Diante do tratado internacional firmado entre Brasil e Santa Sé de 2008, o país passou a ter dois regimes matrimoniais diferentes: o civil e o canônico.
O Estado brasileiro, então, passou a reconhecer as sentenças eclesiásticas sobre matrimônio, tal como se fossem uma sentença estrangeira. Isso significa que a pessoa que obtém uma sentença eclesiástica que reconhece a nulidade de seu casamento, tem o direito de ter essa sentença reconhecida pelo Estado, voltando a ter o estado civil de solteira.
É importante ressaltar que a doutrina distingue quatro principais modalidades legislativas no que diz respeito ao regramento do matrimônio civil e religioso:
(i) O casamento religioso obrigatório;
(ii) O casamento civil obrigatório;
(iii) O casamento civil subsidiário - neste sistema, todos batizados eram obrigados a se casar perante a Igreja e se sujeitar à sua jurisdição, apenas os não batizados podiam fazer uso do casamento civil;
(iv) O casamento civil facultativo, no qual as partes podem escolher livremente se querem se casar perante a Igreja ou perante o Estado, reconhecendo este último a validade do casamento canônico, respeitados os requisitos mínimos estabelecidos pela lei. Neste caso, há duas subdivisões:
a) Sistemas em que somente a celebração do casamento é permitida à Igreja, estando toda regulamentação do regime matrimonial disposta de maneira unitária pelo Estado, como no caso do Brasil até 2008.
b) Sistemas em que há dois regimes matrimoniais diferentes: tanto a celebração do casamento e seus requisitos, quanto o casamento como estado/instituição, estão sujeitos à dois regimes distintos. Aqui o estado não reconhece apenas o direito da Igreja celebrar casamentos, mas reconhece a jurisdição da Igreja sobre o regime matrimonial.
Sustento que o Brasil passou a adotar sistema semelhante ao de Portugal após a assinatura do Tratado Brasil-Santa Sé de 2008. Temos agora dois regimes matrimoniais distintos, um canônico e outro civil. O referido tratado passou desapercebido pela doutrina civilista e mesmo o clero não tem lhe dado a devida atenção.
Note-se que o Direito Civil brasileiro prevê dois tipos de casamentos: o casamento civil e o casamento religioso com efeito civil. O que antes era entendido apenas como duas formas de celebração, agora deve ser entendido, para o caso do casamento católico, como dois regimes matrimoniais distintos. Isso porque o tratado com a Santa Sé previu, em seu artigo 12, parágrafo primeiro, que as sentenças eclesiásticas de matrimônio podem ser homologadas como sentenças estrangeiras. Recentemente, dando força ao tratado, o Superior Tribunal de Justiça já homologou uma decisão do Tribunal Eclesiástico de Roma, que confirmou sentença eclesiástica brasileira anulando um casamento.
Mas isso traz outras implicações que não foram ainda discutidas pela doutrina e jurisprudência. Tendo o Estado brasileiro adotado um novo regime matrimonial e passado a reconhecer a jurisdição da Igreja sobre o matrimônio, há ainda como sustentar que o casal eclesiástico pode se divorciar na esfera cível?
Antes mesmo da Concordata com a Santa Sé, era discutível a possibilidade de divórcio do casal eclesiástico, vez que a própria lei do divórcio, de 1977, era clara ao dizer no artigo 24 que o divórcio põe termo somente “aos efeitos civis do casamento religioso”. A Carta Magna de 1988 também é clara ao limitar o divórcio ao casamento civil em seu art. 226, parágrafo sexo.
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Como afirmou Raymundo Candido em texto publicado em 1985, “a verdade nua e crua é que não há ação de divórcio para os casados que fizeram opção pelo casamento religioso com efeitos civis. Podem eles, se motivo tiverem, procurar rescindir os efeitos civis do casamento religioso, em ação declaratória de rescisão desses efeitos. Mas continuarão casados. Permanecerão, porém, convivendo com uma bigamia ‘de fato’, condenada pelas leis eclesiásticas, mas lícita e legítima pela comunidade civil”.
Entretanto, se antes do Tratado com a Santa Sé podia-se argumentar que o Estado desconsideraria o vínculo matrimonial canônico para fins de celebração de novas núpcias, não há mais como sustentar esse argumento diante do Tratado de 2008, o qual é claro o reconhecer o vínculo canônico e a jurisdição da Igreja.
Além da questão envolvendo o Tratado com a Santa Sé, a EC 66 de 2010, que teoricamente introduziu o divórcio direto; a decisão do STF que reconheceu a união estável de pessoas do mesmo sexo; e até as recentes discussões sobre o chamado Poliamor e seu reconhecimento legal, mostram claramente que houve um grande distanciamento entre o conceito de família civil e o da Igreja Católica.
Diferentemente do que ocorreu em Portugal com o golpe republicano, no Brasil o casamento civil foi introduzido praticamente como uma cópia do casamento canônico, vez que foi ausente entre nós qualquer espírito anticatólico.
O casamento civil brasileiro não foi, desse modo, sinônimo de mudança no regime matrimonial, vez que o casamento continuou sendo, “sob outras feições e formas novas, o correspondente do sacramento, não instituído por direito divino, iure divino, mas instituído pelo direito civil: statuitur iure civili”, como asseverou Pontes de Miranda.
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Todavia, por conta do descaso da população pelo casamento civil, a Constituição Brasileira de 1934 reintroduziu o reconhecimento do casamento católico, previsão essa se manteve nas demais constituições e que continua prevista na atual.
Mas por conta da nítida separação conceitual que se deu entre o atual casamento civil e o casamento católico, não há mais como manter os dois tipos sob um mesmo regime legal.
Nos parece evidente que o Brasil passou a adotar, dentro da classificação exposta ao início deste artigo, o sistema de casamento civil facultativo com duplo regime matrimonial, dando plena liberdade para as partes escolherem a qual regime querem se submeter. Um com amplo acesso ao divórcio, às pessoas (talvez mais que duas?) do mesmo sexo, outro tradicional.
Situação que nos parece positiva, vez que as partes poderão livremente escolher a qual regime se submeter, se ao regime do vale tudo, ou ao regime do até que a morte nos separe.
* Caio Martins Cabeleira é doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo e advogado no escritório Martins Cabeleira & Lacerda Advogados.