| Foto: Jim Watson/AFP

Será que um traficante terá medo de ostentar um fuzil nos bailes funks do Rio de Janeiro só porque o Congresso acaba de transformar o porte dessa arma como crime hediondo? Dificilmente. Classificar um crime como “hediondo” tem consequências severas para o criminoso, mas, neste caso, funciona apenas para dar a falsa sensação de mais segurança à população, afirmam especialistas. 

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Isso acontece por vários motivos. Primeiro, porque a norma que regulamenta os crimes hediondos no Brasil, a Lei n. 8.072/1990, teve profundas transformações desde 2006, fazendo com que as diferenças de regime entre o crime hediondo e o crime grave normal não sejam tão significativas em algumas situações, ainda que existam. Depois, já está comprovado que aumentar penas não inibe a prática de crimes e a violência.

“Há certos casos em que aumentar a pena funciona”, explica o professor Gustavo Badaró, de Direito Penal da USP. “Se ao dirigir bêbado, por exemplo, o cidadão fosse preso ao invés de pagar uma pequena multa, isso faria diferença, mas no caso do porte de arma de uso restrito, em especial o fuzil, para esse tipo de criminalidade, estudos comprovam que o potencial de dissuasão da prática é ínfimo”, afirma. As causas seriam as circunstâncias que levam uma pessoa a manter uma arma desse gênero, de forma ilegal, e o perfil dos criminosos que a utilizam. “Você acha, sinceramente, que um bandido reincidente que porta fuzil terá medo da lei penal?”, pergunta Badaró.

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Classificar agora como crime hediondo o porte deste tipo de arma é claramente uma tentativa dos políticos de dar uma resposta à sociedade diante da violência verificada em comunidades como as do Rio de Janeiro, afirma o advogado criminal Marcelo Lebre, que também é professor da Escola da Magistratura Federal do Paraná. 

Segundo ele, pelo histórico da lei, medidas como essa tentam acalmar a sociedade até que apareça outro caso grave, quando mais um crime hediondo é criado, ao invés de estabelecer políticas públicas preventivas e efetivas contra a violência. Ele lembra casos como a morte da atriz Daniella Perez pelo ator Guilherme de Pádua, quando a mãe dela, a escritora Glória Perez, conseguiu mover a opinião pública para que o homicídio qualificado fosse considerado um crime hediondo, em 1992. E também foram criados crimes hediondos depois da chacina em frente à Igreja da Candelária, no Rio de Janeiro, ou quando houve um surto de falsificação de medicamentos, em 1998, lembra o procurador de Justiça Rodrigo Chemim e professor de Processo Penal no UniCuritiba.

“Tornar a lei mais rigorosa é uma resposta rápida e barata, uma política criminal brasileira de longa data, que os teóricos do direito penal estudam profundamente e olham com muitas críticas, porque está comprovado que enquadrar um determinado crime como hediondo não reduz a criminalidade”, explica Lebre. “Para o governo, ao invés de contratar mais agentes, mais policiais, aparelhar melhor, instruir melhor as forças policiais, é muito mais barato e cômodo fazer uma lei, e a população, muitas vezes inadvertida, acaba acreditando nesta falácia”, lamenta.

Crimes hediondos

A categoria de “crime hediondo” surgiu pela primeira vez na legislação brasileira na Constituição de 1988, no inciso XLIII do artigo 5º. Ela não é um novo tipo penal, mas apenas uma roupagem mais rigorosa para tratar de delitos considerados graves e regulamentados na Lei 8.072/1990, além de três outros crimes equiparados nessa classificação - o tráfico de drogas, a tortura e o terrorismo. 

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No início, a lei estabelecia penas duras para os responsáveis por esses crimes. O primeiro deles era o regime fechado em tempo integral, sem direito à progressão da pena para os regimes semiaberto e aberto. Em 2006, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a medida como inconstitucional a partir do princípio da individualização da pena, ou seja, da interpretação de que cada caso tem sua particularidade e, por isso, caberia ao juiz definir a sanção mais justa nas diferentes situações. “Na época, foi uma enxurrada de pedidos de habeas corpus, tinha muita gente presa por crimes de tráfico, estupro, entre outros; soltaram muita gente pelo efeito dessa decisão”, lembra Chemim. 

Ele conta que, para aplacar a insegurança da opinião pública e diferenciar os crimes hediondos dos comuns, já que os responsáveis por esses delitos passaram a não ser mais obrigados a permanecer em regime fechado todo o tempo, os deputados decidiram, então, aumentar para eles o tempo de progressão da pena, em 2007. Pelos crimes comuns, é possível passar do sistema fechado para o semiaberto após cumprir 1/6 da pena e, após o mesmo tempo, para o regime aberto. Com a mudança feita em 2007, a progressão para esses crimes mais graves foi para 2/5 da pena para réus primários e 3/5 para reincidentes. 

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Aplicando essa alteração para o caso do porte de fuzil, se uma pessoa antes fosse condenada a 5 anos de prisão (30 meses) teria a possibilidade de passar para o semiaberto quando tivesse cumprido 1/6 da pena, ou seja, tenha permanecido 10 meses em regime fechado. Dez meses depois, poderia entrar no regime aberto. Agora, como crime hediondo, se for réu primário – algo difícil de acontecer nesses casos, já que raramente alguém entra para o mundo do crime comprando um fuzil ou similar, em geral o ato é consequência de outros cometidos anteriormente –, terá de permanecer dois anos em regime fechado e se for reincidente, três anos. 

Outra alteração sofrida pela lei ao longo do tempo é a possibilidade de liberdade provisória, para responder ao processo em liberdade. Pela norma original dos crimes hediondos, os presos em flagrante não teriam direito à liberdade provisória e responderiam ao processo presos. O STF também entendeu ser inconstitucional essa regra e, agora, criminosos acusados de crimes hediondos e pegos em flagrante podem pedir para aguardar o fim do processo em liberdade, o que o juiz concede sempre que o acusado consiga convencer o magistrado que a merece, por não ofender a ordem pública, com a promessa de que não irá fugir do país ou que contribuirá na instrução do processo, por exemplo.

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