Constrangido com sua incapacidade de evitar as piores atrocidades da Europa desde a Segunda Guerra Mundial, o Conselho de Segurança da ONU criou, em 1993, um tribunal para rastrear e punir os responsáveis pela terrível violência contra civis que convulsionou os Bálcãs durante a dissolução da Iugoslávia.
Em seus 24 anos de vida, com atividades finalizadas em dezembro de 2017, o órgão indiciou 161 pessoas, ouviu quase cinco mil testemunhas e se reuniu durante 10.800 dias. Condenou gente de todos os lados do conflito por crimes de guerra e contra a humanidade, embora o maior número tenha sido de sérvios. Seis sérvios bósnios, incluindo o líder político Radovan Karadzic e o comandante militar Ratko Mladic, foram condenados por genocídio, recebendo longas penas de prisão.
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Seu trabalho pioneiro, televisionado, popularizou novos termos, como “limpeza étnica” e “estupros em massa como arma para destruir vidas”, noções conhecidas apenas por peritos, e que são agora amplamente utilizados.
Conforme o tribunal foi ampliando o corpo do direito internacional, que estava basicamente adormecido desde os julgamentos de Nuremberg e de Tóquio após a Segunda Guerra Mundial, uma avalanche de material de estudo foi sendo gerada.
Outras instâncias o seguiram, lidando com Ruanda, Serra Leoa, Camboja e Líbano. Muitos acreditam que ele foi a força geradora da fundação do Tribunal Penal Internacional permanente.
A primeira vez em que chamou a atenção do mundo foi em uma noite de 2001, quando um helicóptero trouxe o homem que até então era o presidente da Sérvia para o pátio da prisão da ONU, perto de Haia. Slobodan Milosevic acabou sendo o primeiro ex-chefe de Estado a comparecer perante um moderno tribunal internacional de crimes de guerra.
Ele morreu de ataque cardíaco na prisão, em 2006, dois meses antes da previsão do fim de seu julgamento. Os promotores levaram a culpa por terem sido excessivamente ambiciosos, com 66 acusações abrangendo três guerras – na Croácia, na Bósnia e no Kosovo – que, segundo eles, foram instigadas por Milosevic.
Porém, seu julgamento revelou arquivos e provas governamentais que contribuíram para uma mentalidade pública diferente. “Quando eu estava na faculdade, era normal que os ditadores se aposentassem no sul da França; hoje, todos meus alunos cresceram em um mundo onde é normal achar que quem comete atrocidades deve ser julgado”, disse Diane Orentlicher, professora de Direito na Universidade Americana de Washington.
História
Quando o tribunal foi criado, a guerra de 1992-95 ainda acontecia, e as perspectivas não eram boas: não havia dinheiro, pessoal administrativo nem investigadores, e foram assumidas tarefas diferentes de tudo o que procuradores ou advogados de defesa já haviam enfrentado em jurisdições nacionais. As provas muitas vezes estavam escondidas em valas comuns secretas, e as testemunhas haviam fugido. As cenas dos crimes estavam cheias de minas terrestres.
“Tudo se parecia um pouco com o velho oeste”, disse Michelle Jarvis, assistente do promotor-chefe, que começou em 1997 como estagiária. Ela se lembra de ter ouvido alguém dizer que “o que fazemos todos os dias, o dia todo, é difícil, não há precedentes, não há respostas prontas”.
Sem uma força policial armada própria, os detetives do tribunal se viravam para encontrar fugitivos ou entregar mandados de prisão; as forças de paz da OTAN disseram inicialmente que efetuar prisões não era parte de sua função.
A política teve um papel importante no processo de levar fugitivos para Haia: os Estados Unidos ameaçaram interromper sua ajuda à Sérvia caso Milosevic não se entregasse. Réus croatas e sérvios bósnios, incluindo Karadzic e Mladic, foram por fim entregues, aparentemente, como condição para a candidatura da nação à União Europeia.
Os primeiros criminosos da Bósnia que chegaram a Haia serviram de teste para novas regras e leis. Os juízes buscaram orientação nos modernos textos das convenções internacionais, que nunca foram usados em julgamentos, e precisaram transformá-las em leis.
“Tudo parecia tão urgente, tão importante. Todos estavam de olho para ver se o tribunal ia decolar, ou se seria apenas um acidente. Não dava para saber; foi tudo uma experiência”, recordou Douglas Stringer, ex-promotor federal americano que chegou em 1997.
Decisões polêmicas
Antonio Cassese, proeminente jurista italiano e primeiro presidente do tribunal que morreu em 2011, não podia falhar. Várias das suas decisões iniciais, a princípio vistas como polêmicas, ampliaram preceitos básicos do direito penal internacional.
Ele determinou que crimes de guerra podem ocorrer não só em conflitos entre as nações, mas também dentro de um país. Em outra decisão, estabeleceu que massacres, torturas e outras atrocidades cometidas por um governo ou um grupo poderiam constituir crimes contra a humanidade, mesmo sem uma guerra. “Tudo se destinava aos tiranos que abusam de seu próprio povo”, disse ele em uma entrevista posterior.
Para vincular políticos às violentas campanhas que haviam planejado de longe, os juízes elaboraram a doutrina da “empresa mista criminosa”, equivalendo à noção de conspiração usada contra o crime organizado.
O tribunal e sua contraparte em Ruanda também criaram precedentes sobre crimes sexuais cometidos em tempos de conflito.
Os juízes do tribunal daquele país disseram que o estupro poderia ser julgado como parte do genocídio. O tribunal da Iugoslávia, que recebeu relatos de mais de 20 mil estupros na Bósnia, foi mais longe, determinando que sua ocorrência sistemática também poderia ser tratada como escravidão, tortura e arma para destruir vidas e, portanto, como crime de guerra.
Jarvis, da promotoria, disse que, das 90 condenações no tribunal da Iugoslávia, mais da metade incluiu abuso sexual.
Críticos insistiram para que a acusação examinasse possíveis crimes da OTAN, que bombardeou alvos civis na Sérvia; os investigadores assim o fizeram, relatando mais tarde que civis foram mortos, mas que não houve cooperação da organização, e que não conseguiram apontar crimes de guerra.
Sem ampla defesa?
O fim do tribunal gerou debates mais abertos sobre seu perfil normalmente reservado. Advogados de defesa disseram ter sido tratados como parentes pobres, não podendo lançar mão da famosa “igualdade de armas”, e que foram oprimidos pelo poder da promotoria.
“Em vez de uma inocência presumida, o que mais ocorreu foi a presunção de culpa”, disse Marie O-Leary, veterana advogada de defesa.
Outra questão sensível envolveu a qualidade desigual dos juízes: quase metade dos que eram apoiados por seus governos e eleitos pela Assembleia Geral da ONU haviam sido diplomatas ou acadêmicos sem experiência em julgamentos, causando às vezes atrasos e frustração.
Wolfgang Schomburg, juiz alemão que já esteve no tribunal, disse que apenas juízes com experiência na corte devem ser admitidos em quaisquer tribunais de crimes de guerra futuros. “Como justificar que os advogados de defesa precisem de sete anos de experiência para comparecer perante este tribunal e os juízes, nada?”, perguntou ele.
Na Sérvia e na Croácia políticos acusaram o tribunal de tendenciosidade, e celebraram os condenados que voltaram para casa como heróis. Até mesmo o comandante croata Slobodan Praljak, que ingeriu cianureto no tribunal, em novembro, depois que sua apelação foi rejeitada, é tido como herói em Zagreb.
Mesmo assim, sob pressão ocidental, câmaras de crimes de guerra agora operam na Croácia, na Sérvia e na Bósnia, julgando casos menores com a ajuda do banco de dados e da jurisprudência do tribunal de Haia.
Hrvoje Klasic, professor de História da Universidade de Zagreb, disse que provavelmente levaria uma geração ou mais até que as pessoas na região aceitem o que aconteceu nas guerras e comecem a acreditar que houve vítimas e crimes em todos os lados, mas que os julgamentos haviam produzido quantidades enormes de provas e revelado arquivos e registros que “historiadores como eu nunca conseguiriam obter de nossos governos”.
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