
Culturalmente, os anos 2000 foram uma década de afastamento. Após o 11 de Setembro, o mundo viu surgir uma divisão conceitual entre Ocidente e Oriente, e palavras como "árabe", "terrorista" e "muçulmano" ganharam definições cada vez mais genéricas. Para evitar erros de avaliação e, consequentemente, injustiças derivadas dessas imprecisões, o estudo do multiculturalismo pode auxiliar o Direito Internacional a encontrar os valores da justiça comuns em todo o mundo.
"A grande questão é justamente tentar achar se há algum valor no mundo que seja universal", diz Melina Fachin, mestre em Filosofia do Direito (PUC-SP) e membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB-PR. Segundo ela, a principal diretriz em voga nos direitos humanos e no direito constitucional é a proteção da "dignidade humana", mas, por ser tida como abstrata, essa expressão não chega a resolver o problema. Autora de Fundamentos dos Direitos Humanos: Teoria e Práxis na Cultura da Tolerância (Editora Renovar), a advogada aponta que nem mesmo o direito à vida pode ser considerado universal, pois não é considerado um "valor supremo" por todas as culturas. Confira abaixo os principais trechos da entrevista.
Há um embate entre o conceito de multiculturalismo e de direitos humanos no mundo?
Na verdade, não. O multiculturalismo é justamente uma tentativa de reinterpretar, de recompreender os direitos humanos à luz da cultura. Especialmente após o 11 de Setembro, vimos emergir de novo um mundo dividido entre o "nós" e o "eles", aqueles que professam a cultura ocidental e aqueles "diferentes". Mas não me parece que sejam questões incompatíveis. Porque, se você pensa que nós somos diferentes deles, aí vira uma estratégia de conquista e não uma estratégia de diálogo.
O debate sobre multiculturalismo não está ocidentalizado, defendendo como globais valores ocidentais como laicidade e democracia liberal? Isso não impede o entendimento de culturas diferentes?
Esse é um ponto interessante. O professor espanhol Joaquín Herrera Flores, doutor em Direitos Humanos, sempre diz que esse debate sobre direitos humanos é muito próprio do mundo ocidental, que os orientais não discutem isso. E a grande questão é justamente tentar achar se há algum valor no mundo que seja universal. O Ocidente diz: "Sim, nós temos uma ideia universal". Mas o Oriente coloca suas características culturais como definidoras de quem são e do modo como se organizam. Então essa é a grande contraposição.
Já se encontrou um ponto de intersecção entre as duas culturas em que os direitos humanos internacionais possam atuar?
Essa é uma busca difícil. As palavras que se usam para definir conceitos culturais, ainda que sejam as mesmas, assumem significados diferentes dependendo do país em que são usadas. Essa é a primeira dificuldade. Na tentativa de buscar um denominador comum, muitos autores tentam delinear algumas diretrizes. A principal diretriz hoje em voga nos direitos humanos e no direito constitucional é a proteção da dignidade humana. Só que o problema continua, porque a expressão "dignidade humana" é abstrata. Alguns outros autores diriam que é o direito à vida. Mas nós temos culturas onde a vida nem sempre é um valor supremo. Tribos indígenas praticam o soterramento de crianças, preservando os valores da cultura, na tentativa de expulsar os maus espíritos, como eles acreditam. Algumas proposições mais contemporâneas apontam para dois direitos universais: o direito de não ser torturado e o direito a não ser escravizado. Isso me parece um delineamento razoável à luz da teoria dos direitos humanos. Mas esses direitos universais ainda só existem na esfera doutrinária. Não há qualquer convenção internacional sobre isso.
É possível legislar em ou para uma cultura diferente? Cortes como o Tribunal Penal Internacional (TPI) conseguem aplicar um conceito internacional de Justiça?
A justicialização internacional é passo importante para a defesa e promoção dos direitos humanos. Tribunais regionais têm conseguido alcançar avanços, só que dependem necessariamente da adesão do Estado. Este é um primeiro problema, porque não há como obrigar todos os Estados a se submeterem a uma jurisdição.
No julgamento dos acusados pelo genocídio em Ruanda, foi montado um tribunal pelo Conselho de Segurança da ONU especificamente para aquele caso. Não pode haver um entendimento para a implantação de um tribunal permanente?
Foi nesse sentido que o TPI foi criado, justamente para evitar a implantação de um tribunal de exceção. Quando você monta um tribunal de exceção, você está aplicando a justiça dos vencedores sobre os vencidos. Por isso a ONU estruturou e pensou o TPI.
E como fazer com que as pessoas que sofreram agressão consigam se representar nesses tribunais internacionais?
Esse é o grande desafio do direito internacional. Em um estado opressor, violador de direitos, não há uma grande voz, uma grande participação e liberdade da sociedade civil. Como fazer com que os reclamos dessas pessoas cheguem às portas dos tribunais internacionais? Não existe uma defensoria pública internacional. Por isso, as organizações não governamentais ainda têm cumprido um papel essencial no julgamento de crimes em zonas de instabilidade. O caso de Uganda (onde foram assassinadas 300 mil pessoas por ordem do ditador Idi Amin Dada nos anos 70) é um exemplo. O país havia corroído as instituições e o próprio Estado pediu auxílio ao TPI. Mas isso é uma exceção.
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