Ainda que desde 2010 o monitoramento à distância esteja regulamentado por lei no Brasil, foi a Operação Lava Jato que voltou os holofotes para as tornozeleiras eletrônicas, depois que figuras como os doleiros Alberto Youssef e Nelma Kodama passaram a “ostentar” o equipamento. O tema passou a ter ainda mais destaque nos últimos dias com a saída do ex-deputado Rodrigo Rocha Loures, que teria furado a fila de Goiás para ter direito ao monitoramento, e com o caso do ex-ministro Geddel Vieira Lima, que foi para prisão domiciliar sem usar tornozeleira. Mas, afinal, quando a Justiça pode determinar que as tornozeleiras sejam utilizadas pelos réus ou condenados?
Advogado e professor de Direito Penal do Centro Universitário Curitiba (Unicuritiba), Gustavo Scandelari aponta que são várias possibilidades, ainda que a legislação –Código Penal, Código de Processo Penal e Lei de Execuções Penais – não elenque todas elas, sendo que os casos mais conhecidos são os de prisão domiciliar.
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Medida cautelar
Em primeiro lugar, é possível o uso de monitoração eletrônica como medida cautelar alternativa à prisão, quando a pessoa está respondendo ao processo e ainda não foi condenada. Nesse sentido, quando o juiz entender que não é necessária a prisão preventiva, ele pode determinar que se use a tornozeleira, que permite um controle sobre o réu.
Situação especial
Depois da condenação, o monitoramento eletrônico pode ser utilizado quando a pessoa está envolvida em alguma situação especial, “como condição de saúde frágil ou idade avançada, que não permite que ela cumpra a pena em um estabelecimento prisional”, explica o professor.
Sem lugar adequado
Outra possibilidade excepcional ocorre quando a pessoa foi condenada a cumprir pena em um regime que não dispõe de vagas na região em que ela está. Se foi condenada a cumprir pena no regime semiaberto, por exemplo, e na localidade não existe estabelecimento adequado, o indivíduo pode ir para a prisão domiciliar e ser monitorado por tornozeleira. É o que se chama de “regime harmonizado”, uma criação jurisprudencial, que ainda não encontra previsão expressa na lei. Ou seja, apesar de não haver uma norma específica para esses casos, as decisões judiciais vêm criando a tradição de decidir nesse sentido.
Sobre o assunto, em 2016 o Supremo Tribunal Federal (STF) aprovou a Súmula Vinculante 56, que prevê que “a falta de estabelecimento penal adequado não autoriza a manutenção do condenado em regime prisional mais gravoso”.
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Saídas temporárias
O também advogado criminalista Adib Abdouni lembra que a tornozeleira também pode ser exigida quando o preso sai da penitenciária por algum motivo, como nas saídas temporárias, popularmente conhecidas como “saidão”, que ocorrem em datas comemorativas como Natal, Páscoa e Dia das Mães. Mas exigir o uso do equipamento não é regra. Atualmente, inclusive, circula no Senado Federal o Projeto de Lei 120/2016, de autoria do senador Davi Alcolumbre (DEM-AP). O texto tem como objetivo exigir que condenados por crime violento – de grave ameaça à pessoa ou por crime hediondo – só terão direito ao “saidão” se utilizarem equipamentos de monitoração eletrônica.
Ainda, pode ser pedido o uso da tornozeleira no âmbito das medidas protetivas da lei 11.340/2006, a Lei Maria da Penha. Nos casos de violência doméstica, a vítima pode pleitear o afastamento do agressor do lar ou de seu local de convivência. Assim como nos “saidões”, porém, o uso da tornozeleira não é obrigatório nessa hipótese.
A respeito da Lava Jato, por mais que a operação tenha colocado a prisão domiciliar e as tornozeleiras eletrônicas em foco, Scandelari alerta que se tratam de casos muito específicos, que devem ser encarados de forma diferenciada dos outros processos penais. “A Lava Jato envolve muita negociação premiada e o réu pode conseguir um acordo para cumprir a pena antes mesmo de sua condenação”. Aí, ele acaba por ficar recolhido em sua própria residência.
Estados em falta e “fura fila”
Só neste ano, ao menos cinco estados brasileiros registraram problemas relacionados à falta de equipamentos: Alagoas, Espírito Santo, Piauí, Goiás e Rio de Janeiro. No Rio, inclusive, desde o final de 2016 é permitido que o próprio condenado adquira a tornozeleira. À época da publicação da polêmica lei, o governador do estado, Luiz Fernando Pezão (PMDB) afirmou que a intenção do projeto era retirar do Poder Público um gasto que poderia ser aplicado em outras áreas.
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Quando não há disponibilidade de aparelhos na localidade onde será cumprida a pena, o juiz pode determinar que consigam de outro estado, “ainda que não seja prática usual”, diz Abdouni. Foi o que aconteceu para que o ex-deputado federal Rodrigo Rocha Loures (PMDB-PR) pudesse deixar a carceragem da Polícia Federal em Brasília (DF). O grande problema no caso de Rocha Loures é que a tornozeleira foi emprestada por Goiás, justamente um dos estados que sofrem com a falta do equipamento.
Questão administrativa organizada em cada estado separadamente, a “fila de espera” das tornozeleiras até pode ser “furada”, dependendo da gravidade da situação do réu. “Uma pessoa com problema de saúde ou um idoso, por exemplo, poderia passar à frente”, afirma Abdouni. Ocorre que Rocha Loures não se encaixa em nenhum caso especial e para o Ministério Público goiano (MP-GO), o fornecimento da tornozeleira ao peemedebista foi irregular.
Outro caso que ganhou a atenção da mídia foi o do ex-ministro Geddel Vieira Lima (PMDB-BA), que deixou o Complexo Penitenciário da Papuda, no Distrito Federal, para cumprir prisão domiciliar em Salvador (BA).
O estado, porém, não dispõe de tornozeleiras – não porque estejam em falta, mas porque nunca fez uso delas. Geddel, então, foi para casa sem monitoração eletrônica. De acordo com a Secretaria de Administração Penitenciária e Ressocialização da Bahia (Seap), 300 tornozeleiras adquiridas por meio de licitação devem ser entregues em breve.
Scandelari explica que o correto seria o cumprimento da prisão domiciliar somente com a tornozeleira, e que nos casos em que não é possível conseguir um equipamento, o juiz fica de “mãos atadas”. Segundo o penalista, a jurisprudência tem entendido que o acusado não pode ser ainda mais penalizado por problemas administrativos do estado.
Monitoração eletrônica em números
O levantamento mais recente do Depen sobre monitoração eletrônica no Brasil é de 2015, quando 18.172 pessoas eram monitoradas no país. À época do estudo, 10 estados ainda não faziam uso das tornozeleiras eletrônicas: Amapá, Bahia, Distrito Federal, Mato Grosso do Sul, Paraíba, Rio Grande do Norte, Roraima, Santa Catarina, Sergipe e Tocantins. De lá para cá, contudo, apenas Amapá, Bahia e Distrito Federal ainda não implementaram efetivamente a alternativa.
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Atualmente, as duas principais empresas do ramo no Brasil – Spacecom e Synergye – afirmam que há cerca de 30 mil pessoas que fazem uso do equipamento. Curiosamente, a Spacecom, líder do mercado, está sediada em Curitiba, berço da Lava Jato. Primeira empresa a desenvolver um sistema de monitoramento eletrônico com tecnologia 100% nacional, ela cresceu 296% entre 2011 e 2015. Em 2016, foi divulgado que a Spacecom vencia aproximadamente 90% das licitações do setor.
Boa alternativa, pouco investimento
Não é novidade que o Brasil tem uma das maiores populações carcerárias do mundo. Com cerca de 622 mil presos, conforme dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), o país perde somente para os Estados Unidos, China e Rússia quando o assunto são pessoas atrás das grades. Nesse sentido, o monitoramento eletrônico seria uma saída para a superlotação das prisões.
Outro ponto a ser levado em consideração seria o dinheiro despendido na alternativa. Estudos do Depen apontam que enquanto um detento demanda de R$ 1,8 mil a R$ 4 mil por mês aos cofres públicos, o custo mensal das tornozeleiras gira em torno dos R$ 300. Ainda assim, os especialistas acreditam que pouco investimento é feito.
Para o professor do Unicuritiba, o monitoramento eletrônico “é uma excelente alternativa para desanuviar os presídios” e funciona bem onde é utilizado, opinião que vai ao encontro da de Abdouni, que acredita que a tornozeleira “ajuda muito, pois é um equipamento que consegue monitorar se a regra está sendo cumprida ou não”.
O que falta, na visão de Scandelari, é investimento adequado por parte do Poder Público e um procedimento mais ágil de licitação para a compra do material. “Mas é um caminho com muito potencial”, finaliza.
Colaborou: Mariana Balan.