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análise

A cúpula entre Trump e Putin é um primeiro ato. Teremos o segundo?

Putin deu uma bola de futebol para Trump, que veio acompanhada das palavras “agora a bola está na sua quadra”, uma expressão em inglês que indica que uma situação depende dos atos daquela pessoa | YURI KADOBNOVAFP
Putin deu uma bola de futebol para Trump, que veio acompanhada das palavras “agora a bola está na sua quadra”, uma expressão em inglês que indica que uma situação depende dos atos daquela pessoa (Foto: YURI KADOBNOVAFP)

A cúpula entre Trump e Putin tornou-se um escrutínio sobre a política doméstica dos EUA. Ao menos a sua parte pública, perante a imprensa. Os dois líderes se encontraram em Helsinque, capital da Finlândia, nesta segunda-feira (16). A cúpula teve um atraso em seu início; o avião de Putin pousou no horário em que a cúpula estava programa para iniciar. Talvez um atraso intencional da parte russa, talvez uma eventualidade. Cerca de cinco horas depois, Trump e Putin falaram por aproximadamente uma hora com os jornalistas presentes e seguiram seus respectivos caminhos, deixando muitas questões no ar. 

Histórico e contexto  

Fazia oito anos desde a última cúpula bilateral entre EUA e Rússia. Em abril de 2010, Barack Obama e Dmitry Medvedev, então presidente russo, atualmente premiê, assinaram o Novo START em Praga, uma renovação do compromisso de limitação dos arsenais nucleares. Essa cronologia exclui contatos ao telefone entre as lideranças, cúpulas multilaterais e também conversas realizadas à margem de eventos internacionais, como os dois encontros anteriores entre Trump e Putin. Desde 1959, foram realizados dezenove cúpulas bilaterais entre presidentes dos EUA e seus equivalentes russos ou, anteriormente, soviéticos.  

Dentre os encontros, alguns momentos-chave da Guerra Fria, como a visita de Nikita Khrushchev aos EUA e a troca de visitas entre Mikhail Gorbachev e Ronald Reagan no final dos anos 1980. O recente hiato de oito anos sem encontros dessa magnitude não ocorreu sequer durante a Guerra Fria, um dos aspectos que mostra a distensão nas relações recentes entre EUA e Rússia. Essa foi a terceira vez que um encontro desses se deu na Finlândia, o país que mais vezes teve o papel de anfitrião neutro.  

Ainda há um quarto evento importante, os Acordos de Helsinque, de 1975, que criam a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa e marcam uma reaproximação entre os blocos antagônicos na Guerra Fria. O contexto de preferência histórica pela Finlândia é devido, primeiro, à sua posição geográfica, perto das “fronteiras” entre os blocos da Guerra Fria, o Ártico e o leste europeu. Segundo, pela política de neutralidade adotada pela Finlândia, se comprometendo perante seus vizinhos soviéticos, via tratado, à não participar da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) e manter distância dos EUA.  

Geopolítica e impasses  

As principais expectativas relativas ao encontro entre Trump e Putin eram sobre temas geopolíticos e a diminuição de tensões entre os dois países em teatros em que figuram em posições opostas: a anexação da Crimeia e as subsequentes sanções à Rússia; o Irã e o acordo nuclear; a Síria e a segurança de Israel; o desgaste com a OTAN e o envenenamento de um espião russo no Reino Unido; a Coreia do Norte e a China; terrorismo e crimes internacionais.  

Isso ficou muito claro em ambos os pronunciamentos de abertura da coletiva de imprensa. Putin, por exemplo, disse que a Guerra Fria é algo do passado. Muitos interpretam essa expressão como um desejo pacifista ou uma expressão de amizade e esse é um erro cometido desde 1991. Putin apenas frisa que a “era de agudo confronto ideológico” ficou para trás. Ou seja, os temas hoje são pragmáticos, concretos, geopolíticos: economia, recursos naturais, busca por aliados ou neutralizar a presença do outro.  

Trump também defendeu a postura do diálogo pragmático, colocando que, embora existam divergências inegáveis, seu país, a Rússia e o mundo só tem a ganhar em sentar e conversar. Ambos colocaram que se tratam de dois líderes defendendo os interesses de seus respectivos Estados. Perante o público, porém, tudo isso foi esvaziado. Primeiro, pela pouca disponibilidade de informações do que, e como, foi discutido. Não se sabe como correram as conversas a portas fechadas. Publicamente, ao contrário do esperado, ficaram mais evidentes os pontos de discórdia.

O tema Crimeia, em que Trump teria sinalizado que poderia adotar uma postura de barganha amigável com a Rússia, foi foco de apenas alguns minutos pela parte de Putin. Frisou que Trump mantém a postura de que a anexação foi ilegal e de que a Rússia interpreta de forma diferente e que não irá abrir mão da península. Putin também afirmou que os EUA poderiam serem mais “decisivos” em forçar as autoridades ucranianas a cumprir o Acordo de Minsk e que empresários, tanto russos quanto dos EUA, poderiam se beneficiar de uma normalização das relações. Nada mais que isso.  

O resultado foi similar ao falarem sobre o Irã e o acordo nuclear, a única diferença foi a de que esse tema também foi conteúdo de comentários de Trump. Os EUA defenderam a pressão contra o Irã e sua “campanha de violência”, enquanto a Rússia defendeu o acordo e afirmou que, hoje, o Irã é um país com um programa nuclear pacífico e também é o país mais supervisionado do mundo. Outra diferença se deu quando falaram do tema terrorismo. Trump predicou o protagonismo de seu país (especificamente, de seu governo) na luta contra o Daesh, algo que pode ser discutido, dada a participação russa nesse conflito.  

Além disso, em todas as vezes que Trump falou do tema terrorismo, ele frisou “islâmico radical”, enquanto Putin falou apenas de combate ao terrorismo, sem vínculo à religião de mais de nove milhões de cidadãos russos; incluindo maiorias em regiões estrategicamente importantes, como a Chechênia. As pautas econômicas foram limitadas ao mercado internacional de hidrocarbonetos, com a competição entre os dois países no mercado de gás natural.  

Essa foi a pauta de perguntas sobre as declarações de Trump em que ele afirmou que a Alemanha era “prisioneira” da Rússia, dada sua dependência do gás natural russo. Em um dos poucos momentos que trouxe uma novidade, Putin aproveitou a pergunta para Trump para expor seus “dois centavos” sobre o assunto; a expressão em inglês significa justamente palpitar. Putin dispôs da deixa para propor uma cooperação entre os dois países no mercado de gás natural, colocando Rússia e EUA no mesmo patamar, independente das sanções.  

Fora isso, é sintomático que a cúpula não tenha produzido sequer uma declaração conjunta. Absolutamente nada foi colocado no papel, nem a mais amena e neutra das palavras. Talvez para justificar isso, ambos os líderes continuamente frisaram que esse foi apenas um primeiro passo, a primeira conversa de várias por seguir, o início da construção de uma nova relação. Embora isso tenha fundamento na realidade e na necessidade de passos lentos e progressivos, é digno de desconfiança que nada tenha sido feito em conjunto publicamente. Especialmente porque o futuro dessa relação pode ser nebuloso, como visto adiante.  

Coreia, Síria e Israel  

A península coreana e a não-proliferação nuclear foram outro tema em que Trump e Putin apenas mantiveram posições anteriores, com a diferença de que não são temas de impasse. Ambos celebraram as conversas entre EUA e Coreia do Norte e frisaram a necessidade de controle da proliferação de armamento nuclear. Putin creditou “em grande parte” Trump por elas, ao que Trump afirmou ter em Putin um “compromissado” no sucesso dessas conversas. 

A única matéria em que tivemos uma indicação de cooperação acordada na cúpula foi a guerra na Síria e a segurança de Israel. Tanto Trump quanto Putin tem relações próximas com Benjamin Netanyahu, premiê israelense; ambos os líderes também, diversas vezes, garantiram que não vão aceitar uma disposição de forças que sejam uma ameaça à Israel. Putin defendeu os acordos de 1974 sobre as Colinas de Golã, território internacionalmente reconhecido como da Síria e sob posse de Israel. É possível que, nos desdobramentos finais da guerra na Síria, com a atual ofensiva do regime Assad no sul do país, parâmetros comuns tenham sido acordados em Helsinque.  

A vitória de Assad e Rússia reconhecida por um lado, em troca da garantia russa de que forças iranianas ou do Hezbollah não terão presença na fronteira entre Síria e Israel? Putin se comprometeu na continuação das conversas tripartites de Astana, com Turquia e Irã, e que Trump foi “informado” sobre as conversas. Tanto Putin quanto Trump destacaram questões humanitárias e a necessidade de reconstrução síria, para um seguro retorno de refugiados.  

Putin também destacou que conversou recentemente com Emmanuel Macron, presidente francês, sobre a Síria. Interessante notar que ambos os líderes frisaram a boa cooperação entre suas forças armadas. Trump disse que “nossos militares têm se dado melhor que nossos governos nos últimos anos” e Putin afirmou que isso “impediu incidentes perigosos”. Poderoso indicativo de que os ataques dos EUA contra a Síria em represália ao suposto uso de armas químicas foram provavelmente acordados em conjunto.  

Interferência eleitoral russa  

Boa parte da coletiva de imprensa foi dedicada a perguntas sobre as denúncias e investigações sobre a possível interferência russa no processo eleitoral dos EUA. Desde comentários mais incisivos até risos de Putin ao ser perguntado se a Rússia realmente teria materiais “comprometedores” sobre Trump, coletados quando ele esteve em Moscou, em 2013, para o Miss Universo, evento que na época era de propriedade de Trump.  

Recentemente o Departamento de Justiça do governo dos EUA indiciou formalmente 12 russos, supostamente oficiais militares de inteligência, por interferência na eleição. A complexidade jurídica e política desse tema impossibilita que ele seja devidamente tratado nesse texto. Indo além da substância ou não das acusações e investigações, e suas respectivas vinculações ideológicas, é necessário apontar os pontos em que esse tema afeta as conversas entre as duas maiores potências nucleares do mundo.  

Primeiro, Putin soube usar isso ao seu favor. Negou qualquer participação russa em interferências, ao ponto de dizer que o Estado russo “nunca se envolveu” com eleições nos EUA; considerando a extinta URSS, essa declaração não é verdadeira, com quase meia dúzia de conhecidos episódios de agentes de inteligência soviéticos tentando influenciar os comitês partidários e as eleições primárias nos EUA. Além disso, não deveria causar estranheza o envolvimento de agências de inteligência em eleições alheias, seja de que país for. A novidade de 2016 seria o alcance e a complexidade tecnológica da interferência.  

Além de negar o envolvimento russo, Putin usou a situação para barganhar contra seus adversários. Por exemplo, ao oferecer “cooperação” nas investigações do conselheiro especial Robert Mueller, Putin praticamente ofereceu uma troca por Bill Browder. O bilionário é o principal defensor do Ato Magnitsky, de 2012, que sanciona a Rússia e nacionais russos por violações de direitos humanos. O ato leva o nome do advogado de Browder, que teria sido morto sob tortura em uma prisão russa.  

Putin alega que Browder desviou um bilhão e meio de dólares na Rússia sem pagar os devidos impostos. Em um aceno aos republicanos, afirmou até que Browder doou 400 milhões de dólares para a campanha de Hillary Clinton; algo que não é comprovado nos balanços de campanha, frise-se. Esse foi talvez o momento em Putin tenha deslizado na coletiva, quando mudou seu tom de voz, talvez acusando o golpe das sanções. Além disso, Browder é binacional, cidadão dos EUA e do Reino Unido, e reside em Londres. Ou seja, mesmo que o governo dos EUA quisesse colaborar no tema, não teria autoridade para isso.  

Outro bilionário presente nas palavras de Putin foi George Soros, em outro aceno, agora aos apoiadores mais radicais de Trump, que colocam Soros no centro de diversas teorias; curiosamente, tanto Soros quanto Browder possuem raízes judaicas. Putin o citou como exemplo de um indivíduo com grande capital, mas cujas posturas não necessariamente significam a postura do Estado dos EUA; no contexto, a postura de bilionários russos relacionados ao processo eleitoral dos EUA não significaria a postura do Estado russo.  

No mesmo momento, Putin, ao defender que a relação entre Rússia e EUA seja movida pelos “assuntos concretos”, pediu que essa relação não seja usada como moeda de troca em uma luta política interna. Esse foi um prognóstico preciso do que aconteceu posteriormente. Trump sofreu diversas e pesadas críticas domésticas por causa da cúpula, a ponto de ser chamado de “traidor” pelo ex-chefe da CIA no governo Obama, John Brennan. Na visão de seus críticos, Trump publicamente colocou a inteligência dos EUA abaixo da palavra do presidente russo (chamado de “tirano” pelo senador republicano John McCain), já que Trump disse que acredita quando Putin afirma que não interferiu nas eleições. 

Trump mantém a posição de que todas essas investigações seriam uma fachada, uma desculpa do Partido Democrata, para não aceitar a derrota nas eleições. Essa posição torna-se complicada quando, por exemplo, Mike Pompeo, atual Secretário de Estado e ex-chefe da CIA, já defendeu publicamente a legitimidade dos relatórios e acusações elaborados pela inteligência dos EUA que apontam interferência russa nas eleições.  

Não foi apenas de democratas ou rivais históricos republicanos que Trump sofreu críticas; nesse caso, esperadas. Por exemplo, o líder da Câmara, o republicano Paul Ryan, emitiu uma nota em tom forte: Trump “precisa saber que a Rússia não é nossa aliada”; “não existe equivalência moral” entre os dois países; finalmente, “não há dúvida” de interferência russa nas eleições de 2016. Mesmo a Fox News, mídia tradicionalmente favorável aos republicanos e à Trump, teceu críticas à postura do presidente dos EUA perante Putin.  

Em cima de tudo isso, o momento da cúpula não auxiliou, com as recentes acusações formais e a prisão de Maria Butina, acusada de ser “agente infiltrada a serviço de interesses nacionais russos”. Ela ganhou destaque quando tornou-se a única russa com associação vitalícia na National Rifle Association. As relações entre Rússia e EUA, então, tornam-se reféns de uma investigação jurídica e criminal. Trump precisa lidar com a repercussão de suas ações em uma democracia, ainda mais em um ano eleitoral. De forma inteligente, Trump abordou esse tema logo no início, em seus próprios termos.  

Suas palavras foram: “Não posso tomar decisões de política externa em um esforço fútil para apaziguar críticos partidários ou a imprensa, ou os democratas que só querem resistir e obstruir”. Resta saber se Trump irá manter essa postura e bancar os eventuais custos domésticos de um processo de longo prazo de conversas com a Rússia. Isso sem mencionar os aliados dos EUA, que até agora não se pronunciaram, mas provavelmente estão contrariados.  

Simbolicamente, Putin deu uma bola de futebol para Trump, já que a Rússia sediou a Copa do Mundo de 2018 e os EUA sediarão, com Canadá e com México, a Copa do Mundo de 2026. Junto com a bola, as palavras “Agora a bola está na sua quadra”, uma expressão em inglês que indica que uma situação depende dos atos daquela pessoa. Talvez um mero gracejo com a Copa do Mundo, mas, considerando o sutil balé diplomático de gestos, é mais provável que Putin saiba que o futuro dessas conversas depende de Trump e dos custos domésticos com que ele terá que lidar.

Filipe Figueiredo é graduado em História pela Universidade de São Paulo e comenta política internacional no blog Xadrez Verbal.

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