Milhares de chilenos voltaram às ruas de Santiago nesta segunda-feira (21) dando início à segunda semana de protestos contra as pressões do custo de vida e a desigualdade de renda.
Pelo menos 11 pessoas morreram, 200 ficaram feridas e mais de 1.500 foram detidas, quando a nação de 18 milhões de habitantes, por muito tempo um oásis de estabilidade e prosperidade na América do Sul, tornou-se o mais recente país latino-americano a entrar em convulsão social.
Os manifestantes convocaram uma greve geral na segunda-feira; O presidente Sebastián Piñera disse que o país estava em guerra. Um estado de emergência continuou e as autoridades declararam mais toques de recolher. Mas após um fim de semana sangrento, alguns serviços públicos voltaram a operar e algumas empresas reabriram.
A diretora da comissão de direitos humanos da ONU, Michelle Bachelet, pediu na segunda-feira por diálogo, investigações independentes e o fim da "retórica inflamatória".
"Estou profundamente perturbada e triste por ver violência, destruição, mortes e feridos no #Chile", tuitou Bachelet, antecessora de Piñera como presidente da nação andina. "Peço ao governo que trabalhe com todos os setores para encontrar soluções para lidar com as queixas e trazer calma. Peço a todos que planejam participar dos protestos que façam isso de maneira pacífica".
Enfrentamentos
As manifestações lideradas por jovens, desencadeadas na semana passada por um aumento nas passagens de metrô na capital, cresceram e se espalharam mesmo depois que Piñera rescindiu o aumento da tarifa. Os manifestantes fecharam o transporte público, saquearam supermercados e farmácias e incendiaram estações de metrô e prédios do governo.
Piñera, que retornou à presidência no ano passado depois de um mandato entre 2010 e 2014, enviou mais de 10.000 soldados na maior operação desde a ditadura de Augusto Pinochet, mais de três décadas atrás. As forças de segurança dispararam bombas de gás lacrimogêneo e balas de borracha contra a multidão.
Três civis morreram na noite de domingo, disseram as autoridades. Um foi baleado; dois morreram em um incêndio em um supermercado. Cinquenta agentes de segurança ficaram gravemente feridos.
"Estamos em guerra contra um inimigo poderoso, disposto a usar a violência sem limites", disse Piñera em um discurso transmitido pela televisão na noite de domingo.
Mas na segunda-feira de manhã, o líder das forças armadas tentou recuar dessa declaração. "Não estou em guerra com ninguém", disse o general Javier Iturriaga a jornalistas.
O caos segue protestos contra austeridade e corrupção no Haiti, Equador, Peru, Argentina e Honduras, entre outros países. Mas o Chile deveria ser diferente. O país lidera a América do Sul em praticamente todas as listas: PIB per capita, Índice de Desenvolvimento Humano da ONU e vários rankings de liberdade.
"Todo mundo que acompanha a América Latina está assistindo isso e dizendo: 'Meu Deus, o Chile também?'", comentou Brian Winter, vice-presidente de políticas da Sociedade das Américas / Conselho das Américas.
Por que os chilenos estão protestando?
O aumento de 4% nas tarifas do metrô provocou pequenas manifestações na segunda-feira passada. Metade dos trabalhadores do Chile ganha US$ 550 (cerca de R$ 2.270) por mês ou menos, segundo o instituto nacional de estatística, tornando o transporte público uma despesa significativa para muitos que vivem e trabalham na capital. No final da semana passada, o movimento se transformou em manifestações massivas contra o aumento do custo de vida e um modelo econômico que os chilenos indignados dizem que proporciona crescimento desigual.
A expansão constante nas últimas duas décadas deu à nação a maior classe média e uma das mais baixas taxas de pobreza da região. Mas a alta desigualdade permaneceu praticamente a mesma, de acordo com o Banco Mundial.
Os manifestantes reclamam dos altos custos de educação e assistência médica particulares, do aumento do custo do serviço público e da redução das aposentadorias. Em junho, o preço da eletricidade subiu 10%.
"Há mais de uma década, estudos alertam para a crescente frustração com as condições de vida no Chile", disse Jorge Contesse, professor de direito da Universidade Rutgers. "No entanto, continuam dizendo que isso era imprevisível".
"O Chile é governado por uma constituição criada sob a ditadura e que - apesar de reformas significativas - deixou a infraestrutura política e jurídica fundamental sem modificações e sem resposta às demandas de milhares, senão milhões, de chilenos".
Alguns estão indignados com Piñera, um milionário formado em Harvard que alguns dizem ser desconectado da realidade da população. Muitos se sentem presos pela combinação de custos crescentes e desaceleração econômica.
"A raiva que mantém as pessoas nas ruas é contra um modelo que privatiza e lucra com todos os aspectos de nossa vida", tuitou Emilia Schneider, chefe da Federação de Estudantes da Universidade do Chile. "O aumento das passagens foi a gota d'água que fez o copo transbordar". Ela acrescentou que nenhum governo anterior foi capaz de resolver o problema.
Quem está protestando?
Tudo começou com estudantes universitários, que invadiram estações de metrô na semana passada sem pagar, gritando palavras de ordem e pichando paredes. Os protestos continuam sendo dominados por estudantes, mas chilenos de todas as idades, trabalhadores e profissionais se juntaram a eles. Políticos da oposição também participam.
Patricio Navia, cientista político da Universidade de Nova York, destaca o afastamento da classe média. "O governo de Piñera sempre se preocupou em reduzir a pobreza e também elaborou políticas que ajudam os ricos, então a classe média se sente abandonada", disse ele. "A classe média está crescendo no Chile, mas com uma economia em desaceleração, eles sentem que foi oferecido a eles um caminho para a terra prometida mas eles nunca tiveram permissão para entrar".
Os manifestantes têm como alvo o transporte público. Pelo menos 16 ônibus e oito estações de metrô foram queimados e o serviço foi suspenso. O gerente geral do Metrô de Santiago, Rubén Alvarado, disse no domingo que as perdas chegarão a "muito mais de US$ 200 milhões".
Vários voos foram cancelados no Aeroporto Internacional de Santiago no fim de semana. Mais de 5.000 pessoas dormiram no aeroporto no sábado à noite. Mais de 20.000 casas em Santiago não tinham eletricidade no domingo e 152 semáforos foram danificados.
Devido aos toques de recolher na capital chilena, o grupo Latam Airlines cancelou 124 voos e reprogramou outros quatro. Segundo site da Latam, no domingo, a empresa deixou de operar três voos entre Santiago e o Aeroporto de Galeão (RJ) e, nesta segunda-feira, dois voos entre a capital chilena e o Aeroporto de Guarulhos (SP) não decolaram.
A chilena low cost Sky Airline, que estreou no Brasil no ano passado, cancelou dois voos entre o Rio e Santiago e, de acordo com seu site, dois voos entre a capital chilena e São Paulo tiveram alteração nos horários. Já a Gol informou que, devido às greves chilenas, alguns de seus voos podem sofrer alterações nos horários de embarque e desembarque.
Na segunda-feira, alguns serviços foram restaurados. O ministro da Energia, Juan Carlos Jobet, disse a jornalistas que 76 postos de gasolina foram destruídos no fim de semana, mas "não havia problema" com a disponibilidade de combustível na segunda-feira. Ele disse que mais de 99% dos chilenos voltaram a ter eletricidade.
Como o governo respondeu?
Piñera, eleito presidente no ano passado depois de ocupar o cargo de 2010 a 2014, declarou estado de emergência em seis cidades no sábado, restringindo os direitos de movimento e de associação por 15 dias. Os militares declararam toque de recolher durante a noite em três cidades. As forças de segurança dispararam bombas de gás lacrimogêneo e balas de borracha contra os manifestantes; vídeos compartilhados nas mídias sociais mostram manifestantes cuidando de companheiros feridos.
Piñera disse no sábado que o aumento do preço do metrô seria revertido e pediu por diálogo. Líderes estudantis e políticos da oposição rejeitaram o pedido até que o estado de emergência fosse cancelado e os soldados saíssem das ruas.
Piñera se reuniu no domingo com líderes da Câmara dos Deputados, do Senado e da Suprema Corte. O objetivo, segundo ele, era buscar maneiras de "reduzir desigualdades e abusos excessivos que nossa sociedade continua enfrentando". Ele previu que a segunda-feira seria um "dia difícil". Ele disse que aqueles que causam violência "têm um nível de logística característico de uma organização criminosa".
"Somos contra um inimigo poderoso que não respeita ninguém", afirmou. "Que está disposto a usar a violência sem limite, mesmo quando isso significa perda de vidas humanas".
Ele fez uma distinção entre manifestantes radicais e aqueles que estavam nas ruas para exigir melhores condições de vida. "Compartilhamos muitas de suas preocupações", disse ele. "Peço que nos unamos nesta batalha que não podemos perder."
Bachelet disse que qualquer estado de emergência "deve ser excepcional e baseado na lei". "Há acusações perturbadoras de uso excessivo da força pelas forças de segurança e armadas, e também estou alarmada com relatos de que alguns detidos tiveram acesso negado a advogados, o que é direito deles, e que outros foram alvos de maus tratos enquanto estavam detidos", disse ela.
Não há a expectativa de que os protestos ameacem a permanência de Piñera no poder antes do fim de seu mandato em 2022.
Por que a América Latina está em erupção?
Como no Chile, manifestantes no Equador e na Argentina conseguiram forçar líderes a fazer concessões, o que, segundo analistas, provavelmente incentivará mais protestos. O crescente acesso às mídias sociais também tem incentivado os movimentos.
Mas, por trás de tudo, analistas dizem que há expectativas não atendidas, após o crescimento durante o boom das commodities das décadas de 1990 e 2000 ter estagnado na última década, à medida que os preços globais caíram, provocando frustração não apenas com os líderes políticos, mas também com todo o sistema econômico e democrático.
A taxa de crescimento anual do PIB da América Latina aumentou de 0,3% em 1990 para quase 6% em 2010, segundo o Banco Mundial. Mas desde então encolheu mais rápido que a média global, para 1,4% em 2018.
Enquanto isso, a confiança no sistema político chegou ao ponto mais baixo. O instituto de pesquisas Latinobarometro revelou que menos de 25% da população da região está "satisfeita com a democracia em seu país".
"Como a economia desacelerou na última década em toda a região, as pessoas não estão vendo suas vidas melhorar tanto quanto esperavam e estão atacando seus governos e o sistema como um todo", disse Winter.
Com a frustração crescente contra líderes de centro-direita no Chile, Equador e Argentina, ele prevê um apoio crescente a esquerdistas.
"É como assistir a um peixe se debatendo em cima da mesa", disse Winter. Ninguém é realmente capaz de dar às pessoas o que elas querem, então elas elegem alguém do outro lado do espectro político.
"Ou as pessoas têm expectativas irreais ou ninguém explora reformas que realmente poderiam colocar a América Latina de volta no caminho do crescimento", disse ele. "Eu acredito que é o segundo caso."
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