O Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu, nesta quinta-feira (1°), a possibilidade de alteração do gênero nos registros civis de transexuais independentemente da realização de cirurgia de transgenitalização, conhecida popularmente como cirurgia de “mudança de sexo”. Também não será necessária autorização judicial para o procedimento, que poderá ser solicitado administrativamente. A questão foi discutida no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4275 e, ainda que tenha havido divergências quanto à necessidade de decisão judicial, a votação foi unânime em reconhecer desnecessária a cirurgia.
Ajuizada pela Procuradoria-Geral da República (PGR), a ADI 4275 pleiteava para que fosse declarado inconstitucional o artigo 57 da Lei de Registros Públicos (Lei 6015/1973). Pela disposição, “a alteração posterior de nome só por exceção e motivadamente, após audiência do Ministério Público, será permitida por sentença do juiz a que estiver sujeito o registro, arquivando-se o mandado e publicando-se a alteração pela imprensa”.
O órgão sustentou que não é a cirurgia de transgenitalização que atribui ao indivíduo a condição de transexual. A PGR também argumentou que, se a lei determina a proteção da pessoa contra nomes que podem expô-la ao ridículo (art. 56, parágrafo único), o texto deve assegurar aos transexuais a mudança de nome de acordo com a identidade social de gênero, para que também não os exponha a situações vexatórias.
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Relator da ADI, Marco Aurélio reconheceu a possibilidade de alteração no prenome e gênero do registro civil por meio de averbação no registro original. O ministro, contudo, impôs requisitos à modificação, como idade mínima de 21 anos e laudo médico que comprove o transexualismo, condição que ainda é considerada doença pela Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID). Também seria necessário o acompanhamento, por no mínimo dois anos, de equipe formada por psiquiatra, cirurgião, endocrinologista e assistente social, além da necessidade de decisão judicial.
A maioria dos requisitos apontados pelo relator não foi seguida por seus pares. Alexandre de Moraes iniciou a divergência ao estabelecer a idade de 18 anos, e não de 21. Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes votaram pela necessidade de autorização judicial para o ato. Já Edson Fachin votou pela possibilidade de mudança no registro baseada somente na autodeclaração do interessado, sem a exigência de outros requisitos, como o diagnóstico, e de maneira administrativa, sem a interferência da Justiça.
“A pessoa não deve provar o que é”, afirmou Fachin, sendo acompanhado por Luís Roberto Barroso, Luiz Fux, Rosa Weber, Cármen Lúcia e Celso de Mello, que complementou que “nenhuma pessoa pode sofrer repressões para esconder sua orientação sexual ou sua identidade de gênero”.
O que vem por aí
Previdência social
Um dos questionamentos mais comuns que se faz quando o assunto é transexualidade, justamente pelo fato de a lei não fazer nenhuma menção específica a essa situação, está ligado à aposentadoria. Uma pessoa transexual, afinal, vai se aposentar de acordo com a idade prevista para homens ou mulheres?
Atualmente, os requisitos adotados pela Previdência Social, idade ou tempo de serviço, são estritamente biológicos, isto é, destinados a homens ou mulheres. A lei é taxativa ao trazer os critérios para aposentadoria: 35 anos de contribuição, se homem e 30, se mulher, ou 65 anos de idade, no caso dos homens, e 60 no caso das mulheres, com redução de tempo para trabalhadores rurais e professores.
Em relação aos transexuais, ainda não há precedentes na Justiça, mas Tereza Rodrigues Vieira, PhD em Direito pela Universidade de Montreal e que há 20 anos trabalha com o público transgênero, afirmou, em entrevista dada em dezembro à Gazeta do Povo, que “a partir do momento em que a sentença transitou em julgado reconhecendo a adequação do nome e do gênero da pessoa trans, esta deve ser considerada como qualquer outra do mesmo gênero”. Para a advogada, “não deve haver diferenças na concessão de benefícios, independentemente da realização de cirurgias”. No estado de São Paulo, por exemplo, segundo Tereza, as ações do gênero têm demorado de dois meses a um ano para serem concluídas.
Como o sistema previdenciário é entendido como um sistema protetor, os juízes tenderiam a interpretar que aos homens transexuais (aqueles que nasceram com o sexo biológico feminino) devem ser aplicados os critérios relativos à aposentadoria das mulheres, por se tratar de norma mais favorável.
Em 2010, na Inglaterra, uma mulher transexual (que nasceu num corpo masculino) conseguiu, na Justiça, o direito de que sua aposentadoria fosse contada a partir do momento em que completou 60 anos, idade mínima para as mulheres se aposentarem na localidade. Na época, o Departamento de Trabalho e Pensões, agência governamental do Reino Unido, negou o pedido de Christine Timbrell, nascida Christopher, pelo fato de ela ter continuado casada com sua esposa, Joy.
É que pelo Gender Recognition Act (Ato de Reconhecimento de Gênero), emitido pelo Parlamento britânico em 2004 e que passou a valer no ano seguinte, a mudança de gênero só passa a ter efeitos legais se o transexual, se casado, divorciar-se de seu parceiro. No caso em questão, Christine se submeteu a uma cirurgia de redesignação sexual com o consentimento de Joy, com quem continuou a viver. Christine recorreu da decisão da agência governamental e o juiz que analisou a questão deu ganho de causa à transexual, com o argumento de que a incapacidade da lei ao lidar com pessoas transgênero seria discriminatória.
Forças Armadas
Em julho de 2017, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, usou seu perfil no Twitter para anunciar que pessoas transgênero não poderiam mais fazer parte do quadro das Forças Armadas do país. O republicano, que disse ter se reunido com generais e especialistas militares para chegar à decisão, foi na contramão de medida implementada pelo governo Obama. Último secretário de Defesa do democrata, Ashton Carter anunciou, em 2015, que a proibição de recrutamento de transexuais no país seria derrubada para garantir que “todas as pessoas capazes e dispostas a servir tenham a oportunidade plena e igualitária de fazê-lo”.
Mas pouco mais de três meses após o anúncio de Trump, a juíza federal Colleen Kollar-Kotelly, ao analisar o caso Jane Doe v. Trump, deu ganho de causa aos oficiais transgêneros, suspendendo a determinação do presidente. A sentença teve como base a quinta emenda à Constituição dos EUA, que prevê que todos têm direito ao devido processo legal. Na visão de Colleen, a medida de Trump não poderia ser colocada em prática enquanto a Justiça ainda discute o tema.
A decisão recebeu críticas. “Se Kollar-Kotelly quer comandar as Forças Armadas, ela deveria encarar a sociedade e concorrer à presidência. Até lá, seu tribunal deveria deixar a formulação de políticas para o homem mais bem informado e capacitado para o cargo”, escreveu Tony Perkins, presidente da ONG Family Research Council.
“Do ponto de vista legal, essas decisões são problemáticas. Juízes não têm o condão de desautorizar uma decisão fundamentada do presidente, sob sua autoridade constitucional como comandante-chefe [das Forças Armadas], capaz de estabelecer os princípios de elegibilidade para servir nas Forças Armadas”, disse Alden Abbott, pesquisador da The Heritage Foundation.
No Brasil, transexuais/transgêneros não enfrentam nenhum impedimento formal para servir nas Forças Armadas. Segundo o Exército brasileiro, mulheres transexuais estão dispensadas do alistamento, ainda que não tenham realizado cirurgia de redesignação sexual. É preciso, porém, que decisão judicial transitada em julgado - sem possibilidade de recurso - tenha confirmado a alteração de gênero no registro civil antes do indivíduo completar 18 anos.
Já os homens trans, se maiores de 18 anos e com idade inferior a 45, assim que obtiverem a mudança no registro civil, precisam se alistar, para, “dependendo da idade, prestar o Serviço Militar obrigatório inicial ou constar no cadastro de reservistas para eventual convocação em caso de conflito armado." O alistamento deve ser realizado em até 30 dias após a mudança dos documentos.
Penitenciárias
Outra dúvida que surge é sobre o sistema prisional. Como todo ser humano, transexuais não estão imunes a cometer crimes, muito menos sujeitos à impunidade por parte do Estado. Onde, então, essas pessoas devem cumprir pena?
Em 2014, a Resolução Conjunta n. 1, da Presidência da República e do Conselho Nacional de Combate à Discriminação, estipulou que tanto homens quanto mulheres transexuais presos devem ser encaminhados a unidades prisionais femininas, além de ser facultado o uso de roupas masculinas ou femininas e garantida a continuidade do tratamento hormonal. No Rio de Janeiro, desde 2015, travestis e transexuais podem escolher ir para as alas dos presídios destinadas às mulheres, mesmo ano em que o Piauí registrou o primeiro caso de transferência de uma transexual de penitenciária masculina para feminina.
Mesmo assim, ainda há muitas críticas quanto a esses procedimentos e o assunto não está pacificado. De um lado, há relatos de transexuais que sofrem abusos nas cadeias, chegando a serem estuprados muitas vezes por dia. De outro, são registradas queixas de mulheres que se sentem inseguras em uma cela com mulheres trans que não realizaram a cirurgia de transgenitalização.
Casamento
As consequências para o casamento civil, tanto para pessoas transexuais que já realizaram cirurgia quanto para as que não o fizeram, também apresentam inúmeros desafios. A advogada Tereza Rodrigues Vieira diz conhecer casos de homens e mulheres trans que, após a alteração legal dos documentos, oficializaram a união. A advogada, contudo, reconhece a possibilidade do cônjuge, desconhecendo a condição de transexual do companheiro, de pedir pela anulação do casamento.
Isso porque o inciso I do artigo 1.556 do Código Civil prevê como hipótese de anulação o erro essencial quanto à pessoa do outro, no “que diz respeito à sua identidade, sua honra e boa fama”. Nesses casos, o prazo para entrar com o pedido é de três anos a partir da data do casamento.
“É possível que o cônjuge que desconhecia a transexualidade do outro tenha manifestado, antes do casamento, o desejo de ter filhos próprios, rejeitando a possibilidade de adoção ou reprodução assistida heteróloga”, afirma a jurista. O Projeto de Lei (PL) 3875/2012, que tramita na Câmara dos Deputados, busca incluir explicitamente a hipótese de desconhecimento da condição de transexual do cônjuge no rol das possibilidades de anulação do casamento. De autoria do parlamentar Manato (SD-ES), o texto já foi aprovado pela Comissão de Seguridade Social e Família da Casa e aguarda agora parecer da Comissão de Constituição e Justiça.
Em audiência pública sobre o tema realizada na Câmara em 2015, convidados defenderam o direito ao esquecimento dos transgêneros, que asseguraria que o passado em uma outra identidade fosse deixado para trás.
Esporte
As entidades ligadas ao esporte também são instituições que precisam discutir a liberação do registro civil, estipulando regras sobre a participação de transexuais em torneios. Em relatório divulgado em janeiro de 2016, o Comitê Olímpico Internacional (COI) definiu as diretrizes para atletas transexuais participarem de competições esportivas, mesmo sem a realização de cirurgia de transgenitalização.
No caso de quem nasceu com o sexo biológico masculino e fez a transição de gênero para o feminino, a atleta precisa ter a identidade de gênero declarada legalmente e manter nível baixo de testosterona durante os 12 meses que antecedem o início das provas. Quando se trata de transexuais masculinos - aqueles que nasceram com o sexo biológico feminino -, a organização não prevê restrições.
A força física, que é maior em corpos masculinos, é um dos principais argumentos usados por quem se posiciona de forma contrária à participação de transexuais em equipes femininas, por isso a testagem do testosterona. Ocorre que mesmo com os níveis baixos à época da competição, pode-se afirmar que as mulheres transexuais possuem uma espécie de benefício pregresso em relação às mulheres biológicas.
O fisiologista Turibio Leite de Barros explica que, por terem tido mais testosterona no processo de “construção” do corpo, as mulheres transexuais têm massa muscular mais desenvolvida, o que seria uma vantagem em esportes nos quais força, impulsão e potência são fatores determinantes de desempenho. “Isso é incontestável, é um aspecto hormonal e fisiológico”, afirma Barros. Para o profissional, é uma situação difícil de ser resolvida porque, ao mesmo tempo em que essas pessoas têm o direito de se envolver em uma atividade esportiva, não é possível declarar que elas não possuem nenhuma vantagem.
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