Imagine que um homem entra num tribunal e promete dizer “minha verdade, toda a minha verdade e nada mais do que a minha verdade”. Imagine a incredulidade dos presentes quando, por qualquer motivo, ele dá um testemunho inacreditavelmente falso. Imagine seu desalento quando o juiz explicar que todas as provas seguintes, sobretudo o interrogatório, devem suportar a “verdade” do homem, e quando ele orientar os membros do júri de que eles também devem reafirmar essa “verdade”.
“Seja você. Viva sua verdade. E saiba que a cidade de Nova York estará ao seu lado”, disse o prefeito Bill de Blasio (Partido Democrata) a uma multidão em polvorosa ano passado. Ele se referia a um projeto de lei – agora já aprovado e sancionado – que permite aos moradores da cidade mudar o sexo em sua certidão de nascimento para M, F ou, se preferirem, X – o gênero neutro –, a fim de adequar o status legal deles à sua “identidade sexual”.
Ao contrário do sexo biológico, que é um fato empírico e objetivo, a “identidade sexual” – a sensação de ser homem, mulher ou qualquer outra coisa – é algo totalmente subjetivo. É um sentimento. Não se diz isso para desdenhar ou ferir os sentimentos de indivíduos que sentem uma desconexão entre o sexo de nascimento e o senso de identidade de gênero deles (isto é, “disforia de gênero”).
O objetivo é tão-somente insistir que os registros públicos, como as certidões de nascimento, não devem servir para afirmar ou expressar nossos sentimentos – por mais intensos e incômodos que eles talvez sejam – e sim para documentar a verdade, e não sua ou minha verdade, para fins práticos e jurídicos.
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Além disso, esses sentimentos evasivos, complicados e multifacetados que agora formam a abrangente teoria da “identidade de gênero” não são, ao contrário do que geralmente sugere o New York Times, o resultado de um avanço científico recente. A ênfase na subjetividade é resultado de uma mudança nos paradigmas culturais e políticos do século XX que influenciaram a psicologia.
Helen Joyce, do The Economist, resumiu as origens teóricas da “identidade de gênero” num recente texto para a publicação Quillette. Ela explica que o uso terapêutico das causas primordiais – em outras palavras, o porquê de uma pessoa querer “transitar” de um gênero para outro – foi canalizado de forma simplista em “duas linhas de raciocínio que tiveram origem nos Estados Unidos dos anos 1950” e que “se fundiram numa única narrativa dominante cinquenta anos mais tarde”.
Uma dessas linhas de raciocínio nasceu de Robert Stoller, um psicanalista que trabalhava com transgêneros. Ele cunhou a expressão “identidade de gênero”, que significava “um sistema complexo de crenças sobre si mesmo: um senso de masculinidade e feminilidade”. Ele não explicou como isso se formava (ainda que, como um psicanalista tradicional, ele acreditasse que, se era uma neurose, então a culpa provavelmente era da mãe).
A outra linha de raciocínio nasceu de John Money, um sexólogo que dava ênfase ao que ele chamava de “funções de gênero”, compostos por “todas as coisas que uma pessoa diz ou faz para se exibir como menino ou homem, menina ou mulher”. Por acreditar que essas coisas são maleáveis na infância, ele recomendava que bebês meninos nascidos com genitais anormais ou submetidos a circuncisões malfeitas passassem por uma cirurgia para que a anatomia deles se parecesse com a feminina e para que fossem criados como meninas.
Durante anos, Money citou resultados como prova de que as funções de gênero não eram inatas. Na verdade, a cobaia mais conhecida de sua teoria se mostrou um trágico fracasso. A criança, David Reimer, se transformou numa menina estranha e infeliz, e voltou a ser menino na adolescência, depois de descobrir a verdade. Ele cometeu suicídio em 2004, depois de toda uma vida de depressão.
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Essa é apenas parte da história, claro. Porque depois vieram os pós-modernistas, pós-estruturalistas e relativistas defendendo a verdade subjetiva, os provedores dos grupos acadêmicos ininteligíveis do anti-iluminismo e da anticiência. Uma dessas pensadoras foi Judith Butler, cuja teoria do “gênero performático” reuniu a “identidade de gênero” ao sexo, levando os dois ao absurdo. Sobre “gênero”, escreveu Butler:
Gênero é a estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos dentro de um limite regulatório rígido que se cristaliza ao longo do tempo para gerar a aparência de substância, de um tipo natural de ser.
Note que Butler usa o verbo “ser”, e não “fazer”, o que lembra o “seja o que você é”, e não o “faça o que você é” do prefeito de Blasio. Isso é estranho. Se a “identidade de gênero” é uma exibição social, então uma “identidade de gênero” atípica não seria nada além de excentricidade e, portanto, não estaria sujeita a qualquer intervenção médica ou jurídica. “Faça o que você é” bastaria. Mas daí Butler fala sobre “sexo”:
Se o caráter imutável do sexo é contestado, talvez essa instituição chamada “sexo” seja culturalmente construída como o gênero; na verdade, talvez isso já fosse o gênero, com a consequência de que a distinção entre sexo e gênero no fim não distingue nada”.
Mas qual prova Butler apresenta de que o sexo não é imutável? Ela se refere à existência de distúrbios do desenvolvimento sexual (DDS), como condições “intersexuais”? Porque, se sim, ela está mentindo: pessoas com DDS podem ter genitais ambíguos, mas, como afirma Joyce em seu texto, eles raramente têm dúvida quanto à sua identidade de gênero. Há, claro, o caso distinto da disforia de gênero (DG). Mas, assim como a maioria das pessoas com DDS não sofrem de disforia de gênero, a maioria das pessoas com disforia de gênero não tem DDS.
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Ao contrário, como sugeriram especialistas do Boston Children’s Hospital, uma parte significativa das pessoas em desconformidade com o gênero têm deficiências de desenvolvimento ou problemas comportamentais (como ansiedade, depressão, TDAH ou autismo). O “contágio social”, enquanto isso, ajuda a explicar o novo subgrupo de adolescentes autoidentificados, de acordo com Lisa Littman, da Brown University. Apesar de serem necessárias mais pesquisas, até aqui a causa primordial da disforia de gênero parece ser mais social e psicológica do que biológica. De qualquer forma, o sexo é biológico; é simplesmente errado misturá-lo à “identidade de gênero” ou sugerir que ele possa ser “culturalmente construído”.
Antes de 2014, Nova York permitia que se mudasse o “gênero” na certidão de nascimento somente se o indivíduo em questão tivesse passado por uma “cirurgia de redesignação de gênero”, um procedimento descrito com mais precisão como “cirurgia de mudança de sexo”, apesar de isso não ser totalmente verdade, uma vez que o sexo não pode ser mudado.
Essa situação anterior foi uma tentativa de acomodar os indivíduos raros que, depois de uma cirurgia, se pareciam mais com o sexo oposto e que, para se integrar socialmente, era melhor que fossem legalmente definidos como tal. Mas o gênero se misturou à identidade de gênero, que então se confundiu com o sexo. “A verdade” foi substituída pela “minha verdade”. Depois de 2014, o município passou a exigir apenas um atestado médico. Hoje, apenas a autodeclaração basta.
Claro que o motivo verdadeiro por trás da mudança nas exigências para se pedir alterações na certidão de nascimento foi o fato de que a cultura de uma forma geral reconheceu que o sexo tem sérias implicações.
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É relevante, por exemplo, o fato de pessoas com “corpo masculino” poderem competir legalmente em esportes femininos ou ocupar todos os espaços das mulheres. No que diz respeito ao cumprimento da lei, é relevante o fato de tais pessoas poderem revistar intimamente suspeitas mulheres, assim como é relevante o fato de eles serem encarcerados em prisões femininas. É relevante o fato de adolescentes com corpos masculinos poderem tomar banho com meninas ou dormir no mesmo quarto delas nos passeios escolares. E é relevante para o feminismo, cuja própria base histórica se baseia em direitos fundamentados no sexo.
Deve-se dizer que Nova York não está sozinha nessa nova fronteira jurídica. Califórnia, Oregon e Washington têm diretrizes semelhantes, assim como Nova Jersey terá em fevereiro. E, no governo federal, a Lei da Igualdade – que criaria uma emenda à legislação dos direitos civis para incluir explicitamente a “identidade de gênero” como característica a ser protegida – está nos planos dos deputados democratas para uma sessão futura no Congresso.
A era da “identidade de gênero” como conceito legal, com seu ataque à verdade, está apenas começando.
* Madeleine Kearns é bolsista William F. Buckley em jornalismo político no National Review Institute. Ela nasceu em Glasgow, Escócia.