Nota do editor: os ministros Luís Roberto Barroso e Gilmar Mendes bateram boca novamente na sessão de hoje no Supremo Tribunal Federal (STF). As considerações deste texto continuam tão válidas quanto eram em outubro.
Os ministros Luís Roberto Barroso e Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), bateram boca ao vivo, em sessão plenária transmitida para todo o país, nesta quinta-feira (26). Mendes foi chamado de mentiroso, politiqueiro, odiento, irracional, desarticulado, raivoso, inconsistente e correligionário de criminosos de colarinho branco. Barroso fez ainda alusão ao estado natal do ministro, Mato Grosso, remetendo ao caso em que Joaquim Barbosa, em 2009, também no plenário, insinuou que Mendes era chefe de “capangas do Mato Grosso” (veja o vídeo da discussão).
As comunidades políticas sempre intuíram a distância entre suas práticas quotidianas e os ideais que as norteiam. Por isso, a fim de evitar que a crítica política e dos costumes se tornasse cativa apenas dos profetas e dos desgraçados, transformando-se assim em elemento de instabilidade, trataram de permitir o uso da palavra na forma de sermões, exortações e admoestações que ecoassem de dentro dos próprios meandros do poder. O sistema político romano incorporou o Tribunato da Plebe. A resplendorosa França de Luís XIV tinha seu Jacques Bossuet; o pequeno Portugal de Afonso VI, seu Antônio Vieira.
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No Brasil contemporâneo, essa distância tem se tornado um fosso e o Poder Judiciário vem se transformando, para o bem e para o mal, em consciência moral e tribunato da nação. Se bem exercida, coisa que passou longe da atitude de Barroso, não há mal nessa função. O Judiciário, que já foi chamado de o menos perigoso dos poderes – não tem exército, não tem polícia, não cobra impostos –, colhe legitimidade da sua capacidade argumentativa, do seu respeito pela lei e pelo precedente, da sua eficácia em resolver conflitos com fundamento nas normas acordadas, enfim, de sua capacidade de apresentar, sob a melhor luz, as aspirações morais da nação, sedimentadas nas leis, em cada caso que julga.
Em uma democracia, não é saudável que os juízes deixem de ser o tempero de moderação aristocrática que falta ao agito da disputa político-partidária.
Quando a TV Justiça começou a transmitir ao vivo as sessões plenárias, em agosto de 2002, juristas mais prudentes avisaram que não se deveria açular a vaidade demasiadamente humana dos ministros do Supremo. Seria difícil negar que ontem Barroso estava jogando para a torcida, imbuído da nova ética da “lacração” na internet. Assumindo o papel de tribuno, emprestou para si a autoridade do plenário, de que tanto depende a missão institucional do Supremo, para ao final exceder-se. Nada que Gilmar Mendes já não tenha feito, às vezes pior. Vários são os ministros que têm se sentido por demais à vontade para roubar nacos do capital político do Supremo, degradando-lhe a imagem e, no limite, a capacidade de ação.
A intensa participação do Judiciário na vida política nacional não é nova. Ela é contemporânea da República. O Supremo, às vezes mais ativo, às vezes manietado, sempre esteve às turras com os demais poderes para cumprir as promessas, tantas vezes traídas, de nossas Constituições. O que é novo é o imenso protagonismo político da corte em rede nacional, sob a égide de uma Constituição democrática que lhe garantiu meios de ação inéditos, em um país cujos outros Poderes estão profundamente desacreditados e cuja corporação militar parece ter, depois de 1985, felizmente desistido de cumprir o papel de poder moderador de facto que lhe coube ao longo de toda a República.
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Os juízes brasileiros têm hoje consigo a estranha competência de ser um tanto Luís XIV, um tanto Bossuet; um tanto Afonso VI, um tanto Antônio Vieira. Nenhum brasileiro assiste aos pronunciamentos de senadores e deputados no parlatório em busca de uma bússola moral. Chamados, porém, a descer à lama da mais renhida crise política da história brasileira, alguns ministros do Supremo parecem afogar-se na ubíqua vaidade, dando voz não às mais nobres aspirações da comunidade moral brasileira, mas a sentimentos intestinos de ressentimento, impróprios à dignidade da função que exercem. Em uma democracia, não é saudável que os juízes deixem de ser o tempero de moderação aristocrática que falta ao agito da disputa político-partidária.
O risco nas declarações de Barroso – e nas atitudes de Gilmar Mendes, frise-se – é óbvio: que a palavra do Supremo passe a valer tanto quanto os pronunciamentos de Aécio Neves no plenário do Senado ou as bravatas de Lula da Silva em suas caravanas.