A tempestade começou com um tuíte da ministra das Relações Exteriores do Canadá, Chrystia Freeland, na semana passada, expressando preocupação com a recente prisão de um ativista dos direitos das mulheres na Arábia Saudita, que tem parentes no Canadá, e pedindo sua libertação.
Very alarmed to learn that Samar Badawi, Raif Badawiâs sister, has been imprisoned in Saudi Arabia. Canada stands together with the Badawi family in this difficult time, and we continue to strongly call for the release of both Raif and Samar Badawi.
â Chrystia Freeland (@cafreeland) 2 de agosto de 2018
Dias depois, a Embaixada do Canadá na Arábia Saudita divulgou o comunicado do Ministério das Relações Exteriores pedindo a libertação dos defensores dos direitos das mulheres em sua conta no Twitter, em árabe, garantindo que seria mais lido pelos sauditas.
Na segunda-feira, o governo saudita respondeu com fúria. O Ministério das Relações Exteriores disse que as críticas canadenses eram uma "flagrante interferência nos assuntos internos do reino, contra normas internacionais básicas e todos os protocolos internacionais" e "uma afronta inaceitável às leis e processos judiciais do Reino".
O embaixador canadense foi ordenado a sair do país em 24 horas. Os sauditas suspenderam acordos de comércio e investimentos entre os dois países. A mídia local informou que os programas de intercâmbio educacional seriam suspensos - afetando 12 mil estudantes sauditas que estudam com bolsas de estudo patrocinadas pelo governo saudita no Canadá. E a companhia aérea nacional da Arábia Saudita informou que está suspendendo os voos para o Canadá, a partir do dia 13.
Não foi a primeira vez que o reino - uma monarquia absolutista - foi repreendido por violações dos direitos humanos, ou que o Canadá criticou o país por prender ativistas. Mas sob Mohammed Bin Salman, o príncipe herdeiro da Arábia Saudita, o país está reagindo com maior vigor às críticas que vêm de fora.
As críticas do Canadá destacaram a atual repressão da Arábia Saudita contra dissidentes, incluindo um grupo de proeminentes ativistas que fizeram campanha para suspender a proibição de mulheres serem motoristas e outros direitos.
Os promotores sauditas acusaram algumas das mulheres de terem contato suspeito com grupos estrangeiros não identificados. Grupos de defesa dos direitos humanos especularam que o objetivo da campanha é enviar uma mensagem de que a liderança saudita não tolerará qualquer indício de ativismo político.
Mudança de enfoque
A troca de acusações destacou a política externa cada vez mais assertiva da Arábia Saudita sob o príncipe herdeiro Mohammed. Apesar de ter sido elogiado por “sacudir” o reino, tentando diversificar sua economia e aliviar algumas restrições sociais, ele também ajudou a colocar a Arábia Saudita em conflitos estrangeiros - incluindo uma guerra civil no Iêmen e uma rivalidade com o vizinho Catar - que o reino tem dificuldades para sair.
O país tem dito que sua intervenção no Iêmen é necessária, depois que um grupo rebelde aliado ao Irã, rival regional da Arábia Saudita, derrubou o governo iemenita. Em um episódio intrigante em novembro, as autoridades sauditas detiveram o primeiro-ministro libanês, Saad Hariri, e obrigaram-no a renunciar ao cargo (mais tarde, ele recuperou a posição).
Segundo Fawaz Gerges, professor de política do Oriente Médio na London School of Economics:
Temos visto, há algum tempo, que a política externa saudita tornou-se mais assertiva e enérgica.
Vários países da Europa sentiram as consequências da nova assertividade da Arábia Saudita nos últimos anos. Entre eles, estão a Suécia e a Alemanha. Em 2015, o reino retirou temporariamente seu embaixador na Suécia depois que esta destacou a prisão e o julgamento do escritor Raif Badawi como um exemplo de fracasso em relação aos direitos humanos.
Na Alemanha, o então ministro das Relações Exteriores Sigmar Gabriel disse que a Europa "não poderia tolerar o aventureirismo que se espalhou por lá", em declarações que foram amplamente interpretadas como críticas à intervenção militar da Arábia Saudita no Iêmen.
A Arábia Saudita criticou Gabriel por aquilo que considerou "observações vergonhosas e injustificadas", e depois convocou o seu embaixador, no mesmo padrão que se desenrolou na Suécia. No começo do ano, funcionários alemães confirmaram para vários meios de comunicação que a Arábia Saudita, discretamente, colocou empresas alemãs em listas negras como resultado das críticas em um raro caso de retaliação econômica.
"Está se tornando um padrão. Nos últimos três anos, a liderança saudita está se tornando mais imprevisível, mais volátil", disse Kristian Ulrichsen, membro do centro de estudos sobre o Oriente Médio do Rice University's Baker Institute.
A decisão saudita de enfrentar o Canadá tem lógica, disse Ulrichsen. "Ele envia uma mensagem para outros que pensam em criticá-la, como vários países europeus têm feito em relação ao Iêmen", disse.
Enfrentamento
Mais duas ativistas foram presas na semana passada, segundo a Human Rights Watch. Uma das mulheres, Nassima al-Sadah, disputou eleições locais e fez campanha pela abolição das chamadas leis de tutela, que exigem que as mulheres busquem a aprovação de um parente do sexo masculino para viajar ou se casar.
A outra, Samar Badawi, recebeu o Prêmio Internacional Mulheres de Coragem da Secretaria de Estado dos EUA e é a irmã do blogueiro dissidente Raif Badawi. Este foi condenado a mil chicotadas e 10 anos de prisão na Arábia Saudita por "insultar o Islã por meio de canais eletrônicos". A esposa, Ensaf Haidar, e os três filhos se tornaram cidadãos canadenses no Dia do Canadá, no mês passado, e vivem em Quebec.
Impactos
A Arábia Saudita é o segundo maior mercado de exportação do Canadá na região do Golfo Pérsico. As exportações canadenses para o reino superaram US$ 1,07 bilhão em 2017, segundo dados do Statistics Canada. São principalmente de veículos e equipamentos militares, fruto de uma parceria firmada entre os dois países em 2014.
O acordo firmado pelo então primeiro-ministro Stephen Harper foi duramente criticado por grupos de direitos civis, que o classificaram como pouco transparente. Eles levantaram preocupações de que as armas seriam usadas para cometer abusos dos direitos humanos.
Justin Trudeau, o sucessor de Harper, aprovou o acordo em 2016, quando seu governo começou a emitir as licenças de exportação, argumentando que ele não tinha opção a não ser respeitar os contratos assinados pelo governo anterior.
Freeland disse, em fevereiro, que a investigação de seu departamento sobre relatos de que a Arábia Saudita usaria armas fabricadas no Canadá para cometer violações de direitos humanos não revelou evidência conclusiva para apoiar essas alegações.
Em uma entrevista coletiva na segunda-feira em Vancouver, Freeland disse que os diplomatas do Canadá formularam "perguntas padrão" a seus colegas sauditas e estão "esperando por respostas sobre como a Arábia Saudita pretende seguir adiante com o relacionamento entre os dois países".
A ministra disse que sua mensagem aos estudantes sauditas é que eles são bem-vindos no Canadá e que "seria uma pena se eles fossem privados de tal oportunidade".