Um vídeo levantou muita polêmica nos Estados Unidos em maio deste ano. A polícia comunitária algemou um menino de sete anos e o imobilizou com uma mata-leão, depois de atingi-lo com uma arma de choque elétrico. De acordo com testemunhas, o garoto, que tem problemas mentais, estava batendo com a cabeça na parede sem parar. A situação levanta a discussão sobre os limites das ações de agentes públicos na abordagem aos jovens e sobre a proteção especial que a família, a sociedade e o Estado devem dar a crianças e adolescentes.
Segundo Ana Paula Motta Costa, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e especialista em direito da criança e do adolescente, a proteção especial desses jovens justifica-se, no direito brasileiro, pela previsão da proteção integral e da condição peculiar do seu desenvolvimento. “Todos nós nos desenvolvemos ao longo da vida, mas existe fase em que esse desenvolvimento é especial, seja ele psicológico ou físico. Na adolescência, ainda mais que na infância, o sujeito está numa fase crucial para a construção da sua identidade”, explica Ana Paula.
O advogado Jovacy Peter Filho, professor de direito penal da Faculdade de Direito de Vitória (FDV), esclarece que é preciso, diante de situações-limite, ponderar os meios de contenção disponíveis. “Se uma criança ou adolescente que está sofrendo de depressão, por exemplo, ameaça se jogar de um prédio ou de uma sacada, e o agente público, para evitar esse mal maior, praticar alguma lesão, não haverá problema”. O advogado lembra um exemplo comum disso no Brasil, embora trágico: a imobilização de jovens usuários de crack.
Peter Filho ressalva, no entanto, que para saber se a ação foi legítima ou não é preciso observar a proporcionalidade e a razoabilidade das atitudes do agente público. “Tudo que extrapolar a necessidade da intervenção, será um excesso e o agente responderá pelos resultados”, afirma. “Mesmo o excesso culposo poderá redundar em um crime culposo, se houver esta previsão no Código Penal”, completa.
A professora Ana Paula ressalta que todos os direitos garantidos às pessoas pela Constituição Federal devem sê-lo de maneira ainda mais intensa para crianças e adolescentes. “Pode-se usar algema, mas toda vez que não for necessário, então não será regular usar a algema, porque seria uma humilhação do sujeito”, diz.
“Sempre que uma autoridade pública -- que deve representar uma ideia de justiça, de equilíbrio, de certo e errado – interage com o adolescente, ela está transmitindo um determinado valor sobre quem é aquele adolescente e sobre quem são os adultos”, afirma a professora. “A abordagem agressiva, vexatória, ainda mais de quem está desenvolvendo a personalidade, acaba conduzindo a mais violência, porque o sujeito incorpora essa ideia de violência nas relações sociais”, completa.
Quando são os familiares da criança ou do adolescente que têm de intervir em uma situação concreta, de acordo com Peter Filho, os meios de ação também têm de ser proporcionais e razoáveis, e a família deve mostrar que está tomando outras medidas para encaminhar uma solução para o menor de idade.
“Certas medidas têm que ser usadas em situações pontuais, como conter um surto, e logo depois tem que dar o encaminhado devido para o caso”, afirma. “Chamar uma intervenção médica, comunicar a um grupo de apoio, chamar o conselho tutelar para ajudar”, exemplifica Peter Filho.
Nem sempre familiares e agentes públicos imobilizam jovens por um surto, mas pelo conflito com a lei. De acordo com o último relatório do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), publicado este ano, o Brasil tinha 24.628 adolescentes e jovens entre 12 e 21 anos em restrição e privação de liberdade no final de 2014.
A professora Ana Paula destaca que a tendência é que o número de adolescentes internados tenha crescido desde então, porque ele vem crescendo nas últimas décadas, desde a promulgação da Lei 8.069/1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
“O tráfico de drogas cresceu muito e propiciou um contexto em que os adolescentes estão envolvidos em violência, mas o aumento das internações é também reflexo da forma como o Estado vem resolvendo o problema dos jovens. Essa compreensão jurídica oscila conforme muda o juiz ou o promotor, por exemplo”, afirma. “A evolução dos adolescentes dentro do sistema varia de acordo com a qualidade do trabalho que se faz em uma cidade ou em um estado”, destaca.
O ECA surgiu em 1990 para adaptar ao Brasil os novos padrões internacionais de tratamento aos menores de idade, de acordo com a Convenção sobre os Direitos das Crianças, do mesmo ano. O país também é signatário das Resoluções da Assembleia Geral da ONU que tratam do tema: as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça de Menores (Regras de Beijing), de 1985; os Princípios Orientadores das Nações Unidas para a Prevenção da Delinquência Juvenil (Princípios Orientadores de Riad), de 1990; e as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Proteção dos Jovens Privados de Liberdade, também de 1990.
Quem explica o atual sistema brasileiro, é a professora Marília Montenegro Pessoa de Mello, que fez seu mestrado sobre a situação dos meninos internados e coordenou uma pesquisa do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) sobre a situação das meninas internadas no país.
Em caso de conflito com a lei, explica Marília, o ECA prevê para as crianças, que têm até 12 anos, a aplicação de medidas protetivas, como retirá-las dos pais ou colocá-las em outra família, além da responsabilização dos próprios pais. Já os adolescentes, que têm entre 12 e 18 anos, podem ser responsabilizados por qualquer conduta descrita no Código Penal e internados, por até três anos, no sistema socioeducativo. Assim, jovens de até 21 anos podem ficar internados nesse sistema.
“Nós não falamos mais em direito penal juvenil, porque o Brasil optou, na década de 1990, por afastar crianças e adolescentes do sistema punitivo, como fazem muitos países europeus. Nos Estados Unidos, a lógica é diferente, principalmente porque cada estado tem autonomia para criar sua legislação penal”, destaca Marília.
Até 2014, dos 24.628 adolescentes que cumpriam medida no Brasil, 66% estavam em internação, 22% em internação provisória – que corresponde à prisão provisória dos adultos, embora com um prazo máximo de 45 dias determinado por lei – e 9% em semiliberdade.
A internação, que tem como objetivo reeducar o jovem e integrá-lo à sociedade, é entendida como medida de exceção pelo ECA e deve ser determinada pelo juiz em último caso. Na semiliberdade, o adolescente dorme em casa, mas passa o dia em um local de apoio. Além dessas hipóteses, o juiz também pode determinar uma advertência, a prestação de serviços à comunidade ou a liberdade assistida, em que jovem pode frequentar locais como estágio ou escola acompanhado de um adulto.
“Na prática, os nossos estabelecimentos são um caos”, afirma Marília. “No caso dos meninos, os estabelecimentos são uma máquina de matar adolescentes ou de entregá-los ao sistema prisional (...) No caso das meninas, como entre as mulheres presas, prevalecem crimes menos violentos, como o tráfico de drogas e o furto. As mulheres são presas por muito menos que os homens”, diz ainda.
“Mas a maior descoberta do nosso relatório foram duas coisas: primeiro, a quantidade de relatos de crimes sexuais que essas meninas sofrem ao longo da vida. Muitas estão presas, inclusive, porque praticaram um homicídio contra quem as violentou durante muitos anos, como pais e irmãos (...) Segundo, entre as medidas socioeducativas das meninas prevalecem coisas como lavar, passar, fazer maquiagem, reforçando o papel doméstico das mulheres”, resumiu Marília.
Para a professora Ana Paula, o principal gargalo das políticas socioeducativas no Brasil é a falta de continuidade entre governos e a instabilidade dos programas. “Houve avanços e retrocessos desde a promulgação do ECA. Todo governo avança em alguns pontos, mas retrocede em outros. Não há no Brasil, como nos Estados Unidos, uma política de Estado sobre o tema, que tenha continuidade para além dos governos”, diz.
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