A Suprema Corte dos Estados Unidos entendeu, na última sexta-feira (22), que as informações de localização por meio do celular estão protegidas pela Quarta Emenda da Constituição do país, que prevê a proteção dos cidadãos contra buscas e apreensões arbitrárias.
O caso que motivou a decisão, Carpenter v. Estados Unidos, trouxe uma esperança na batalha pela privacidade digital. Mais importante que a sentença em si é o raciocínio trazido pela Suprema Corte: os juízes finalmente rejeitaram a ideia antiquada de que voluntariamente renunciamos à nossa privacidade simplesmente por possuirmos dispositivos digitais.
Antes de tudo, é preciso deixar claro que nossos celulares deixam impressões digitais virtuais aonde vamos. As referências de localização, nesse sentido, são um tipo de metadados – informações sobre chamadas, e-mails e mensagens de texto que não incluem seu conteúdo propriamente dito. Normalmente, os tribunais exigem mandados para averiguar chamadas e ler o conteúdo das mensagens. Mas não havia, até então, o reconhecimento de uma proteção constitucional a respeito dos metadados.
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O argumento do governo era de que, ao usarmos nossos telefones, concordamos em fornecer essas informações a terceiros. Assim, não teríamos direito a reclamar sobre como esses dados poderiam ser usados. Presidente da Suprema Corte, John Roberts rejeitou firmemente esse argumento. Ninguém consente na entrega de “um abrangente dossiê acerca de todos os seus movimentos” apenas usando um telefone.
No caso Carpenter v. Estados Unidos, que envolveu uma investigação criminal, a Corte teve o cuidado de deixar a resolução de questões sobre técnicas de coleta de dados “envolvendo assuntos estrangeiros ou de segurança nacional” para julgamentos futuros. Será, contudo, nos extensos programas de vigilância em massa, promovidos pela comunidade de inteligência dos EUA, que a decisão judicial vai ter seu maior impacto.
Antecedentes
Em junho de 2013, Edward Snowden, contratado da Agência de Segurança Nacional dos EUA (NSA, na sigla em inglês), contou ao mundo sobre um massivo programa de coleta de metadados privados. Snowden furtou uma série de documentos confidenciais e os entregou à imprensa.
Um dos primeiros documentos a ser divulgado se tratava de um mandado secreto da Verizon, maior operadora norte-americana de telefonia móvel, para “todos os registros detalhados de chamadas ou ‘metadados de telefonia’” pertencentes à empresa. A ordem foi emitida sob uma lei que garantia ao governo o poder de obter metadados “relevantes” – o mesmo padrão rejeitado pela Suprema Corte na semana passada.
Nesse período, eu concluía um trabalho para o Diretor de Inteligência Nacional à época, James Clapper. Ele estava se tornando infame por conta da falsa resposta dada ao senador Ron Wyden, apenas alguns meses antes. Ao ser perguntado se “a NSA coleta qualquer tipo de dados dos americanos?”, Clapper respondeu que “não, senhor. Não intencionalmente”. Isso, obviamente, não era verdade, como qualquer um com conhecimento dos programas de coleta em massa da NSA sabia.
Eu sabia, porque, enquanto advogado da American Civil Liberties e crítico da vigilância constante, fora contratado para um novo setor da Inteligência Nacional, focado em garantir a proteção da privacidade em programas de inteligência. Meu trabalho incluiu a revisão de alguns dos programas mais sensíveis da NSA, como o programa de registros telefônicos que dominou as manchetes em 2013.
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De forma contundente, eu pedi por proteção de privacidade para esse programa. Mesmo assim, era surpreendentemente difícil argumentar que um programa com coleta de dados domésticos tão abrangente deveria ser encerrado por completo. A noção de que abrimos mão de nossa privacidade ao fornecer informações a companhias de telefone não faz sentido, mas encontra embasamento profundo na lei.
De acordo com o comitê secreto que analisa casos de vigilância de inteligência, simplesmente, a Quarta Emenda da Constituição dos EUA não atingiria os metadados fornecidos às empresas de telefonia. Não importava se o governo estava procurando registros de 300 milhões ou de apenas uma pessoa. Qualquer número multiplicado por zero é zero, disse o comitê.
Até hoje não se sabe se os dados coletados pela NSA incluem geolocalização de celulares. Em audiência realizada em setembro de 2013, Wyden fez outra de suas famosas perguntas: “a NSA já coletou ou planejou coletar, em massa, informações relacionadas aos celulares dos norte-americanos?”. O então diretor da NSA, general Keith Alexander, se recusou a responder o questionamento de forma direta, com “sim” ou “não”. Ele apenas disse que a NSA não estava recebendo dados de localização de celulares no momento e não pretendia fazê-lo.
Em 2015, o Congresso dos EUA aprovou o USA Freedom Act (algo como Lei de Liberdade), que limita a coleta interna de metadados em massa. Agora, a NSA, deve usar um “termo de seleção específico” para coletar esses dados. Ocorre que a lei oferece apenas proteção limitada. Mesmo após a promulgação do Freedom Act, a NSA informou que coletou mais de meio bilhão de registros em 2017. Além disso, a lei tem validade somente até o fim de 2019 e, como qualquer lei federal, pode ser alterada pelo Congresso.
A Constituição é muito menos frágil que uma lei. Sob a proteção da Quarta Emenda, o presidente da Suprema Corte nos lembra que a obrigação do governo é bastante simples: consiga um mandado. Depois da decisão da última sexta-feira (22), não será tão fácil para a NSA ignorar as objeções constitucionais à coleta de informações dizendo que “são apenas metadados”. O governo talvez tenha que repensar a vigilância em massa.
* Timothy Edgar é associado do Instituto Watson para Assuntos Internacionais e Públicos, da Universidade Brown, e autor do livro “Beyond Snowden: Privacy, Mass Surveillance and the Struggle to Reform the NSA” (“Além de Snowden: Privacidade, Vigilância em Massa e os Esforços para a reforma da NSA”), ainda sem tradução para o português.
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