras rígidas impostas pelo casamento”.
“A diversidade de regimes (de bens e sucessórios) tem sua legitimidade constitucional na própria diferenciação feita pela Carta Política entre, de um lado, o casamento, e de outro, a união estável (...) Este tratamento constitucionalmente assimétrico de ambos os institutos, reflete-se não só no aspecto patrimonial ou sucessório: o casamento difere da união estável quanto à formalidade, invalidação, eficácia, dissolução, regime patrimonial e sucessório”, escreve ainda o PGR.
Conheça a lei
Como era (artigo revogado):
Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes:
I - se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho;
II - se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles;
III - se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança;
Como ficou (artigo que passa a valer para união estável também):
Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:
I - aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;
II - aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;
III - ao cônjuge sobrevivente;
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