O Brasil assistiu ao vivo, nesta quinta-feira (24), a mais uma confusão no plenário do Supremo Tribunal Federal (STF). Os jornais noticiaram um fato incomum sobre o julgamento em pauta: a maioria dos ministros presentes tinha votado pela inconstitucionalidade de um artigo de uma lei, mas, como não eram a maioria absoluta de 6 votos, a decisão não teria efeitos. O amianto regulado continuava liberado no país e o resultado virou notícia. Logo em seguida, a surpresa. No julgamento de uma lei estadual de São Paulo, alcançou-se, desta vez com o voto necessário de seis ministros, a declaração da inconstitucionalidade incidental do mesmo dispositivo da lei federal que, momentos antes, não tinha sido derrubado. O amianto estava proibido no Brasil.
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Não demorou muito para se descobrir que a confusão continuava. Depois de encerrado o julgamento, começou na imprensa uma disputa pela interpretação da decisão que acabara de ser proferida. Os ministros Alexandre de Moraes e Marco Aurélio Mello, votos vencidos que – apesar disso – conseguiram o resultado vencedor na primeira votação, declararam que a decisão do tribunal alcançava apenas o estado de São Paulo, já que a lei federal continuava eficaz.
Dias Toffoli e Celso de Mello defenderam o contrário. “O emprego do amianto tipo crisotila, ainda que mediante uso controlado, esse emprego está, sim, vedado, porque o STF excluiu do sistema de direito positivo o artigo da lei federal”, disse o decano da corte. À imprensa, outros ministros declararam, reservadamente, que a situação dos outros estados está em um “vácuo jurídico” – há ações tramitando para avaliar leis de outras unidades da federação, mas sua entrada em pauta depende de decisão da presidente do tribunal.
No meio do caminho
Duas ações estavam em jogo no Supremo na quinta-feira (24): A ADI 4006, questionando o artigo 2º da Lei 9005/95, que libera o amianto no Brasil, desde que observados padrões de segurança; e a ADI 3937, questionando uma lei do estado de São Paulo que proíbe completamente a exploração e utilização dessa substância no estado.
A primeira ação tramitava desde 2008 no Supremo sob relatoria do ministro Carlos Ayres Britto e, depois de sua aposentadoria, o processo foi redistribuído para a ministra Rosa Weber. O julgamento foi retomado no último dia 10 e, no dia 17, a relatora votou pela inconstitucionalidade do dispositivo da lei federal, porque o amianto “é incompatível com os artigos 7º, inciso XXII, 196 e 225 da Constituição Federal”. Deveriam prevalecer o direito à segurança no trabalho, à saúde e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado contra os riscos do amianto, substância cancerígena.
Na última quarta-feira (23), os ministros Edson Fachin e Ricardo Lewandowski seguiram o voto da relatora, contra Alexandre de Moraes, Luiz Fux, Marco Aurélio e Gilmar Mendes. Já estava claro que o tribunal não teria os seis votos para declarar a lei inconstitucional, porque Luís Roberto Barroso e Dias Toffoli estavam impedidos de atuar na ADI 4006. O artigo 97 da Constituição exige a maioria absoluta dos membros de um tribunal para que declare a inconstitucionalidade de leis. Na quinta-feira (24), Celso de Mello e Cármen Lúcia juntaram-se à tese de Rosa Weber, mas, como esperado, não completaram os seis votos necessários. A notícia de que o amianto estava liberado se espalhou.
Paralelamente, porém, corria no tribunal, desde 2007, a ADI 3937, de relatoria do ministro Marco Aurélio Mello, questionando a proibição do amianto que vigora em São Paulo. Em 2012, Marco Aurélio votou pela procedência da ação, Ayres Britto votou pela improcedência, mas o julgamento foi suspenso e só retomado em novembro do ano passado, quando o ministro Edson Fachin também votou pela improcedência.
O ministro Dias Toffoli pediu vista dos autos e trouxe de volta o processo para julgamento no mesmo dia 10 em que o STF retomou a ADI 4006. Tóffoli inovou na matéria: julgou constitucional a lei paulista e propôs, ainda, a declaração de inconstitucionalidade incidental da mesma lei federal discutida na ADI 4006, processo no qual ele se declarara impedido. Segundo a definição usada pela própria assessoria de imprensa do STF, “a declaração de inconstitucionalidade incidental se dá nos fundamentos da decisão, em situações em que não figura como pedido principal formulado na ação”.
O julgamento foi suspenso novamente e retomado nesta quinta-feira (24), quando o ministro Fachin mudou seu voto para acolher a proposta de Dias Toffoli. A ministra Rosa Weber votou rapidamente, também acolhendo a tese de Toffoli, assim como Lewandowski, Celso de Mello e Cármen Lúcia. Por 6 votos a quatro, a maioria absolutaacolheu os fundamentos da decisão de Dias Toffoli e parece ter conseguido o resultado que não fora possível minutos antes, no julgamento da ADI 4006, justamente em virtude do impedimento do ex-AGU. Mas a disputa de interpretações ainda não terminou.
Supremos
Para Egon Bockmann Moreira, professor de Direito Público da Universidade Federal do Paraná (UFPR), o julgamento de quinta-feira revela um sintoma mais profundo nas decisões do STF – a corte não estaria se comportando como um verdadeiro colegiado que profere decisões com fundamentos claros. “O Joaquim Falcão cunhou a expressão de que o Supremo são 11 ilhas. A atual configuração do tribunal não tem se esforçado em dar decisões uniformes”, diz Moreira.
“O problema é ainda mais sério: o Novo Código de Processo Civil estabeleceu uma lógica de precedentes no Brasil, mas, para haver um precedente que faça subir um recurso, você precisa da identidade lógica das razões de decidir. O sistema de precedentes não convive bem com esse grau de inconsistência desses julgamentos”, afirma.
Rubens Glezer, professor de Direito Constitucional na Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP) e um dos coordenadores do Supremo em Pauta, também considera que “o STF não cumpre bem seu papel de orientar nem o Judiciário, nem a administração pública”, mas relativiza o diagnóstico das 11 ilhas. “Esse julgamento não foi um acidente. O que aconteceu foi um resultado calculado pela ministra presidente Cármen Lúcia, que viu, na possibilidade de fracionar a votação das ações, a chance de obter o resultado que ela queria”, avalia Glezer.
Isso não é incomum no STF. Segundo Glezer, uma pesquisa inédita do Supremo em Pauta descobriu que o presidente da corte está, na maioria das vezes, entre os votos vencedores das ações que coloca em pauta para o plenário. Isso confirmaria que, na prática, os presidentes do Supremo levam a bola a campo quando têm mais chances de vencer.
“[No caso do amianto] Cármen Lúcia usou seu poder de agenda como presidente e houve uma articulação, talvez como eu nunca tenha visto no Supremo”, avalia Glezer. O professor vê, na manifestação de Alexandre de Moraes após o julgamento, a reação “de uma minoria que sentiu enganada, porque de fato foi enganada pela articulação dos seis votos”.
TV Justiça
O professor da FGV-SP enxerga também, na aparente confusão de quinta-feira, uma contestação de uma ideia que ganhou força na explicação do comportamento do STF na última década: a exibição pública televisionada das sessões do plenário atrapalharia a qualidade da deliberação da corte e da troca de ideias entre os ministros. “O fato de [o julgamento] ser televisionado não determina se haverá um espaço de barganha ou um voto isolado, sincero. Existe muito espaço para haver troca entre os ministros ou, pelo menos, entre os assessores dos ministros”, diz.
“Essa ideia parece vir de um erro de diagnóstico: a primeira geração de acompanhamento do Supremo, com base em pesquisa empírica, fazia isso pela leitura acórdãos. Muita coisa se perde, os ministros podem pedir para cancelar falas deles”, diz Glezer. “Agora, como nós acompanhamos há cinco anos as sessões de plenário, nós vemos que os ministros mudam muito de ideia, fazem a ajustes. O Fachin mudou o voto nesse caso Amianto”, explica.
Ativismo
Bockmann enxerga ainda mais um complicador na disputa pelo alcance da decisão do amianto. De acordo com o inciso X do artigo 52 da Constituição, é competência privativa do Senado Federal “suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal”. Segundo o professor da UFPR, é o caso quando uma lei é declarada inconstitucional incidentalmente.
“Mas houve ocasiões em que o STF disse que tinha ocorrido uma ‘mutação constitucional’ e, portanto, eles disseram que estavam conferindo efeitos erga omnes [vinculantes perante todos] à decisão. O Supremo é volátil: afinal, vai precisar ou não de declaração do Senado? Ninguém sabe”, diz Bockmann.
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