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Enquanto atuais e ex-chefes de Estado do Ocidente lamentaram a morte de Mikhail Gorbachev, destacando o papel do último líder da União Soviética no fim da Guerra Fria e a aproximação com o Ocidente que ele promoveu, a China teve duas reações: frieza e agressividade.
No primeiro caso, encaixa-se a manifestação oficial do regime chinês, que por meio de um porta-voz do Ministério das Relações Exteriores se limitou a dizer que Gorbachev “fez contribuições positivas para a normalização das relações entre a China e a União Soviética”.
Na segunda categoria, o ex-líder soviético foi atacado nas mídias sociais e na imprensa ligada a Pequim. “Gorbachev trouxe desgraça não apenas para o povo da União Soviética, mas para o mundo inteiro”, escreveu o comentarista político Xiang Ligang na rede social chinesa Weibo, alegando que a guerra na Ucrânia é resultado do fim da União Soviética: “Este desastre continua até hoje”.
O jornalista Hu Xijin, conhecido pela sua postura radical pró-Partido Comunista da China, escreveu no Twitter que Gorbachev “foi um dos líderes mais controversos do mundo”.
“Ele foi amplamente aclamado no Ocidente, por vender os interesses de seu país. O Ocidente conseguiu a paz, mas as guerras continuam a eclodir em áreas da antiga União Soviética: Chechênia, Geórgia, Ucrânia...”, criticou.
O jornal estatal Global Times, onde Hu Xijin é colunista, atribuiu o colapso da União Soviética à “democratização parcial da sociedade soviética sob Gorbachev”.
“Como lição para a própria governança da China, o Partido Comunista da China mantém seu próprio caminho socialista com características chinesas, ressaltando a maturidade política e a sobriedade”, apontou um artigo publicado pelo jornal.
O texto do Global Times é a chave para entender o verdadeiro sentimento dos comunistas chineses por Gorbachev: sua percepção é de que as reformas promovidas pelo líder soviético durante seu governo (1985-1991), a aproximação com o Ocidente e sua oposição à ideia de reprimir violentamente movimentos separatistas ou pró-democracia no antigo bloco comunista europeu (Letônia e Lituânia foram exceções) foram uma fraqueza decisiva para o colapso da União Soviética – um erro a não ser repetido pela China.
Em um discurso direcionado a membros do Partido Comunista em dezembro de 2012 e que teve seu conteúdo vazado no mês seguinte, o ditador Xi Jinping, que à época já era secretário-geral da legenda e assumiria a presidência do país meses depois, justificou uma onda de perseguição a altos funcionários que estava em andamento à época.
“Por que devemos manter a liderança do Partido sobre os militares?”, afirmou Xi. “Porque essa é a lição deixada pelo colapso da União Soviética. Na União Soviética, onde os militares foram despolitizados, separados do Partido e nacionalizados, o partido foi desarmado.”
Lembrando uma tentativa de golpe de Estado contra o então líder soviético em 1991, que fracassou mas acabou aprofundando o caminho para o fim da União Soviética, Xi disse que “algumas pessoas tentaram salvar a União Soviética; prenderam Gorbachev, mas em poucos dias isso foi revertido, porque não tinham os instrumentos para exercer o poder”.
“[Boris] Yeltsin [que depois se tornaria presidente russo] fez um discurso em cima de um tanque, mas os militares não responderam, mantendo a chamada ‘neutralidade’. Por fim, Gorbachev anunciou a dissolução do Partido Comunista Soviético em uma declaração irresponsável. Um grande partido acabou facilmente assim. Proporcionalmente, o Partido Comunista Soviético tinha mais membros do que nós, mas ninguém foi homem o suficiente para se levantar e resistir”, acrescentou Xi.
O discurso do futuro ditador chinês prenunciou um aumento da repressão em todos os setores da sociedade chinesa nos anos seguintes (como as ações em Hong Kong e Xinjiang), com uma oposição total a qualquer tipo de abertura ou reformas.
Logo no início do primeiro mandato de Xi, o Partido Comunista da China participou da produção de documentários sobre o fim da União Soviética, nos quais defendeu a tese de que as reformas de Gorbachev e sua incapacidade de manter o status quo geraram esse colapso. Esse material foi amplamente usado na “instrução” de membros do PCCh e relançado este ano.
“Xi certamente quer tornar o partido-Estado chinês impermeável ao tipo de colapso que se abateu sobre a União Soviética, e muitas de suas políticas nos últimos anos visam exatamente isso”, disse Dali Yang, cientista político da Universidade de Chicago, à CNN. “Talvez nenhum outro país tenha estudado as lições do colapso soviético tão cuidadosamente quanto a China.”
Zilvinas Silenas, presidente da Fundação para a Educação Econômica (FEE), apontou em artigo nesta semana que, depois de Gorbachev, muitos tiranos e aspirantes a ditadores entenderam que o caminho para seguir no poder era não permitir nenhuma abertura – inclusive econômica.
“Eles estudaram cuidadosamente as tentativas de Gorbachev e concluíram, talvez corretamente, que sistemas inerentemente defeituosos não podem ser consertados. É impossível estabelecer planejamento central sem abolir sua premissa central de que o governo, e não os consumidores, sabe melhor o que produzir e em que quantidades. Para manter o poder, os governos precisam controlar toda a economia, ou pelo menos a maior parte dela”, destacou.
Muitos analistas enxergam que Gorbachev não era exatamente um democrata e poderia ter reprimido os movimentos internos do bloco soviético com violência. Mas ele não o fez – ao menos, não na escala dos seus antecessores. A julgar pela visão de Xi Jinping sobre os fatos ocorridos na Europa oriental 31 anos atrás, esse conflito moral nunca esteve perto de passar pela mente do ditador chinês.