No quarto dia de julgamento sobre a criminalização da homofobia no Supremo Tribunal Federal (STF), três ministros votaram no mesmo sentido inaugurado pelo voto de Celso de Mello e equipararam ao racismo à discriminação contra a chamada população LGBT, enquanto o Congresso não criar lei específica. Edson Fachin, Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso votaram nesta quinta-feira (21). Ao final da sessão, o presidente da Corte, ministro Dias Toffoli, anunciou que ainda vai definir data para retomada do julgamento.
O tema é tratado em duas ações discutidas conjuntamente, a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26, proposta pelo PPS e de relatoria de Celso de Mello, e no Mandado de Injunção (MI) 4733, proposto pela Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros (ABGLT) e de relatoria do ministro Edson Fachin, o primeiro a votar na sessão de hoje.
Seguindo Mello, os ministros entenderam que é possível interpretar a Lei 7.716/1989, que criminaliza “a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional” conforme a Constituição e ao conceito de racismo estabelecido pelo STF em 2003, no julgamento do caso Ellwanger (HC 82.424), que considerou o antissemitismo uma forma de racismo para fins da aplicação legal.
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Nenhum dos ministros que já votou, no entanto, manifestou-se por estabelecer prazo para que o Congresso legisle para suprir a omissão considerada inconstitucional pelo STF.
O artigo 8º da Lei 13.300/2016, que regulamenta o Mandado de Injunção, diz que reconhecido o estado de mora legislativa, será deferida a injunção para “determinar prazo razoável para que o impetrado promova a edição da norma regulamentadora”, o que poderá ser dispensado “quando comprovado que o impetrado deixou de atender, em mandado de injunção anterior, ao prazo estabelecido para a edição da norma”.
Durante o julgamento, o ministro Marco Aurélio, que ainda não votou, chamou a atenção para o fato de o tribunal estar inovando ao decidir, em sede de uma ADO, não apenas declarar a omissão, mas suprir a lacuna – uma inovação que o tribunal criou em 2007, no julgamento do MI 721. Fachin, Moraes e Barroso, no entanto, votaram conjuntamente na ADO 26 e no MI 4733.
Barroso e Moraes também se manifestaram, como Mello, no sentido de que a criminalização da homofobia não pode infringir as garantias da liberdade religiosa e de palavra.
Como votou Fachin, relator do MI 4733
Fachin aceitou julgar o Mandado de Injunção – o que o ministro Ricardo Lewandowski havia negado em 2013, mas acabou derrotado por recurso –, porque viu “existência inequívoca de direito à legislação” requerida pela ABGLT no MI 4733. Segundo a jurisprudência do Supremo, deve haver simultaneamente previsão de legislação necessária no texto constitucional e o dever estatal de legislar, que o ministro afirmou decorrer do inciso XLI ao artigo 5º da Constituição Federal: “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”.
“Conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania”, diz outro inciso ao artigo 5º da Constituição, o de número LXXI.
Fachin deu um segundo fundamento a seu voto. Segundo ele, a falta de legislação que proteja especificamente a chamada população LGBT viola o princípio da igualdade. “A omissão legislativa estaria a indicar que o sofrimento e a violência dirigida a uma pessoa homossexual ou transexual é tolerada, como se fosse uma pessoa não digna de viver em igualdade com as demais”, disse.
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Para o relator, porém, apenas declarar a omissão seria incoerente, sendo necessário resolvê-la. “Ainda que envolvendo matéria penal, não nos parece possível alegar que a injunção deveria limitar-se ao mero reconhecimento da mora [atraso]”, disse o ministro.
Como solução para a omissão, Fachin aceitou o argumento de Celso de Mello de que a discriminação por identidade de gênero e orientação sexual se enquadra na definição jurídica de racismo que o STF criou no julgamento do caso Ellwanger (HC 84.424), em 2003.
Em seu voto, Fachin afirmou que não só a chamada população LGBT está em risco no Brasil, mas também os defensores dos direitos dessa população, citando o relatório “Violência contra pessoas LGBTI”, aprovado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos em novembro de 2015.
Uma das recomendações do documento ao Poder Legislativo dos países é “adotar legislação contra a discriminação ou modificar a legislação existente, a fim de proibir toda forma de discriminação que inclua aquela baseada na orientação sexual, identidade de gênero, expressão de gênero, características sexuais ou aquelas relacionadas com pessoas intersexo”.
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O relator do MI 4733 afirmou também, concordando com Celso de Mello, relator da ADO 26, que “os princípios Yogyakarta podem e devem ser utilizados como fontes para colher definições que iluminam o debate sobre esta matéria”.
Esses princípios, gestados em 2006 por acadêmicos e ativistas, apesar de não criarem obrigações para os países, são o principal instrumento internacional de promoção da ideologia de gênero no ordenamento jurídico dos Estados Nacionais, muitas vezes por meio do ativismo judicial de juízes dos próprios países, que passam a reinterpretar o direito com base nas noções do documento.
Fachin citou ainda a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4275, em que o STF decidiu, em março do ano passado, que as pessoas transgênero têm direito a mudança de nome no registro civil sem a necessidade de laudo médico ou decisão judicial. Segundo o ministro, essa decisão estabeleceu na jurisprudência do tribunal que “o direito à igualdade sem discriminações abrange a identidade ou expressão de gênero”.
Como votaram Moraes e Barroso
Alexandre de Moraes, o terceiro a votar, também reconheceu a omissão constitucional em relação ao artigo XLI, e viu a necessidade específica de lei penal para suprir a omissão. Ele aceitou a linha ditada pelo voto do relator da ADO 26 de enquadrar a discriminação por identidade de gênero e orientação sexual no conceito jurídico de racismo.
“[Por meio de lei penal], o legislador procedeu em relação à criança e ao adolescente, idosos, pessoas com deficiência, [...] aos consumidores [...] e, mesmo sem uma referência expressa [na Constituição], às mulheres. Não houve por parte do Congresso, em momento algum, nenhuma dúvida de que a proteção dada a esses grupos vulneráveis dependia de lei penal. O único grupo que, nesses 30 anos, ficou excluído foi o grupo relacionado a orientação sexual e identidade de gênero”, disse o ministro.
Moraes também negou que, ao equiparar homofobia e racismo, o STF estaria legislando. “Esses princípios [anterioridade da lei penal e reserva legal] não se confundem com o legítimo exercício hermenêutico desta Suprema Corte”, disse. “Aqui me parece existente o necessário espaço de interpretação, de decisão, que possibilita a interpretação conforme para estender a aplicação da Lei 7.716/1989”, afirmou também.
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O ministro Barroso também acompanhou por completo a linha de raciocínio de Mello. “Não escapará a ninguém que tenha olhos de ver e coração de sentir que a comunidade LGBT é, no Brasil, claramente um grupo vulnerável, vítima de preconceitos, discriminações e violências”, afirmou.
“A criação primária das leis – ninguém discute – é papel do Congresso Nacional [...] Já a interpretação constitucional é um exercício típico do Supremo”, disse ainda, defendendo o tribunal da acusação de estar usurpando a competência do Legislativo no tema. “Às vezes o processo político majoritário emperra, mas existe uma demanda premente das sociedades, e as Supremas Cortes acabam sendo chamadas para satisfazer essas demandas”.
“No normal das circunstâncias, eu fixaria um prazo para o Congresso atuasse, prevendo uma consequência jurídica na hipótese de a omissão persistir, porém, aqui é um caso típico em que o processo majoritário não dá conta de fazer valer o comando constitucional”, acrescentou Barroso.
Barroso também acolheu o pedido para que a homofobia constitua circunstância agravante por motivo fútil ou torpe e qualificadora nos casos de homicídios.
Como votou Celso de Mello, relator da ADO 26
Na quarta-feira (20), Celso de Mello encerrou a leitura de seu voto de 155 páginas, que tomou mais de duas sessões do tribunal. Mello afirmou que os incisos XLII (“a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”) e XLI (“a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”) do artigo 5º da Constituição são “mandados expressos de criminalização, tendo em vista os bens e valores envolvidos”.
O ministro argumentou ainda que esses mandados de criminalização “traduzem uma outra dimensão dos direitos fundamentais”, que “legitima a ideia de que o Estado se obriga não apenas a respeitar os direitos de qualquer indivíduo, mas também a garantir os direitos fundamentais contra agressão propiciada por terceiros”.
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Mello lembrou que a jurisprudência do tribunal aceita a noção de que a proibição da proteção insuficiente decorre do princípio da proporcionalidade, que “impõe ao Legislador a proibição do excesso, mas também da proibição insuficiente”.
“Sempre que um modelo de pensamento fundado na exploração da ignorância e do preconceito põe em risco a preservação dos valores da dignidade humana, da igualdade e do respeito mútuo entre as pessoas, incitando a prática da discriminação dirigida contra uma comunidade exposta aos riscos da perseguição e da intolerância, mostra-se indispensável que o Estado ofereça proteção adequada aos grupos hostilizados”, afirmou o ministro.
Diante da omissão do Congresso em cumprir o “mandado de criminalização”, Mello argumentou que haveria duas opções diante do STF: ou a "certificação do Congresso Nacional para que adote as medidas necessárias para efetivação da norma constitucional” ou o “reconhecimento de que homofobia e transfobia, quaisquer que sejam as formas pelas quais se manifestam, enquadram-se, mediante interpretação conforme da Constituição, na noção de racismo”.
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Citando precedentes do tribunal que expandiram o raio de ação do Supremo no julgamento das omissões inconstitucionais, o ministro reafirmou que a demora em legislar muitas vezes é “irrazoável”, e que essa conduta do Congresso é “procrastinatória” e “abusiva” e não pode ser chancelada pelo tribunal, que estaria fomentando um estado de “crônica inconstitucionalidade”. E ainda cutucou os parlamentares: “Nós temos visto que o mero apelo ao Legislador é inócuo”.
Mello passou então a analisar a tese de que a jurisprudência do Supremo na aplicação da Lei 7.716/1989 (lei antirracismo), definida no caso Ellwanger (HC 82.424), permitiria que LGBTfobia fosse equiparada ao racismo para fins de aplicação legal. O ministro lembrou que as definições de raça e racismo, conforme decidido pelo tribunal, variariam de acordo com o contexto histórico, tornando-se possível o surgimento e o desaparecimento de novas raças. “Nunca se pretendeu restringir o racismo ao negro”, disse.
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Considerando esse precedente, Mello enxergou “identidade fundamental” entre LGBTfobia e racismo, que seria ademais reforçada por dois fatores presentes em ambos os casos: a motivação motivada pelo preconceito e a vontade de submeter as vítimas à diferenciação de acesso e gozo a bens públicos e privados.
Para defender seu raciocínio, Mello argumentou ainda que não se trata de analogia em desfavor dos acusados – o que é proibido no direito penal –, nem de criação de tipo penal (crime) ou de pena por decisão judicial, o que contrariaria a Constituição Federal. Para o ministro, trata-se apenas de interpretar a noção de raça conforme à Constituição, para que condutas supostamente LGBTfóbicas passem a ser enquadradas na Lei 7.716/1989.
Citando texto do advogado da causa, Paulo Vecchiatti, Mello resumiu: “O conceito geral e abstrato de racismo reveste-se de caráter amplo, sob cuja égide tornam-se enquadráveis as práticas de homofobia e transfobia”, afirmou o ministro.
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A homofobia e a transfobia se enquadram da mesma forma que a negrofobia, a xenofobia, etnofobia e o antissemitismo, critérios já autonomamente positivados pela lei antirracismo, servindo o critério de raça como cláusula valorativa apta a permitir a evolução do conceito de racismo para outras situações que também se enquadrem nesse conceito”, completou.
No julgamento, Mello também afirmou que a criminalização da homofobia não pode atingir a liberdade religiosa, propondo que qualquer conflito que surja de eventual decisão do STF seja resolvido pelo Poder Judiciário nos casos concretos.
“A livre expressão de ideias de pensamentos e convicções em sede confessional não pode e não deve ser impedida pelo poder público, nem pode ser submetida a ilícitas interferências do Estado, de qualquer cidadão ou instituição da sociedade civil”, afirmou no julgamento.
A adoção, pelo Estado, de meios destinados a impedir condutas homofóbicas e transfóbicas em hipótese alguma poderá coarctar, restringir ou suprimir a liberdade de consciência e de crença, nem autorizar qualquer medida que interfira as celebrações litúrgicas ou que importem em cerceamento à liberdade de palavra, seja como instrumento de pregação da mensagem religiosa, seja ainda como forma de exercer o proselitismo em matéria confessional, quer em espaços públicos, quer em ambientes privados”, propôs o ministro.
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O principal ponto de atrito entre a criminalização da homofobia e a liberdade religiosa é o artigo 20 da Lei 7.716/1989, que prevê o crime de “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. Pela decisão de Mello, estariam incluídos nesse rol também a discriminação por identidade de gênero e orientação sexual.
Como não há consenso sobre o que significa homofobia, lideranças religiosas receiam que a lei possa ser usada para perseguir ensinamentos religiosos. Na semana passada, a Frente Parlamentar Evangélica (FPE) reuniu-se com o presidente do STF, ministro Dias Toffoli, para pedir a retirada de pauta das ações em julgamento, mas teve seu pedido negado.
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