Após a queda do Muro de Berlim, 30 anos atrás, a polícia secreta da Alemanha Oriental tentou desesperadamente destruir milhões de documentos que revelavam o alcance surpreendente da vigilância generalizada usada para controlar os cidadãos.
Quando os trituradores de papel disponíveis começaram a emperrar ou quebrar, os agentes da Stasi passaram a rasgar os documentos à mão, colocando-os em sacos para depois serem queimados ou destruídos. Mas o esforço foi interrompido prematuramente quando grupos de cidadãos invadiram e ocuparam os escritórios da Stasi para preservar as evidências.
Três décadas depois, nas mesmas salas atrás da fachada cinzenta da antiga sede da Stasi, Barbara Poenisch e nove colegas arquivistas estão tentando recompor esses documentos e a história. Poenisch diz que esse é "um grande jogo de quebra-cabeça". Mas, no ritmo atual, ainda há décadas de trabalho pela frente.
Os arquivistas reconstruíram mais de 1,5 milhão de páginas contidas em 500 sacos nos últimos 20 anos. Ainda existem cerca de 15.500 sacos a mais, armazenados em Berlim e em locais no leste da Alemanha.
Um arquivista pode levar até um ano e meio para reconstruir os papéis de um único saco, dependendo de quão finos são os pedaços rasgados dos documentos. Tentativas de acelerar o processo com tecnologia digital não avançaram. O trabalho meticuloso, realizado à mão, continua em meio a controvérsias sobre o futuro dos arquivos da Stasi.
O parlamento alemão votou neste ano para transferir o controle dos arquivos para os Arquivos Federais, com promessas de investimentos em preservação e digitalização. Alguns historiadores e ex-opositores do regime criticaram a medida, dizendo que ela é uma tentativa de colocar uma pedra na história e levantando preocupações de que os arquivos se tornem menos acessíveis.
Todo alemão tem o direito de ver os registros que o Ministério da Segurança do Estado, como a Stasi era oficialmente conhecida, reuniu sobre eles. Mais de 3 milhões de pessoas se inscreveram para fazê-lo.
Sociedade vigiada
A agência usou dezenas de milhares de funcionários e uma vasta rede de informantes para monitorar todas as facetas da sociedade, fazendo com que muitos alemães orientais vivessem aterrorizados. Ela mantinha arquivos sobre 5,6 milhões de pessoas.
Páginas reconstruídas dos arquivos da Stasi lançaram luz sobre as investigações da Stasi sobre um criminoso de guerra nazista e sobre as redes de paz tanto na Alemanha Oriental quanto na Ocidental.
Para Poenisch, é um documento mais pessoal que permanece em sua mente: uma carta de uma mãe que implorou às autoridades que libertassem seu filho preso.
Poenisch espalha fragmentos de papel sobre uma mesa. O saco em que ela trabalha é da Abteilung N (Divisão N), responsável pela comunicação dentro do aparato estatal e com países amigos.
Um memorando de 1º de outubro de 1986 relata que a situação política na Alemanha Oriental é "calma e estável… Não houve eventos significativos no setor econômico ou de transportes". Outro memorando, de abril do mesmo ano, descreve um plano de longo prazo para que a Stasi acompanhasse os avanços tecnológicos. O objetivo era alcançar uma "rede de inteligência digital uniforme e integrada além do ano 2000".
Trabalho manual
No ano de 2019, o projeto de reconstituição dos documentos é surpreendentemente de baixa tecnologia.
Há precedentes para a reconstituição de documentos fragmentados. Em meados da década de 1980, o Irã reconstruiu e publicou relatórios de inteligência e relatos operacionais que foram destruídos com um triturador quando estudantes militantes iranianos assumiram o controle da Embaixada dos EUA em Teerã.
Mais recentemente, programadores na Califórnia apoiaram o desenvolvimento de software que possa fazer o que os iranianos fizeram à mão.
Mas o projeto Stasi não tem tecnologia para lidar com material triturado, disse Ute Michalsky, chefe do departamento de reconstrução.
O software "E-puzzler", desenvolvido por pesquisadores do Instituto Fraunhofer de Berlim, parecia promissor. Ele deveria combinar fragmentos digitalizados com base na cor do papel, fontes, formas e outros detalhes. Mas acabou consumindo mais tempo do que o esforço manual e não foi usado nos últimos dois anos. O governo alemão dedicou 2 milhões de euros para aprimorar a tecnologia de digitalização.
Os arquivistas dizem que não tentam juntar material rasgado em mais de oito partes, embora esses possam ser aqueles que a Stasi estava mais interessada em esconder.
"Às vezes tenho a sensação de que eles sabiam exatamente o que rasgar", disse Poenisch. "Coisas sem importância só recebem um único rasgo. Mas, quanto mais importante, menores são os pedaços."
Poenish diz que o trabalho laborioso nunca é monótono. "A responsabilidade é alta", disse ela. "Todo documento pode ser importante."