Mais que a eleição de Donald Trump, o Brexit, tanto temporalmente quanto didaticamente, representa a pedra angular de uma recente virada geopolítica que tem alterado substancialmente os rumos da História contemporânea. Novas forças conjugam-se em um contexto intensamente turbulento. São os ingleses os pioneiros - big surprise - dessas transformações.
Em 1993, no Reino Unido, foi fundado o UK Independence Party (UKIP - Partido da Independência do Reino Unido), fundado pela antiga Liga Antifederalista. Seu principal objetivo, obviamente, era a desvinculação nacional da União Europeia e, consequentemente, a retomada da soberania britânica.
Provavelmente, um dos momentos de maior destaque do partido ocorreu quando Nigel Farage, principal líder do movimento, confronta, ao melhor estilo Winston Churchill, o então presidente do Parlamento europeu. Além de hilária, a ácida fala do britânico elucida com clareza o euroceticismo do partido e de outros tantos políticos e associações na Europa. Farage, objetivamente, questiona Herman van Rompuy, mandatário da União Europeia: “Quem é você? Nunca ouvi seu nome. Ninguém na Europa ouviu falar de você! Quem votou em você? E qual mecanismo os povos da Europa possuem para removê-lo do poder?”.
Em poucas palavras, Farage trouxe à luz a essência antidemocrática da famigerada governança global. Afinal, como garantir o exercício político representativo quando as tomadas de decisão ocorrem em instituições completamente desligadas da legitimação democrática? Preto no branco, como garantir a histórica soberania nacional? Que voz os 73 deputados do Reino Unido - assim como a população que representam - possuem frente aos 678 outros membros do Parlamento Europeu? Neste formato, como evitar que a política europeia mergulhe em um oceano de burocracias e seja regida obscuramente por poderosos lobbies, burocratas ou grupos de interesse específicos? O hoje ameaçado Brexit tem como alicerce tais questionamentos, receios e discordâncias.
Cabe ressaltar: o multilateralismo, o governo transnacional, é feito através de acordos, ou seja, há a possibilidade de saída, rescisão, desde seu firmamento. Trata-se, contudo, de um argumento capcioso. Retirar-se de qualquer acordo internacional demanda alto capital político, profundas habilidades diplomáticas e de articulação. Sanções, multas, penalidades, burocracias e antipatias são as principais decorrências. Basta observar, por exemplo, o interminável processo do Brexit ou a retirada americana do TTP e do Acordo de Paris. Não é tão fácil quanto aparenta.
Surge então o questionamento: quais são as causas de tal ceticismo sobre o multilateralismo? São várias as respostas, mas a principal delas reside na constatação objetiva de que a maioria dos acordos dessa categoria é espaço de efetivação de poderosos lobbies econômicos regidos por interesses próprios.
Como é amplamente conhecido, o comportamento de agentes políticos nas democracias representativas (indivíduos responsáveis pela composição e assinatura de acordos e tratados) também é pautado, grosso modo, por tais grupos de interesse, costumeiramente descolados de necessidades ou demandas nacionais/regionais. Logo, são raras as ocasiões em que tratados e acordos internacionais são submetidos ao escrutínio público, quiçá ao legislativo.
Esta imposição vertical geralmente transcorre inconteste socialmente, mascarada por idealismos genéricos como o livre-mercado ou a integração regional. Portanto, a dificuldade no abandono ou retirada de tais acordos nada mais é que um mecanismo estratégico de blindagem contra eventuais contextos políticos desfavoráveis.
O NAFTA (Tratado Norte-Americano de Livre Comércio, composto por EUA, México e Canadá) é, provavelmente, um dos melhores exemplos sobre o tema. Na época de sua assinatura (1994), durante o governo do democrata Bill Clinton, foi tratado como um gigantesco passo para a América. A pergunta que não foi feita: qual América? 24 anos depois, são palpáveis as mazelas sociais decorrentes, principalmente na região tradicionalmente conhecida como Manufacturing Belt (cinturão da manufatura), no Nordeste do país, na qual surgiram e desenvolveram-se algumas das principais indústrias do país, responsáveis por décadas de pujança econômica e prosperidade. Hoje, o local é conhecido como Rust Belt, o cinturão da ferrugem, alusão ao massivo abandono industrial rumo ao México, fonte muito mais econômica de matéria-prima e mão de obra, além de outros incentivos.
O oásis de novos lucros, contudo, resultou na demissão e desemprego de milhões de trabalhadores, diretos ou indiretos. É evidente, nesse sentido, que a América citada constitui apenas os grandes fundos e conglomerados, não o ex-funileiro da General Motors ou da Ford.
Generalizar, ao ponto de abordar nações como donas de interesses homogêneos, é, provavelmente, o principal erro de analistas e cientistas políticos nos últimos anos, levando assim ao ridículo de análises furadas e profunda incompreensão das dinâmicas contemporâneas, como na eleição americana, na qual pouquíssimos previram a eleição de Donald Trump - um deles é o excelente Filipe Martins, que também escreve aqui na Gazeta. Ao contrário, a tese majoritária entre especialistas era de uma esmagadora vitória de Hillary Clinton. Nada como um dia após o outro.
Por sua postura, o presidente americano é comumente adjetivado como populista, nacionalista e avesso à globalização, anacronismos estes completamente desconexos da realidade. Como pode Donald Trump, proprietário de inúmeros empreendimentos multinacionais, neto de escoceses, ser nacionalista, contrário ao processo de globalização?
Qual a semelhança entre o americano e Getúlio Vargas ou Juan Domingo Perón, estes sim populistas? Aos desavisados, tratam-se de perguntas retóricas. Donald Trump, assim como o britânico Nigel Farage, a francesa Marine Le Pen e os italianos Liga Norte e Movimento Cinco Estrelas têm em comum não é, de forma alguma, populismo ou nacionalismo, mas sim diferentes tonalidades de soberanismo. Trata-se, nesse sentido, de uma recente perspectiva política popularmente legitimada, da qual emanam profundas rejeições ao multilateralismo (econômico, político e social) e à formatação da diplomacia contemporânea, fenômenos avessos aos Estados Nacionais, à tradição ocidental, à soberania popular e às estruturas republicanas.
Ao configurar-se como antagônico ao jogo político multilateral pós-Guerra Fria, o movimento soberanista opôs-se, logicamente, aos poderosos grupos beneficiados por tal conjugação. No curto espaço temporal entre o plebiscito britânico e a eleição americana, nasceu uma sólida ameaça ao establishment econômico e político. Obviamente, o contra-ataque foi, e tem sido, fulminante em todos os aspectos possíveis, principalmente o midiático.
Novamente, Donald Trump é o exemplo. Primeiramente, o atual mandatário americano, durante a última campanha presidencial, foi ridicularizado e difamado continuamente por sua vida pessoal pretérita. Sua eleição foi atribuída a um infundado conluio com a Rússia e à disseminação de fake news, das quais foi a principal vítima. Apesar do sucesso de sua gestão econômica, diplomática e sua crescente popularidade,
Trump, multimilionário e presidente eleito da principal potência mundial, é rotineiramente taxado de idiota, imprevisível e inconstante. Combativo, o presidente não se calou, condescendeu ou sujeitou-se. Hoje, é pintado como o apocalipse personificado, causa de uma futura guerra nuclear com a Coreia do Norte e da ruína econômica mundial. São, majoritariamente, os tradicionais veículos de comunicação os porta-vozes dos megainteresses anteriormente citados. Há, claro, outras engrenagens, como a construção, no Reino Unido, de articulações políticas voltadas à desarticulação do Brexit. Em outras palavras, a formação de um conluio parlamentar com o claro objetivo de anular o plebiscito -manifestação máxima de soberania popular- que fundamenta a saída inglesa do bloco europeu.
Ainda recém-nascido, o movimento político não consta em almanaques e verbetes científico, apesar de seus evidentes contornos. Enquanto não for tratado e estudado como algo novo, portanto incompatível com antigas e anacrônicas ferramentas de análise, o soberanismo, em suas variadas manifestações, permanecerá como eterna surpresa, bovinamente associado ao reacionarismo, ao ressurgimento da Guerra Fria e à condutas preconceituosas. Enquanto isso, o redneck texano, em um maravilhoso didatismo aristotélico, expressa e compreende, à sua maneira, algo ainda obscuro aos diplomados estudiosos: o desacorde entre democracia e multilateralismo.
*Marcos Paulo Candeloro é cientista político pela Columbia University, graduado em História pela USP e professor de Ciências Humanas.
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